Ao toque frio e viscoso da água com sabão que se infiltrou, sem pedir licença, pelo USB do carregador do celular, espalhando-se pela placa de circuito impresso anexa, uma série de desventuras foi colocada em movimento. Situação tensa. Tudo culpa da esponja que caiu no chão. Não, culpa do inepto lavador que, ao se abaixar para pegá-la, esqueceu-se do fone no ouvido e mergulhou aparelho e podcasters num frio e indesejável banho.
Louças esquecidas temporariamente, smartphone desmontado às pressas. A capa de borracha parecia ter impedido a entrada de água. Apenas um pouco de umidade na parte interna, nada nos conectores da bateria, aparentemente tudo em ordem. Terminou seu serviço enquanto finalizava o programa interrompido.
A surpresa veio na hora de ir pra cama. Ligou o celular no carregador, precisava dele cheio de energia para o dia seguinte. Teve, porém, dificuldade para dormir, e uma hora depois foi ao banheiro. Estava agitado, sem sono algum, a despeito de que se levantaria para pegar o fretado em menos de 3 horas. Voltou para cama e então veio o susto. O celular havia carregado apenas um por cento.
Medo. Aquele gelado na barriga advindo do saber imediato de que a cena atrapalhada na cozinha havia lhe trazido consequências piores. E ainda iria pagar a última prestação! Com a esperança vã inerente ao ser humano, trocou de cabos e carregadores, ligou-os no moribundo sobre o criado mudo e voltou a dormir.
Acordou com o velho e conhecido toque do despertador do celular. Uma pontinha de esperança acendeu-se e foi rapidamente apagada pela repentina falta de oxigênio, causada pelo desanimado suspiro ao ver que a bateria tinha subido alguns míseros pontos.
O que fazer? A falta do smartphone não era apenas a falta de um telefone. Ligações e SMS eram o de menos. A internet era o que o preocupava, o sempre presente 3G, que mesmo vacilante, lhe servia continuamente, mantendo-o conectado vinte e quatro horas por dia. Não teria acesso a seus e-mails, redes sociais, apps de mensagens instantâneas, nada disso. Seria um dia fora da rede, e um dia fora da rede era um dia desconectado do mundo! Isso se fosse apenas um dia. O pensamento lúgubre o fez sentir calafrios na espinha.
Além de tudo, não teria música, e isso era realmente triste. Desde a adolescência não vivia sem uma dose diária de música, principalmente no ônibus, Pink Floyd embalava seu sono pela manhã, e Iron Maiden vinha à tarde para extravasar o stress do dia de trabalho. Além do sempre presente Jethro Tull, a qualquer momento, em qualquer lugar.
O próprio ato de trabalhar seria cinza e sem graça sem o fone solitário na orelha direita, camuflado por dentro da camisa, despejando em sua cabeça horas de informação sobre literatura, mitologia e cultura pop em geral. Resignado com esse prospecto triste, se vestiu, escovou os dentes, colocou a mochila nas costas, se despediu da esposa e partiu. Ao entrar no fretado, desligou o aparelho e, vencido pelo cansaço, dormiu profundamente.
Acordou com o coordenador batendo em seu ombro repetidamente. Desceu do fretado ainda meio grogue, e foi até seu prédio. Como a esperança é a última que morre, e a despeito de saber que poderia agravar a situação, plugou novamente o aparelho na tomada, sem resultado.
Ao contar a triste história aos amigos do escritório, relembrou da cena patética em que o banho do eletrônico havia acontecido. Imaginou claramente o momento, do ponto de vista de outra pessoa, e percebeu que devia ter sido hilário, digno dos Trapalhões. O pensamento não o confortou, mas as coisas ainda ficariam mais terríveis. Quando a bateria chegou a zero, o celular morreu e não ligou mais.
Sentia-se praticamente nu. Não podia checar seus e-mails ou suas mensagens. Ainda podia falar com quem precisasse pelo e-mail da empresa ou pelo telefone fixo, mas nada daquela olhadinha casual nas notícias compartilhadas pelo Twitter ou notificações do Facebook. E o pior estava por vir. Quando saiu para o almoço, ficou em off completamente.
Não podia conceber isso, ficar total e completamente desligado de qualquer modo de comunicação existente. Nem mesmo a centenária e simples ligação telefônica poderia ser feita. Nesse momento mergulhou numa questão existencial um tanto perturbadora. Como poderia ser tão dependente de um aparelho que algumas décadas atrás nem existia? Que há menos tempo ainda apenas fazia ligações de voz? E não era só ele, em todo lugar, por todo lado, pessoas fitavam sem piscar suas telas touchscreen multicoloridas, acessando um mundo de informação e falando com todos que quisessem, enquanto a sua volta o mundo real teimava em existir e rodar, a despeito do crônico desinteresse humano.
Mas a vida hoje é assim, não é mesmo? Pensou. É preciso saber dosar, não se perder no mundo digital, lembrar-se que a humanidade existiu e sobreviveu por centenas, milhares de anos, sem resistores ou circuitos integrados. Não se pode perder sua humanidade para uma máquina, mas antes usar-se dela para expandir sua própria percepção do mundo. Com esse pensamento, deu o assunto por encerrado, e entrou no Shopping.
No último piso, acesso para o estacionamento, se escondia tímido um quiosque de reparos de celular. O seu foi analisado, aberto e diagnosticado: a oxidação estava fechando curto. Era preciso dar um banho químico para desoxidar e com sorte tudo ficaria bem, a um custo um tanto salgado, mas ainda assim mais barato do que comprar outro. Saiu esperançoso para almoçar, deixando o paciente receber seu tratamento. Era a ironia suprema, um banho para consertar o estrago que outro fizera.