Por Paulo Carvalho
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Zi era um navio cargueiro chinês, fabricado nos anos oitenta. Quando afundou, arrastou pro fundo do Oceano Pacifico, vinte e oito tripulantes e cento e cinqüenta mil dólares em mercadoria. O navio afundou rápido, e as narrativas de como esses vinte e oito marujos passaram seus últimos momentos, é uma historia emocionante e poderosa, provavelmente a melhor historia. Mas ao invés da melhor historia, vamos ter que nos contentar com a mais bizarra.
Mikio sobreviveu ao naufrágio, por que no momento em que a tripulação percebeu o que estava prestes a acontecer, ele estava no convés fumando maconha com Julio. Por causa da tempestade, eles eram os únicos lá, quando os outros ratos assustados se pisoteavam e esmurravam tentando passar pelos estreitos corredores do navio, em direção ao convés.
Júlio era um representante comercial paraguaio que se tornou melhor amigo de Mikio, durante a viagem. Sem internet e com as duas prostitutas do navio reservadas para os representantes dos interesses dos compradores que estavam a bordo para acompanhar o trajeto da carga, fumar maconha e conversar era o melhor passatempo. Antes daquela viajem Mikio nunca tinha fumado durante uma tempestade, ambos eufóricos com a experiência e assim que o vento se agitava e as nuvens começavam a trovejar, eles corriam para o convés. Naquele dia eles passaram por dentro da cozinha para chegar mais rápido ao convés. No meio do caminho foram alertados por alguns velhos chineses jogadores de Ma Jong, que as tempestades eram sempre traiçoeiras no Triangulo dos Dragões e ficar no convés seria suicídio. A região do Triangulo dos Dragões, também conhecida também como Mar do Diabo, é carregada de superstições. Explicações fantásticas para naufrágios, desaparecimento de navios, visões de óvnis e outros mistérios, fazem do mar, o equivalente asiático do Triangulo das bermudas.
Mikio e Julio ouviram algumas historias quando estava em Tóquio e conversando com outros tripulantes, descobriu que ao contrario do que pensava, as historias sobre o triangulo não eram exclusivamente contadas por japoneses e chineses, mas por todos os povos que velejam ou velejaram no triangulo, em tempos recentes ou remotos. De acordo com os relatórios, o tamanho da área abrangida pode variar entre cento e dez a mil e duzentos, mas a extensão exata é outro dos seus mistérios. O mecânico do navio, que por acaso é formado em historia, contou para os dois que entre 1952 e 1954 o Japão perdeu cinco embarcações militares nessa região, com mais ou menos setecentas pessoas dentro. Em resposta o governo japonês enviou um navio de pesquisa com mais de 100 cientistas a bordo para estudar o Mar do Diabo, e este navio também teria desaparecido. Então, finalmente, a área foi declarada oficialmente uma zona de perigo.
Os velhos e o mecânico estavam mortos agora, seus cadáveres ainda presos dentro do navio, junto com uma coleção de produtos eletrônicos que nunca chegariam à America latina. Quando a popa do navio já estava se erguendo como uma gangorra, homens trocavam socos, facadas e por último, ouviu-se tiros pelo direito a um bote salva-vidas. Os dois vencedores desceram o bote ao mar e remaram com toda força para não serem puxados para o fundo, quando o navio submergisse. Depois do perigo passado os homens ficaram curiosos para saber que tipo de suprimentos havia no bote, se eles morreriam de fome ou tiveram sorte suficiente de pegar um com o suficiente de suprimentos para sobreviver até um resgate ou até encontrarem terra. Debaixo da lona eles encontraram Mikio e Julio, espremidos e imóveis como se eles fossem peças de carne no chão do frigorífico.
A luta não pôde ter durado mais que alguns minutos, mas pareceram horas e ecoou por dias. Julio agarrou o homem armado, enquanto Mikio foi atacado pelo outro. Quando Mikio desenterrou seus dentes da garganta ensangüentada e quente, o homem já estava ficando branco e o chão do bote vermelho. Julio ainda lutava com seu adversário, o dedo indicador enfiado na frente do cão, o dedo anelar atrás do gatilho da arma que apontava para sua barriga. Mikio envolveu o pescoço do homem com uma chave de braço e apertou forte até ele desabar, mas infelizmente Julio já havia tomado dois tiros no estomago a essa altura. Mikio jogou os dois corpos no mar e ficou ao lado de seu amigo inconsciente até ele morrer naquela mesma noite.
Antes de morrer, Julio pediu por sua mãe, por um médico, por Deus, enquanto Mikio tapava os ferimentos com uma camisa, se sentindo completamente inútil. Nas ultimas horas não tinha mais sangue para sair dos buracos, mas Mikio continuou pressionando. Eram duas da manhã, segundo o relógio da bussola do kit de emergência, quando o corpo de Julio começou a puxar ar tão profundamente que parecia que seu peito ia explodir, ele fez isso por dois ou três minutos, e depois não fez mais. Mikio olhou para o céu e agradeceu com sinceridade.
Julio tinha vinte e seis anos, era paraguaio e essa era sua terceira viagem entre a China e o Paraguai. Ele não falava japonês ou chinês nem Mikio falava o castelhano, mas os dois falavam o suficiente de inglês para se entender. Julio gostava de falar sobre mulheres e sobre seus sonhos, ele contou que se tornou contrabandista com o propósito de comprar um taxi, ele dizia que dentro de cinco anos teria três ou quatro rodando e ele não faria nada além de receber o dinheiro. Mikio havia prometido ao amigo alguns minutos após jogar o corpo dos dois marujos no mar que o sepultaria em terra, mas depois de dois dias de baixo do sol, o fedor que exalava do corpo inchado era insuportável e os restos tiveram que seguir o destino dos prévios tripulantes do bote.
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Por duas semanas o bote vagou sendo direcionado pelas marés, Mikio supunha ainda estar na região do mar do Diabo, mas não tinha como ter certeza, já que a região não constava nas cartas náuticas. O tamanho da área abrangida pode varias entre cento e dez a mil e duzentos quilômetros, ele pensou, olhando para o horizonte, se perguntando a que distancia estaria ele de Tóquio. A situação estava se deteriorando a cada dia, depois a cada mudança de luz, depois a cada hora. Navios contrabandistas não se preocupavam em cumprir normas de segurança, os suprimentos no bote duraram cinco dias, a água nove. Ele passava os dias debaixo da lona se protegendo do sol, e as noites andando pelo bote, falando sozinho. Ele não sabia quanta urina poderia beber antes de morrer intoxicado, sua pele estava cheia de feridas e bolhas, que não sabia se eram causadas pelo sol, pela falta de água, pelo sal no ar ou qualquer outra coisa. A fome era tão aguda que às vezes ele olhava para um dedo do pé como se não fosse seu. Uma vez se pegou pensando como jogar aqueles corpos no mar foi um desperdício. Em um momento pior, ele pensou a mesma coisa sobre o corpo de Julio.
O sol do oceano é insistente, sendo queimado vivo pelo sol, ele se lembrou de um cartaz engraçado que estava colado na porta de sua escola, em Chichibu, sua cidade natal, anos atrás. “Você é um fantasma pilotando um esqueleto coberto de carne feito de poeira estelar, então do que você tem medo?”, obra de algum estudante ensimesmado, provavelmente. Será que o estudante seguiu sua vida como um homem feliz, ou dirigiu seu carro até a floresta silenciosa de Aokigahara, para se enforcar em uma árvore. Dois anos atrás quando estava de volta ao Japão, Mikio dirigiu até o mar de árvores, mas nunca chegou a subir. No estacionamento ele viu alguns carros e motos sujos, cobertos de folhas. Eram carros que estavam abandonados ali por meses, alguns quilômetros floresta adentro, os corpos de seus donos da mesma forma aguardavam dependurados em alguma árvore ou misturados na grama com uma lamina nas mãos.
A noite ele dormia, sempre com medo de não acordar. Durante o dia, passava horas tocando o casco do bote com os dedos, a sensação da madeira contra suas unhas era a melhor distração contra a penetração lenta de sua alma no útero da insanidade. Ele podia também tocar algumas músicas em sua cabeça, mas essas ele guardava para as piores horas, quando o sol estava no centro do céu, e ele perdia a consciência por… quanto tempo?
Naquela noite ele imaginou que era o bote, seu corpo flutuando no oceano por décadas, sem nunca tocar outro. Consciente da existência de milhões de outros botes, mas sempre seguindo uma maré mais estranha. Refletindo sobre isso, ele se sentia pronto, mas a morte não veio. Misericórdia nunca era concedida, ele pensou, se lembrando do dia em que saiu para fazer cooper e viu um cachorro ser atropelado por uma lambreta. Ele viu quando o cachorro trocou a calçada pela rua e pensou que não daria tempo, o sinal estava prestes a abrir. Ele não gritou, só sentiu um alerta em sua cabeça e o frio no estomago, no mesmo instante o cachorro congelou no meio da rua, hipnotizado pelas luzes farol e bum. Nas próximas semanas Mikio não conseguiu evitar acompanhar a decomposição do animal que antes de morrer havia se arrastado para a grama alta. Toda vez que passava por ali, parava por alguns minutos. Ele acreditou por um longo tempo que se não tivesse percebido a inevitabilidade do acidente, talvez, o acidente não teria acontecido. Como se as leis do universo não fossem diferentes das leis criadas pelo homem, nesse sentido em particular. Sem um observador, não havia necessidade de que elas fossem sempre aplicadas. Talvez se ele tivesse virado a cara no ultimo instante antes do impacto, a moto teria passado direto, por pouco, quase acertando um cachorro. Ele não saberia como aconteceu, ninguém saberia o que deveria ter acontecido. Ninguém precisava saber.
Sentindo a dor em suas costas e uretra, seu coração batendo tão lento quanto o balanço do bote, a idéia de suicídio era cada hora mais atraente. Mikio lutou sua vida para não ser um estereótipo, deixou o Japão aos dezesseis anos para viver na índia e depois na china e usava toda sua força de vontade e maconha disponível para não levar tudo a sério demais, a não ser o típico jovem japonês, um bishõnen. Cometer um harakiri agora seria jogar todo esse trabalho no lixo, mas deixar a insolação ou a desidratação encerrarem seu turno, parecia uma idéia ainda pior. Come on Eileen, da banda de pop britânico, Dexys Midnight Runners, estava tocando dentro de sua cabeça. Quantas vezes ele havia ouvido essa mesma musica, e se sentindo ótimo, por ser a única pessoa que conhecia capaz de perceber sua beleza energizante. A versão reconstruída da sua memória parecia tão boa quanto a original. Ou será que não? Como ele poderia saber, sem uma segunda parte, para mesclar suas incofiaveis memorias em algo um pouco mais digno. O que é a certeza de um único homem, que se baseia no resto da interpretação corrompida de eventos para definir a sí próprio, para provar que existe, ou existiu. A conciencia do coletivo é o mais próximo de certeza que se pode ter. Mesmo que testemunhas oculares não sejam as mais confiaveis, cem pessoas não poderiam errar da mesma forma, nos mesmos lugares. A existência de pontos de vista externos é a unica coisa que impede um homem de imaginar toda sua vida, e reimaginar todos os dias, sem ser contradito. Então, é possível ser são, em completo isolamento?
Menos de meia hora depois do anoitecer, decidiu desperdiçar um pouco de energia e fugir de seus pensamentos, ele levantou a cabeça por um momento, seu corpo ficou imóvel, seus olhos se estreitaram. Cerca de um quilometro ao norte ele viu as luzes, duas no começo, mas conforme elas se moviam em circulo mais três se tornaram visíveis. O modo como se moviam não deixava duvidas, só podiam ser helicópteros. Ele tentou gritar, mas não tinha forças e por alguns minutos o terror tomou conta de sua imaginação. E se eles fossem embora antes de encontrá-lo? Esticando seus braços até alcançar os remos, ainda deitado começou o movimento, toda sua força que seu instinto animal de sobrevivência estava reservando empregado em um ritmo sabia que conseguiria manter. Dez minutos depois, remando sempre na direção da área onde as luzes pairavam, uma nova surpresa o atingiu, e o teria feito chorar, se seus canais lacrimais não estivessem secos e inchados. Fazendo um esforço para manter o foco ele pôde perceber logo abaixo das luzes das aeronaves o relevo do que parecia ser enormes arvores, presas a pequenos montes. Outra meia hora de esforço, muito mais motivado e produtivo e não havia engano agora, era uma ilha.
3
Na escuridão era possível distinguir as enormes paredes rochosas, limitavam a praia de ambos os lados. Pareciam pequenos canyons, com paredes marrons, que refletiam a luz da lua. Milhares de micro cavernas espalhadas pela superfície da parede faziam parecer uma pele humana, infestada por alguma doença repugnante. A silueta da ilha naquele momento era completamente delineada pelas arvores altas, o que tornava a silhueta móvel, enquanto as arvores balançavam lentamente com o vento. A ilha parecia uma coisa viva, e se movendo lenta e inevitavelmente em sua direção, um monstro marinho. A lua era como uma placa luminosa acendendo e apagando, enquanto as arvores dançavam de um lado para o outro no ritmo do vento. Era como olhar para um sol em uma galáxia distante, um ponto oscilante, causado pela orbita dos planetas. No centro da ilha era possível distinguir uma colina, ou algo do tipo, bem abaixo de onde os helicópteros estavam antes. Mikio sentiu pavor por um instante. Mas havia arvores, o que quer dizer água doce, talvez frutas e animais para comer. Ele tinha sorte, mais sorte que o restante da tripulação do barco.
O bote atingiu a areia, e depois de um momento de hesitação, Mikio cai na areia. Ele planejava pisar, mas suas pernas estavam bambas e desabaram com o peso do resto do corpo. Sentindo a areia fria debaixo do seu corpo, ele estava se sentindo bem, ele poderia ter ficado ali até o amanhecer, mas o som de pequenos objetos rolando sobre madeira estava dando um aviso. O aviso era que se ele não amarrasse aquele bote ou arrastasse para a areia, manhã pela manhã, ele estaria preso naquela ilha. Parecia muito improvável que houvesse força restante no seu corpo suficiente para ficar de pé, mas o medo é como um cachorro insistente, latindo para que abram a porta. Jogando seu peso para traz com os dedos enganchados na madeira, ele estava mais caindo que puxando, mas funcionou. Nunca tendo se sentido tão exausto, ele só queria entrar no bote e dormir até o próximo dia, mas não podia ainda. Por que em algum lugar, no interior da ilha, ele podia ouvir o som de água correndo.
Uma faca, um esqueiro, três cantis vazios, uma bússola, um saco de dormir, uma arma sinalizadora com munição, um kit de medicamentos, e a arma que tirou do marujo. Isso foi tudo que ele colocou na mochila, antes de iniciar sua jornada. Com determinação ele manteve um ritmo, tentando não pensar em quando iria desmaiar. Depois do primeiro gole de água doce, ele sabia que nada seria capaz de derrubá-lo, ele tinha certeza disso. Tudo que precisava fazer era manter isso no centro de sua mente.
Menos de trinta metros, ele não tinha nem mesmo cruzado o ponto em que a grama alta e a areia se encontravam, ele viu. No canto esquerdo de olho seu esquerdo, um detalhe que não se encaixava com a paisagem natural. O brilho gasto de madeira polida por um segundo, antes de ser escondido pela grama alta, que se revezava entre mostrar e esconder, de acordo com o ritmo do vento. Chegando mais perto, não havia dúvidas, era um bote. Mas não qualquer bote, era um bote idêntico ao que Mikio havia usado para chegar ali. Pela conservação não poderia estar ali mais que alguns dias. Outra pessoa havia sobrevivido ao naufrágio, chegado àquela mesma ilha, provavelmente sendo levado pela mesma maré. E quem quer que fosse estava em um estado de saúde muito melhor que Mikio, por que de jeito nenhum ele teria conseguido arrastar um bote até aquele ponto, no estado em que estava. Talvez esse bote estivesse ocupado com mais suprimentos, ou talvez esse sobrevivente não tenha jogado corpos ao mar. Talvez o sobrevivente já tivesse sido resgatado, talvez ele fosse o motivo dos helicópteros na acima da colina. Se isso fosse verdade, então eles iriam voltar, para procurar outros sobreviventes. De qualquer forma ele estava ansioso agora, a idéia de não estar mais sozinho nessa tragédia colocou um sorriso em seu rosto e um novo pique em sua caminhada.
Seguindo o ritmo de água corrente, Mikio se orientava pela grama alta e como esperava, depois de meia hora de caminhada, ele encontrou uma pequena nascente. Sentindo a água descendo por sua garganta, era como se todo seu corpo estivesse sendo preenchido, como se ele fosse um balão de água. Ele se deitou na nascente deixando a água doce lavar o sal e a sujeira. Entre espasmos e arrepios ele estava gargalhando. Deitado de costas na terra, olhando para as estrelas, ele se sentiu como uma criança. Como se ele fosse se levantar dali, pegar sua bicicleta e pedalar até sua casa, ver sua mãe. A idéia o fez pensar em Julio, que nunca mais veria sua própria casa, que estava morto. Agora ele estava se sentindo um pouco enjoado, de tanta água em seu estomago, mas ele não iria desperdiçar vomitando, então fez pausas, respirou fundo e continuou.
Com três cantis cheios de água e a sensação de limpeza, seguiu rápido, mantendo um ritmo muito melhor que antes. Seu novo objetivo era o topo da colina. A terra ao pé da colina era escura e umida, quando Mikio encheu sua mão com ela e cheirou, aquele odor ele nunca havia sentido em lugar algum. O cheiro era frio, essa era melhor maneira que ele poderia descrever, um cheiro frio. Não seria muito em outra situação, um homem não vivie somente de agua. Quando finalmente alcançou o topo da colina seu estomago queimava de fome, ele estava tonto, e uma veia em sua cabeça insistia em latejar, desprezando os esforços da respiração profunda e meditação. Em um relance ele viu uma forma correndo rapido pelo chão e parando abrupta e perfeitamente em uma posição de guarda. Estreitando os olhos ele podia ver que era um pequeno lagarto, algo parecido com um calango. Com paciencia e tempo para pensar em algo ele tinha certeza que poderia pegar um desses, caso não ouvesse outra fonte de comida na ilha. Era boa sensação de ter opções.
O topo daquela colina era sem duvida a visão mais pertubadora de sua vida, tanto real quando imaginaria. Nem mesmo nos delirrios de sua adolecencia ele havia conjurado algo tão uterinamente espantoso. Perplexo ele se manteve como uma estatua, de prontidão no fim da trilha. Um gargula sem castelo, aterrorizado pela imaginação do escultor. A sua frente uma aberração gigante se extendia por pelo menos quinhentos metros de area circular. Ele ficou de joelhos e depois se deitou no chão, encostando a lateral de sua cabeça no chão para ter certeza que não era um engano de sua visão ou percepção. Não havia engano, toda a superficie da colina era plana. Não era uma planicie, ou um campo plano natural, era chata, plana, reta, até onde le podia ver ao ponto dos centimetros. Como se o topo da montanha tivesse sido arrancado com um sabre de luz, como se um gigante com uma colher de sorvete houvesse desferido um unico golpe. Não, não uma colher, uma faca, um bisturi. As arvores cresciam normalmente por toda a colina, até o ptono em que planice começava, ali elas subtamente desapareciam. Não só as arvores, por todo o caminho Mikio observou pequenas plantas e ervas crescendo esporadicamente na terra, mas ali ele não consegui vizualizar nada verde. E as pequenas pedras espalahadas no chão também eram diferentes, aqui elas pareciam brilhar mais que no resto da colina. Talvez não brilhar, mas refletir a luz da lua. Tudo isso teria sido normal se ele tivesse percebido qualquer traço de ocupação humana na ilha, uma cabana que fosse. Mas exceto pelo outro bote, aquela ilha parecia intocada. Exceto pelo topo daquela colina que era um disco de pedra.
Mikio poderia ter ficado ali por horas, indeciso entre a logica que dizia que sua melhor chance de sobrevivier era ali, onde os helicopteros estiveram. Seus instintos diziam para dar meia volta, vasculhar a ilha, achar outra opção. La no fundo eles diziam “vá embora, entre naquela barco e se arrisque no mar.” Ele sentia como se dar mais um passo ele estaria amaldiçoado. Só mais um passo naquela superficie bizzarra. Nao havia logica no pensamento, é claro, e o fez lembrar de sua infancia, quando costumava se desafiar a pisar somente nas pedras brancas no passeio, por que se ele pisasse nas pretas, seus pais morreriam. Ele poderia ter ficado ali por horas não fosse a rajada de vento que soprou em sua direção trazendo com ela o cheiro de sangue. O cheiro de sangue ao céu aberto o colocou em movimento, a fome constante o presenteou com os instintos de um lobo. Ele estava deslizando no rastro do cheiro como um personagem de desenho animado, na direção ao centro do disco. A cada metro era possível distinguir com mais clareza a fonte do odor. Uma forma acizentada, semi circular, mas não uniforme. Pelo tamanho, poderia ser uma vaca. Mas o que uma vaca estaria fazendo em uma ilha como essa? Não fazia sentido. Seria possível que nativos viviam ali, e se dedicavam a agropecuaria? Seriam os nativos mais discretos.
Se aquela realidade tivesse sido apresentada sem precedentes, Mikio com certeza teria questionado sua sanidade ou se aquilo era um sonho ou um truque. Mas os ultimos dias amaciaram as paredes de sua mente. A carcaça tinha um metro de uma ponta outra, sem contar o rabou ou a tromba. Uma laceração no abdomen, onde um pedaço de carne fora removido poderia apontar a causa da morte. O corte sem dúvida havia sido feito com uma lamina, e apesar da carne exposta e o sangue, não haviam moscas. O corpo estava frio, mas não exalava cheiro de decomposição ou qualquer outro que não fosse o de sangue. Os olhos do animal estavam abertos, encarando o céu. Olhando mais de perto, ele pode perceber um ferimento na nuca, também feito com lamina, mas sem retirada de carne, somente um corte profundo. Talvez esse tivesse sido a causa da morte, parecia mais provavel. Todas suas dúvidas encolhiam em comparação com a conclusão inegavel de que sim, era a carcaça de um elefante, um elefante muito pequeno. Mais ou menos um metro de uma extremidade a outra, sem contar a tromba ou a calda. Pelo tamanho tinha que ser um filhote, mas o couro era excessivamente enrrugada e marcada, para um animal tão jovem.
Por alguns minutos Mikio observou a carcaça com desconfiança, mas aquele cheiro e a queimação em seu estomago, foram mais fortes. Ele podia voltar pela trilha e recolher material para uma fogueira, mas não voltou. A carne crua era dura, o couro impossível de se cortar com os dentes. Então estava raspando a carne do couro, cortando em pequenos pedaços e engolindo após o processo de mastigação mais dificil de sua vida. Quando ficou satisfeito seu estomago estava tão cheio que tinha medo de tossir e vomitar. Suas gengivas já enfraquecidas pela desnutrição, sofreram varios cortes tentando destrinchar a carne rigida, e agora estavam ensaguentadas. Ele tinha agua, comida e o sol ainda iria demorar a nascer, então se deitou usando a mochila como travesseiro. E pela primeira vez desde o naufragio, ele não teve medo de dormir.
Seu otismismo acabou se mostranndo injustificado, já que naquela noite seus sonhos foram povoados por aterrorisantes pesadelos. Primeiro ele viu a sí proprio caminhando por uma terra de formigas gigantes. Uma delas carregava nas mandibulas uma mulher semi conciente, gravemente ferida, que gemia baixo, como um gato. Elas vinham em sua direção roboticamente, enquanto ele paralisado de medo, era imcapaz de se mover. Depois disso, a nova ilusão, muito mais realista, era uma vista em primeira pessoa de seu proprio corpo, suas mãos com o ceú como fundo. Um vapor branco e fetido emanava de sua pele, enquanto seus membros minguavam. Antes de ver a si propria virar um esqueleto, o pesadelo cedeu lugar a outro. Um tormento claustrofobico agora, seu corpo estava preso sob o peso de uma longa rede de exageradamente grossas cordas, cada uma tinha a largura de metade de sua perna, e estvam todas encharcadas com um liguido salgado como a agua do mar . As cordas cruzavam formando um padrão, e uma massa unica. O peso dessa massa mantinha todo o corpo de Mikio junto ao chão. Através da rede de cordas uma luz laranja emanava com intensidade suficiente para manter seus olhos semicerrados. Fazendo um esforço para se mover ele virou sua cabeça o suficiente para perceber que o chão também era feito da mesma materia, a mesma gama de cordas. Seu corpo estava preso entre as duas camadas, como um peixe na rede. Inclinando a testa para baixo, o que na verdade parecia cima, já que ele estava deitado de barriga para cima, ele viu uma fonte de luz muito mais intensa e pura transbordando das cordas. Calculando que ali deveria ser uma saida, ele começou a se mover naquela direção, puxando seu peso com as mãos e empurrando com os pés, como se estivese nadando de barriga para cima. Logo ele alcançou a fonte de luz, e como esperava era uma saida. Sem o peso da rede, ele pode ficar de pé. Protegendo seus olhos da luminosidade , ele observou o seu redor.
Primeiro todo o cenario parecia completamente alienigena. Plantas gigantes, arvores colossais, e um sol que parecia arder mil vezes mais forte que o normal. Olhando para baixo, a mais assustadora descida, ele estava na parte alta de alguma montanha, no que parecia ser uma terra de gigantes. Tão simlpes e realista o sonho era, que quase produzia medo real. Mikio ficou parado ali por algum tempo, esperando o sonho desenrolar seu enredo, que com certeza o guiaria a um outro ou ao amanhecer.
Foi durante esta espera que uma sensação fria e herege começou a crescer em seu estomago. Seu cerebro parecia estar se adaptando a essa nova dimensão das coisas, e começando a fazer as ligações e deduções. Subitamente a rede de cordas que se estendia a sua frente, parecia mais uma camisa suada, deixada no meio do mato. Algumas das estrahas formações mais abaixo também tornaram formas familiares. As estranhas colinas mais abaixo eram sua bota, e a longa formação negra, não era terra mas as calças que estava usando antes de dormir. E vendo isso, pela primeira vez olhou para sí proprio e se viu nú. Olhando para cima em busca de outros sinais, ele podia ver o fim abrupto da montanha. Uma linha reta cortando o horizonte. Esse não era um pesadelo em uma localidade ficticia, era um pesadelo em um barranco, um pouco abaixo de onde havia se deitado para dormir. De repente Mikio se sentiu exposto e olhou com medo para o panorama ameaçador da ilha, sua vegetação densa, escondendo uma infinidade de predadores.
Exausto ele alcançou novamente a planicie artificial no topo da colina, em seu sonho transformada em montanha. Chegando na divisa, logo ele pôde identificar seu cantil e sua faca, espalhados no chão a certa distancia um do outro, mais a frente a carcaça do pequeno elefante. Olhando de cima e para baixo, toda a cena se recompunha com clareza. Durante a noite, ele rolou pelo barranco, caindo ali onde estava sua roupa. Então ele encolheu até o tamanho que estava agora, ficando preso dentro de sua própria camisa. Que exotico e aterroizante sonho, tão orginal que mesmo ainda encurralado nele, não conseguia deixar de sentir orgulho. Os objetos gigantes, quer dizer, ele mesmo encolhido, como o elefante em niniatura que ofereceu suspeito sustento. Uma fantasia aterrorizante em que ele passaria o resto de sua vida aprisionado em uma ilha de monstros gigantes.
Curioso em saber as possíbilidades desse pesadelo, Mikio deu seu primeiro passo dentro do circulo. Imediatamente seu corpo foi lançado de volta, em reação convulsiva à enorme onda de shoque e dor que percorreu todo seu corpo. A sensação era de que a pedra em que seu pé direito se apoiou estava em brasa, como se tivesse pisado em uma das garras de metal de uma trempi de fogão, acesa durante horas. Ele estava gritando e apertando o tornozelo, sem saber o que fazer. A dor era tão absoluta, que o fez pensar em sua mãe, desejar que ela estivesse ali, para socorre-lo. Pensar em sua mãe trouxe a lembrança das aulas de meditação, na academia militar. Respirar fundo, concentrado em seu mantra, realmente ajudou a superar a primeira e mais aguda fase da dor. Quando seu cerebro se sentiu livre para dar atenção a outras assuntos, a possíbilidade ganhou voz pela primeira vez. Talvez aquilo tudo não fosse um sonho. O vento estava soprando forte , as arvores estavam dançando lentamente, de uma lado para o outro. Ele sentiu seu corpo ficando gelado, como se um botão de congelamento fosse apertado.
– Será que a vontade coletiva de se manter são é a barreira que nos protege do outro mundo, onde nossos cerebros vibrariam em ondas tão antigas e poderosas, que nosso fragil cerebro se aniquilaria? – Ele se perguntou contemplando aquela pequena ilha que resistia ao mar.
FIM