Amanhecer Vermelho
por Gabriel Mendes
A ironia sempre fez parte da minha vida. O que posso dizer sobre ela? Bem… Posso dizer que sempre fui muito sortudo. Nasci em uma família ótima, de pessoas inteligentes, que leem e pensam. Nasci dotado de uma inteligência ímpar: uma capacidade inexplicável de absorver informação e se lembrar dela com detalhes e clareza, mas fui perdendo-a aos poucos conforme crescia; culpo os aparelhos eletrônicos por isso, mas eu sempre os amei e eles me fizeram muita falta nos últimos cinco anos.
Sobre minha infância, posso dizer que sou um menino criado por mãe. Meu pai nunca se fez muito presente na minha vida, por mais que tentasse. O resultado: peguei uns trejeitos e uma forma de pensar bem femininos, mas essa é uma das minhas melhores qualidades; consigo me enturmar facilmente com meninas e meninos, até que perco a amizade tão rápido quanto ela surgiu. Os motivos? A forma de pensar e de agir. Eu simplesmente não consigo aguentar os defeitos de nenhum grupo social em que tento me encaixar. Mas o que posso fazer? Só me respeitam quando dependem de mim e, hoje, muitos dependem de mim. Vários desses meus “dependentes” eu conheci antes do Amanhecer Vermelho, quando ainda existiam eletrônicos, escolas, internet e essas coisas que, se não morreram, estão em extinção.
Minha adolescência foi um tanto conturbada. Eu vivi uma vida muito abastada nessa época, muito por causa do trabalho incessante de meu pai, que acabou sacrificando a infância dos filhos pelo sucesso profissional e teve de suprir essa necessidade com duas filhas lindas; as quais eu amo muito e, até hoje, protejo com balas, lâminas, armadilhas, muros, educação, unhas, dentes e punhos. O trabalho de meu pai e da família fez com que eu sempre tivesse acesso a tudo que queria, às vezes não merecendo, mas nunca cometi os excessos dos outros adolescentes da minha “casta” (por assim dizer), como beber, usar drogas, beijar qualquer mulher que aparecesse bêbada em minha frente. Assim era a vida antes do Amanhecer Vermelho para os que não se preocupavam com o futuro. Os que se preocupavam não tinham tempo para este circo, ficavam estudando (veja só, estudando!) para passar em vestibulares (a pior coisa que o ser humano já inventou como teste de conhecimento) para entrar em faculdades (já viu alguma? Então… as pessoas se reuniam lá para estudar, aprender, pesquisar… produzir conhecimento. Legal, não?) ou passar em concursos (existia uma coisa chamada Governo na época, se você quisesse trabalhar nele, precisava passar em um concurso). E esses aí realmente pensavam e discutiam e, por mais que eu discordasse e odiasse algumas opiniões destes, eles eram louváveis por isso. O simples fato de ler já conta bastante (até hoje, ouso dizer) e esses o costumavam fazer com maestria. Nunca fui muito normal psicologicamente, já cheguei a pensar em suicídio (é nisso que pensa uma pessoa que não tem nada para fazer ou nenhum objetivo de vida). Eu era de um grupo à parte: os vagabundos. Nós não tínhamos absolutamente nenhuma preocupação com absolutamente nada (meu lema de vida era “foda-se” e permanece até hoje, pois ainda é aplicável).
Estou me perdendo demais? Sim. Mas não tenho como voltar atrás, pois só encontrei um lápis, uma ponteira 0.7mm e um caderninho no qual estou deixando minha história registrada. Escrever sempre foi uma terapia para mim e eu sentia muita falta de fazê-lo, pena que não tenho como apagar e voltar atrás para melhorar este texto para você, leitor. Perdoe-me por minha caligrafia pobre e se culpe se não está entendendo o que aqui está escrito, pois você deveria ter se ocupado em aprender a ler até os mais eruditos textos quando teve chance ou alguém deveria tê-lo lhe ensinado quando tu ainda eras criança.
Pode-se dizer que alcancei minhas metas com meus estudos (algumas notas baixas e pressão de parentes me fizeram estudar bastante para entrar na melhor faculdade à minha disposição, a UFPE). E lá fui, aos dezessete anos, fazer meu bacharelado em História. Um bacharelado nada mais é que um título que diz que você estudou algum assunto e, portanto, entende dele. Mas não fiquei esse primeiro ano na faculdade em si, pois viajei jogo após o primeiro semestre para fora do país (você sabia que o mundo é bem grande?) e fui até a Inglaterra (uma ilha lá na casa do chapéu depois de cruzar um oceano e mais um pouco de mar) estudar inglês e História na lendária Nottingham, terra do mito de Robin Hoob. Voltei para o Brasil (o lugar onde você, que está lendo, está agora) para continuar meus estudos e assim o fiz até aquela noite de 21 de Junho de 2020.
Preciso falar que, logo após minha saída do país em 2018, houve uma tentativa de golpe de estado por parte do governo. Você, que não entendeu, imagine um grupo com um líder, mas cujos membros decidem tudo com votos. Agora imagine que esse líder quer se tornar absoluto e mandar em todos sem ser questionado. O que aconteceu foi a mesma coisa, mas em outra escala. O problema é que o golpe de estado falhou miseravelmente, pois o Exército (que hoje em dia é a maior milícia do país) impediu que os governantes tomassem o poder. A verdade é que o governo vacilou, pois, ao invés de buscar apoio militar, tentou controlar o Exército por meio de leis inconstitucionais (palavra bonita, não?). O Exército, com todas as suas armas e revolta com o ato, invadiu as sedes do governo e fuzilou todos aqueles filhos da puta sanguessugas que tentaram criar uma ditadura só deles. Acontece que o Exército tinha a missão de defender a constituição, a pátria e a ordem, então seguiram a lei e implantaram um governo provisório para reestruturar o governo antes de entregá-lo à população. Você, que não entendeu, imagine aquele líder daquele grupo mandando todos obedecerem a ele incondicionalmente e, quando todos estavam prestes a baixar a cabeça, um ser pensante e armado grita: “Um caralho voador que nós vamos nos curvar para você, seu filho da puta” e atira na cabeça dele. E então o grupo questiona: “O que faremos sem um líder” e, antes do caos se espalhar, o salvador que teve cu de levantar uma arma e puxar o gatilho diz: “Eu serei o líder, por enquanto. Vamos encontrar um lugar seguro para nos instalarmo-nos e depois disso tomaremos todas as decisões através de votos e das proposições de todos”. Foi exatamente o que aconteceu, mas numa escala bem maior.
O resultado: várias leis mudaram. Com a mudança de governo, várias melhoras na educação surgiram, os cidadão passaram a ter o direito de portar armas, os bandidos mais perigosos e desumanos eram mortos em execuções em praça pública… Voltamos ao auge da humanidade: a Idade Média; a diferença era que agora tínhamos outras tecnologias. Ao menos o sistema de governo foi tão bem implementado pelos militares que ficou por isso mesmo. O povo adorou as mudanças e o progresso consequente da ascensão deles ao poder, mas eu tenho certeza que seria melhor não deixar esse tempo de governo ultrapassar quatro anos, ou iríamos entrar em declínio novamente. Enfim, o que é bom dura pouco e eu mal tive tempo de terminar meus estudos quando o Amanhecer Vermelho chegou.
Eu estava andando pela Rua da Aurora em Recife, voltando para casa de madrugada, pois era seguro andar durante a noite. Quem não deve não teme e as patrulhas que me paravam às vezes me deixavam continuar, pois eu seguia a lei muito bem e nunca menti para um militar. Passando por um canto escuro da rua, ouvi algo se mexer. Olhei na direção do som, a minha direita, e vi alguém se levantar rapidamente. Quando fui correr, a coisa se jogou em cima de mim e me agarrou, tentando me morder. Cai de costas na calçada com ela em cima de mim, a boca bem aberta, mirando no meu pescoço. A coisa parecia um humano e eu jurava que era um mendigo que pegou Raiva com um cachorro doente. Eu nunca fui um homem de porte físico, sempre fui muito fraco e muito baixinho. Tive a presença de espírito de notar: um zumbi acabara de pular em mim e ia morder meu pescoço caso eu não reagisse. Então não pensei duas vezes: recolhi as pernas e empurrei-o para cima, chutando para me libertar. Após um bom esforço, consegui erguê-lo o suficiente e chutar sua cara para que ele caísse para trás. Rastejei para trás de barriga para cima, levantando aos poucos, mas ele era mais rápido e logo ficou em pé de novo. Ajoelhado, a três metros do zumbi, saquei minha pistola e gritei: “Parado ou eu atiro!”, conforme mandava a lei. Se eu tivesse atirado em um mendigo com raiva, provavelmente seria preso. Mas o monstro não me obedeceu e deu o vacilo de avançar e teve sua testa explodida pelo tiro de .45 da minha Colt M1911 (depois falo sobre ela e minhas outras armas). Um militar que patrulhava a rua e estava a algumas dezenas de metros de distância viu tudo e veio me amparar. Ele ouvira meu grito por causa da ausência de som da madrugada e eu expliquei tudo que aconteceu. O militar estava prestes a ligar sua lanterna quando o primeiro raio de sol iluminou a Rua da Aurora. O sol nascia vermelho na Aurora do Apocalipse.
Continua…