[Conto] Lendas do Dragão do Céu: A Queda da Ampulheta – Parte 7

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Destino, sina ou acaso? Acidente

*Para ler os capítulos inicias vá ao final do post.

por Gabriel Mendes

Jed estava profundamente irritado. Fora preso por um crime que não cometeu, teve seus pertences tirados à força e ainda fora leiloado como escravo. Ao menos tinha Gustaff, que estava lidando melhor com a situação, como companhia. Os únicos leiloados naquela tarde foram o grupo dele, exceto Ley, que estava morto. Com o grupo desfeito, era difícil saber como procederiam com a missão. Haviam tido muitas baixas durante a viagem, mas sempre as superaram. Agora estavam com os dias contados.

E foi com esses pensamentos pessimistas que Jed subiu na carroça. Ele e Gustaff foram levados em uma carroça fretada pelo comprador deles, que ia junto e conversava com Gustaff para conhecê-los melhor.

– E você, Jed? – Perguntou ele.

– O quê? – Jed respondeu de mau humor.

– Fale sobre você. – Disse o dono – Você parece estar tão alheio a nossa conversa.

– E realmente estava. – Disse Gustaff, rindo – Este é Mohamed, nosso “dono”.

– Uhum… – Grunhiu Jed. Ele estava de mau humor, mas não entendeu o motivo de Gustaff ter ironizado a palavra “dono” – Mas por quê?

– Por que o quê? – Perguntou Mohamed, sem entender.

– Por que a ironia? – Perguntou Gustaff.

– Sim. – Respondeu Jed, ainda mal-humorado.

– Você não ouviu? – Perguntou Mohamed, incrédulo.

– O quê? – Perguntou Jed, já ficando com raiva.

– O que do quê? – Perguntou Mohamed, ainda sem entender o mau humor de Jed.

– O que eu não ouvi! – Gritou Jed.

– Calma. – Disse Gustaff, sério; colocando a mão no peito do amigo para segurá-lo e impedir que ele avançasse em Mohamed – O método de Mohamed. Ele não nos comprou para sermos escravos.

– Não? – Perguntou Jed, incrédulo.

– Não. – Disse Mohamed – Permita-me explicar: eu sou um homem de negócios. Eu tenho muitos negócios independentes de guildas: vendo tecidos, tenho um restaurante, uma pousada, tenho um banco de empréstimos e estou entrando em mais um negócio: os campeonatos na arena.

– Que arena? – Perguntou Jed.

– Há uma arena na capital do califado. – Explicou Mohamed – Lá os melhores guerreiros, sejam escravos ou homens livres competem por títulos, dinheiro e outras honrarias. Há também a banca de apostas, com a qual se pode ganhar muito dinheiro.

– E o que você quer de nós? – Perguntou Jed.

– É preciso ser cidadão do califado ou escravo de um para competir. – Continuou Mohamed – Eu soube de seu grupo, que estavam presos e que seriam leiloados e tentei arrebatar todos no leilão. Mas há algumas propostas que eu não posso cobrir.

– Por que não comprou Lily? – Perguntou Jed, sério.

– O preço estava muito além do que eu podia pagar por ela. – Respondeu Mohamed. Jed discordou, mas guardou isso para si.

– Por que não comprou Wanda? – Perguntou Jed, interrogando seu comprador.

– Porque ela era inútil para mim. Cega e sem perfil de lutadora. – Respondeu Mohamed – Talvez fosse uma boa concubina, era muito bonita, mas não iria me dar dinheiro algum.

– E por que não comprou Guilherme? – Perguntou Jed. Ele não gostou do pensamento de Mohamed.

– Porque eu não quero ser responsável por aquele Ranger. – E subitamente se lembrou – Ah! E mulheres não competem na Arena. – Explicou Mohamed.

– Os donos de escravos são responsáveis pelos atos de seus escravos. – Explicou Gustaff – Essa lei existe em quase todo o mundo e não é diferente aqui.

– Certo. E vocês vão competir por mim na Arena. – Disse Mohamed.

– Eu não vou. – Disse Jed, balançando a cabeça.

– Jed, tenha consideração. – Disse Gustaff – Ele está nos tratando bem. Além disso, tenho certeza que seremos bem tratados se nós cooperarmos, correto?

– Claro! – Disse Mohamed, sorrindo – Vejam só o plano: vocês lutam na Arena, eu aposto em vocês, vocês ganham a luta, o prêmio e eu ganho a aposta. Assim eu faço meu dinheiro e vocês pegam sua parte dos lucros.

– E como seria essa distribuição? – Perguntou Jed.

– Eu fico com o dinheiro das apostas e vocês com o do prêmio. Eu ficarei também com um décimo do dinheiro do prêmio. O resto é de vocês.

– E você acha mesmo que seremos bons gladiadores? – Perguntou Gustaff.

– Claro. – Disse Mohamed – Eu tenho certeza que posso aproveitar vocês. Nas regras da Arena, tudo é válido em um combate.

– Tudo mesmo? – Perguntou Gustaff, incrédulo.

– Tudo. – Disse Mohamed.

– Até fazer o adversário explodir de dentro para fora? – Perguntou Jed, olhando para Gustaff.

– Bem, eu acho que sim. Se a luta começou e um dos combatentes explodiu, é porque perdeu. – Disse Mohamed sem entender – Como vocês pretendem fazer seus adversários explodirem?

– Eu posso fazer isso. – Disse Gustaff, olhando nos olhos de Mohamed.

– Como? – Perguntou Mohamed.

– Dê a ele o que ele pedir e você verá nossos adversários explodirem em chamas. – Confirmou Jed, balançando a cabeça – E eu luto.

– Bem, acho que não há problema nisso, só acho que a banca de apostas pode estranhar. – Disse Mohamed, visivelmente desconcertado – E eu tenho um lugar para onde estamos indo onde vocês poderão treinar. Eu posso encomendar as armas.

– Ótimo. – Disse Jed – Quando começamos? Você disse que a Arena era na capital.

– E é. – Disse Mohamed – Mas o campeonato ocorrerá em nove meses. Até lá, temos o campeonato da cidade e depois o provinciano.

– Com quem lutaremos? – Perguntou Gustaff.

– Eu não sei. – Disse Mohamed – Eu conheço alguns nomes grandes no país e na cidade, mas eu não tenho como ter certeza de nada. Muitas informações dos competidores são sigilosas e quem sabe delas tem vantagem.

– Certo. – Disse Jed, animando-se – Fale-nos sobre como são esses campeonatos.

– Muito bem. – Disse Mohamed – O campeonato da cidade consiste de lutas individuais até a morte ou desistência. Os quatro melhores colocados de cada cidade irão para o provinciano, no qual lutarão juntos até vencer cada desafio. O provinciano tem desde lutas entre os times de cada cidade a desafios com animais e até mesmo lutas individuais.

– E o nacional? – Perguntou Gustaff.

– O campeonato nacional ocorre na Arena, uma espécie de coliseu. Lá os vencedores do campeonato provinciano e os que mais pontuaram (em cada província) formam um time com doze competidores que combatem na Arena em chaves. Quando as chaves acabam os vencedores delas vão se enfrentando em combates até a morte e os sobreviventes de cada time (que venceu) continuam até o combate final, no qual os melhores se enfrentam e o time vencedor leva o maior prêmio. – Explicou Mohamed – Os campeonatos permitem que os times vencedores de cada combate decidam entre a morte e vida dos derrotados.

– Eu topo! – Disse Jed, sorrindo – É a melhor perspectiva de futuro que eu tenho.

– Eu também. – Disse Gustaff – Só vou precisar de alguns materiais diferentes do normal.

– Perfeito. – Disse Mohamed, sorrindo para os dois.

Guilherme estava pior que eles, muito pior. Seu comprador o amarrara e o colocara deitado em uma carroça. Ele mal pôde ver para onde estava indo. Chegando ao lugar, Guilherme foi carregado para fora por quatro outros escravos e desamarrado. Alguém lhe jogou alguns trapos para vestir. Guilherme olhou para ver quem era e reconheceu seu comprador.

– Vista isso e dê suas roupas a Al-Manih. – Disse o homem, seco – Seu treinamento começa amanhã. Você obedece a Salah. Passar bem.

Guilherme foi levado a uma casa onde os escravos viviam. Estava em uma fazenda, aparentemente fora da cidade. Trocou-se e começou a procurar Al-Manih, falando em Língua Geral. Al-Manih mostrou-se como o chefe dos escravos. Ele recolheu as roupas de Guilherme e levou-as embora, impossível saber aonde. O Ranger vestiu os trapos e analisou-os por um momento. Era uma túnica que parecia ser feita para ele com trapos velhos que foram remendados e costurados. Salah foi até lá falar com ele depois que ele se vestiu. O Ranger podia perceber que todos na casa eram escravos, mas havia divisões para cada tipo de escravo. Salah se apresentou e levou-o a um quartinho onde ficavam os gladiadores. Ele falava bem a Língua Geral, assim como Al-Manih. Ele explicou a Guilherme sobre a Arena e os campeonatos de gladiadores e disse a ele que ele seria um deles.

Seu comprador, dono de todos os que moravam naquela casa – cerca de cinquenta escravos –, tinha um time de quatro gladiadores. Todos eles eram altos e fortes, mas Guilherme fazia o menor deles parecer baixinho. Um deles tinha 2,06m de altura e era nórdico. Cumprimentou Guilherme com um gesto universal para todos os povos nórdicos: a tapa nas costas. Guilherme retribuiu o gesto e começou a conversar com ele na Língua Nórdica (a fala é idêntica ao inglês, incluindo os significados, mas a escrita varia conforme a língua do país). O nome desse nórdico era Brandt.

Brandt vinha da Escandinávia do Céu, uma terra montanhosa no centro da Ilha Escandinava onde viviam elfos negros e dragões, além de humanos. Aquela terra era coberta de Lendas e Magia, mas desde a Segunda Era não havia notícia de nenhum monstro mitológico sendo avistado.

Logo ficaram amigos. Brandt mantinha todos unidos, apesar das diferenças. Os outros eram Kululu e Thiago. Kululu vinha de uma terra quente no coração de Mamáfrica (no centro do Arquipélago Leste), sua pele era negra e ele tinha quase dois metros de altura; seus braços eram magros, mas as pernas eram fortes e ele tinha resistência o suficiente para correr por dias, além de força descomunal para seu povo. Thiago vinha da Terra dos Papagaios, era o mais baixo dos quatro, mas o mais corpulento (proporcionalmente); seus músculos eram muito grandes e ele era muito forte (mais que Brandt ou Kululu quando precisava). Todos vestiam túnicas como a de Guilherme.

Brandt explicou a todos sobre os campeonatos. Não como Mohamed ou Salah, mas narrando suas próprias experiências. Ele contou como eram os combates, algumas estratégias e organizou seus colegas. Todos iriam estrear como gladiadores (exceto Brandt) e deveriam montar uma estratégia de combate.

Brandt reuniu todos no quartinho e começou a bolar a estratégia deles:

– Eu luto com um montante. – Disse ele – Eu sei que não sou muito corpulento, mas ainda tenho força para isso.

– Eu luto desarmado. – Disse Kululu – Ou com qualquer coisa que tiver em mãos.

– Isso é ótimo, Kululu. – Respondeu Brandt – Isso te torna nosso curinga.

– Eu prefiro machados. – Disse Thiago – Dois machados pesados, mas não muito grandes.

– Muito bem. – Disse Brandt – Então nós temos um com espada, um com machados e outro com qualquer coisa. E você, Guilherme?

Guilherme olhou para cada um lentamente, se preparando para admitir com um pouco de vergonha que não era um monstro bruto – Eu sou arqueiro. – Disse ele, por fim; de uma forma inocente.

– Sério? – Perguntou Brandt, com uma expressão incrédula e segurando o riso; Thiago e Kululu riam descontroladamente.

– Sim. – Confirmou Guilherme, com mais convicção – Sou bretão. A arma padrão de todo bretão é o arco.

– Isso eu sei, Guilherme. – Retrucou Brandt, em Língua Nórdica – Mas preciso saber se você consegue usar alguma arma corpo-a-corpo de forma decente.

– Facas. – Respondeu Guilherme em Língua Geral – Eu era Ranger antes de vir parar aqui. – Acrescentou em Língua Nórdica; não era muito seguro falar isso na frente de desconhecidos, mas ele podia confiar no nórdico.

– Nossa! – Disse Brandt, surpreso e falando em Língua Nórdica – Isso é ótimo. Que mais sabe fazer?

– Rastrear, me mover sem ser notado, lutar desarmado… Coisas normais de Ranger – Respondeu Guilherme, ainda em Língua Nórdica.

– Bem… – Disse Brandt – A única coisa que eu não acho que poderemos aproveitar vai ser o combate desarmado.

– Então poderei usar facas e um arco? – Perguntou Guilherme, animando-se um pouco, mas ainda afetado pelo ambiente onde estava.

– Não sei. – Confessou Brandt, voltando a falar em Língua Geral – Vou levar a lista a Salah amanhã, ele é quem decide de fato. Vou ver se consigo convencê-lo de usarmos isso. – Ele acrescentou, apontando para a lista, que foi desenhada no chão de areia da casa com o dedo indicador de Brandt.

– Obrigado, Brandt. – Disse Guilherme, dando tapinhas nas costas do conterrâneo – Eu aposto que estaria muito pior aqui se você não estivesse aqui.

– De nada, Guilherme. – Respondeu Brandt – É o que irmãos fazem.

Eles foram dormir após isso. Guilherme não se deixara intimidar pelo ambiente úmido (umidade que não provinha de água) e escuro da casa. Não era muito grande, mas ao menos ele dividia um quartinho apenas com Brandt, Kululu e Thiago e todos tinham espaço para se confortar, enquanto outros escravos dividiam cômodos maiores com muito mais pessoas; com menos espaço de conforto. A casa era mal iluminada por dentro, mas as janelas eram sempre abertas, pois não tinham cortinas ou vidro ou mesmo armação de madeira. Havia três janelas: uma no quartinho dos gladiadores, uma no cômodo dos escravos da casa e outra no quarto que Salah e Al-Manih dividiam. Duas portas apenas: a de entrada, que era uma porta dupla, e a do quarto de Salah e Al-Manih. Não havia mobília, exceto pelas camas de Salah e Al-Manih, que eram os escravos mais importantes. Al-Manih comandava todos os escravos que trabalhavam na casa e na fazenda, já Salah coordenava os gladiadores, seus treinamentos, alimentação e lhes providenciava armas; além de montar estratégias de combate. Guilherme agradecia a Deus por ter encontrado um nórdico. Dos dois que encontrara na cidade, todos eram escravos e Brandt caiu lá como um anjo. Ele com certeza teria tido problemas e conflitos não fosse pelo conterrâneo. Passou aquela noite dormindo tranquilo no chão de areia fria, havia espaço o suficiente para deitar-se sob um travesseiro improvisado de areia.

A carruagem de madeira tinha aspecto pobre, mas ainda era uma carruagem. O chão de pedregulhos fazia com que ela sacolejasse, incomodando um pouco as passageiras. Lily praguejava e Wanda permanecia muda, em estado de choque. Ainda não tinha seu violão em mãos e não enxergava absolutamente nada. Sua única visão eram seus pensamentos: memórias que tinha de conversar com Ley na casa dele, na Floresta Negra; a cegueira deixava as lembranças muito mais claras.

– A humanidade é dependente demais da visão, Wanda. – Dizia Ley.

– Eu não. – Retrucou ela – Consigo me orientar sem ver. Eu consigo enxergar no escuro tão bem quanto você.

– É mesmo? – Ironizou Ley, seu sorriso de boca fechada debochado onipresente – Muito bem, vá daqui até o quarto de hóspedes.

Wanda se levantou de prontidão e todas as luzes se apagaram. Ela já estivera lá muitas vezes, então sabia se orientar. Sabia que Ley estava à sua frente, sentado na poltrona. Só precisaria levantar-se, andar pelo corredor até passar da segunda janela, dar mais quatro passos e entrar na porta à direita. Levantou-se e girou para a direita como fazia habitualmente. Uma onda de frio a atingiu, pois não só as chamas mágicas verdes que iluminavam o interior da casa estavam apagadas, mas as tochas que emitiam luz azul e calor e estavam espalhadas nos arredores da clareira também.

A casa ficava em uma árvore, construída ao redor do tronco e sustentada pelos galhos mais baixos e mais grossos; mesmo assim, estava a dez metros do chão. Ao redor da árvore uma grande clareira, com vinte metros de raio. Nos arredores da clareira ficavam as tochas, que eram responsáveis por iluminar e aquecer a clareira e os arredores da casa.

Com o frio sufocando-a, ela deu alguns passos em direção ao corredor. Apesar de estar acostumada a luminosidade nula de Angband, ela não conseguia enxergar absolutamente nada. Ela sabia que não era Ley, pois não havia sinal algum de magia escurecendo o ambiente. O breu era natural naquele lugar. Após caminhar mais alguns passos, sentiu o frio aumentar, vindo de sua esquerda. As duas janelas do corredor estavam abertas ou apenas uma? E se havia alguma aberta, qual? Ela não ouvira barulho algum desde o apagar das luzes. Passando a área de frio, ela continuou e passou por outra área semelhante, com a brisa fria da noite congelando seus dedos. Deu quatro passos, virou à direita e deu um passou confiante à frente. Havia chegado ao quarto, mesmo no escuro total. E então sua mão tocou a parede.

As luzes se acenderam de súbito, iluminando a clareira e a casa e reduzindo imediatamente o frio cortante. Ela foi brevemente encandeada pela luz súbita. Wanda tomou um susto ao ver que Ley estava encostado na porta do quarto, a dez centímetros da mão dela.

– Tsc… Tsc… Tsc… – Ley estalou a língua três vezes – Eu não disse? – Abrindo um sorriso sarcástico.

– Eu… – Wanda estava envergonhada. Estava crente que tinha encontrado a porta, mas Ley não interferira e ela falhara – Me desculpe. – As bochechas ficaram vermelhas imediatamente.

– Eu confiaria nas palavras do mestre se fosse tu. – Disse Ley, apertando as bochechas dela com carinho – Tu te acostumaste ao escuro de Angband, mas esqueceste de que estás na Floresta Negra; aqui, o claro é o escuro e o escuro é Trevas. – Então a abraçou como um irmão e sussurrou em seu ouvido – Tu foste muito bem, mas ainda não estás completamente naturalizada. Garanto que logo vais conseguir enxergar como eu nessa escuridão.

– O que você enxerga nesse breu? – Perguntou ela, agora bem menos envergonhada.

– Infinitos tons de preto. – Respondeu Ley – É saber diferenciá-los que me dá essa capacidade de enxergar no breu além do breu. Isso é comum de todos os homens e mulheres de Angband. – Ele a soltou – Agora vá dormir, amanhã tenho uma aula especial para você. – E piscou o olho com o sorriso passando de deboche a flerte.

– Wanda! – Gritou Lily – Acorde. O que eu preciso fazer pra tirar você desse transe?

– Hã? – Perguntou Wanda, piscando as pálpebras por debaixo das bandagens, desorientada.

– Você parece uma estátua desde que saímos do leilão nessa carruagem.

– Desculpe. – Ela disse para o ar, pois ouvia a voz de Lily a sua frente – Estava… Pensando.

– Em uma fuga? – Perguntou Lily, esperançosa.

– Não… – Respondeu Wanda – Em Ley.

– Ah… – Lily bufou e praguejou em silêncio e recostou-se no banco da carruagem – Ele bem que seria útil agora.

– E homem só serve pra carregar tora de madeira. – Ironizou Wanda, rindo.

Lily pensou numa resposta, mas calou-se. Wanda estava certa. O grupo dependia muito de Ley para quase tudo.

– Eu não vou ser concubina de velho nenhum. – Disse Lily, após alguns segundos. E acrescentou com convicção – Nem que eu precise iniciar uma revolução.

– Lá vem você de novo… – Wanda falava sem emoção na voz – Ao invés de amparar a amiga que acabou de ficar cega! – Ela levantou a voz nas últimas quatro palavras – Está mais preocupada em salvar o próprio hímen, mesmo que custe a vida e sabe lá mais o quê de outras mulheres.

Lily enrubesceu. O pior de tudo era que Wanda estava certa. Só então ela notou o próprio egoísmo e abraçou a amiga. Estava quase chorando de vergonha.

– Me desculpe. – Ela disse com a voz falhando – Me desculpe, eu sou uma escrota.

– Calma. – Retrucou Wanda, retribuindo o abraço – Não precisa se flagelar tanto.

Ficaram assim durante alguns minutos enquanto Lily se recompunha.

– O que faremos? – Perguntou ela, finalmente. As emoções estavam instáveis por causa de um trauma pré-menstrual somado à perspectiva de virar escrava sexual de um velho Arabi.

– Não sei. – Respondeu Wanda – Mas se eles tentarem qualquer gracinha de mau gosto comigo, estou preparada.

– Que tipo de gracinha? – Perguntou Lily, curiosa.

– Errar o buraco de propósito. – Wanda riu do próprio humor negro.

– Você é terrível. – Resmungou Lily.

– Sou mesmo. – Riu Wanda – E quer saber o quê mais: vou ter meu violão.

– Você poderá fazer magias! – Comemorou Lily – E nós poderemos fugir de lá.

– Calma aí, virgem. – Disse Wanda, séria – Esqueceu que não consigo enxergar? Como vou fazer magias sem enxergar?

– Eu não sei… – Disse Lily, sem ligar para o “virgem” dito por Wanda.

– Pois é. – Retrucou Wanda – Não posso. Conseguirei sentir o que está próximo, mas não mais que poucos metros e ainda assim não enxergarei nada.

– Merda. – Praguejou Lily – E agora?

– Agora você usa sua cabeça pensante e inteligente para fazer o que os nórdicos fazem de melhor: improvisar. – Wanda deixou o humor voltar à voz.

– Eu não sou nórdica. – Retrucou Lily, fingindo mal humor.

– Então boa sorte improvisando. – Respondeu Wanda – E me dê licença que eu quero dormir. Ao menos não tem luz para me atrapalhar – Acrescentou.

“Pessoas de Angband adoram humor negro.” – pensou Lily – “Mesmo quando é com elas mesmas”. E então voltou sua atenção a pensar, como Wanda recomendara.

E chegaram. A porta da carruagem foi aberta por um escravo carrancudo. Ele disse algo áspero na língua local, mas elas não entenderam; apenas notaram que era uma ordem para sair da carruagem e rápido. Quando elas saíram, ele as chamou e levou-as a uma casa.

O caminho era bonito. Um jardim florido, com algumas árvores fornecendo sombra, pequenos animais vivendo ali. Várias jovens vestindo roupas bonitas e usando joias maravilhosas estavam no jardim, aproveitando a umidade de um chafariz ou então se refrescando nas sombras das árvores. Lily notou que havia chafarizes espalhados pelo lugar e que a propriedade era cercada por muros altos. A casa aonde ela e Wanda foram levadas era encostada no muro.

Era uma casa grande, com vários quartos. Cada quarto tinha o nome de um homem escrito na porta – na língua local – e todas as portas estavam fechadas. O homem as conduziu até o final do corredor, que terminava em uma porta dupla. Abriu a porta e ordenou que entrassem, então fechou o portal e o trancou. Lily viu que estava presa em uma sala grande, com o chão completamente coberto de almofadas e com muitas mulheres jovens, com no máximo 25 anos, nuas. Havia incenso na sala, que tinha janelas no alto, longe do alcance e muito pequenas para uma pessoa passar; essas janelas tinham o estranho mecanismo de proteção contra tempestades – cuja alavanca de acionamento ficava a um metro e meio do chão. Wanda ficara o tempo todo desde a saída da carruagem até a chegada ao quarto segurando o braço de Lily.

– Onde estamos? – Ela sussurrou no ouvido da amiga e guia.

– Em um harém. – Respondeu Lily, visivelmente irritada.

A mais velha das escravas, trajando apenas um lenço azul na frente do rosto, veio até elas. O lenço cobria todo o rosto abaixo dos olhos, que eram de cor marrom. Os cabelos eram negros, longos e lisos, caindo pelas costas até a metade das coxas. Os bustos eram grandes, incrivelmente volumosos para uma mulher magra. Os braços finos e esguios terminavam em mãos pequenas e macias, de unhas grandes e bem cuidadas. A barriga era seca, com o umbigo para dentro. As coxas eram grossas e o quadril largo. As panturrilhas também eram grandes, mas fofinhas, e os pés eram pequenos. Sua pele era branca, mas não pálida como a de Wanda. A mulher tinha vinte e cinco anos e era uns dez centímetros mais alta que Wanda, ou seja, dez centímetros menor que Lily (Wanda tinha pouco mais de um metro e meio de altura).

– Bem-vindas. – Disse ela, seca – Quem são vocês?

– Eu sou Wanda. – Disse a cega, apontando para si – E esta é Lily.

– Meu nome é Bruna. – Disse a mulher de véu – Quantos anos vocês têm?

– Eu tenho vinte e nove. – Disse Lily – Wanda tem vinte e sete.

– Então eu acho que perdi o título de “mais velha”. – Disse a mulher, rindo subitamente – Como vieram parar aqui?

– Um de nosso grupo… – Wanda dizia, mas foi interrompida por Lily.

– Um homem.

– Se envolveu em uma confusão poucos dias atrás. – Continuou Wanda – Acabamos pagando pelos crimes dele.

– Que pena. – Lamentou Bruna – Por que está vendada?

– Ela não se comportou e foi vendada para ser trazida aqui. – Mentiu Lily, que tomou uma tapa na nuca de Wanda logo em seguida.

– Não minta! – Repreendeu a cega – Eu tive meus olhos arrancados pelo capitão da guarda como punição pelo desacato do meu namorado.

– Isso é horrível! – Exclamou Bruna. As outras escravas olhavam as duas com interesse – Isso foi há quanto tempo?

– Algumas horas atrás. – Respondeu Wanda – Contiveram a hemorragia, limparam o ferimento para não infeccionar e cá estou eu.

– E de onde vocês são? – Perguntou Bruna, sentida.

– Eu sou da Amazônia, a grande floresta no Leste de Beleriand. – Disse Lily – E minha amiga é nórdica.

– De que país? – Perguntou Bruna, curiosa.

– Nasci no norte da Bretanha durante uma viagem dos meus pais. – Explicou Wanda – Meu pai era celta e minha mãe era pikta. Viajei por muitos países nórdicos até chegar a Angband, onde me instalei. Então me considero de Angband.

– Certo… – Bruna disse lentamente, processando a informação – Vocês já devem ter percebido que isso é um harém.

– Lily me falou. – Disse Wanda.

– Pois bem. – Disse Bruna – Esse harém não é dos melhores. Já trabalhei em alguns prostíbulos na minha terra natal, Castela, mas lá eu era bem tratada. Aqui você deve simplesmente esperar o homem entrar e satisfazê-lo como ele mandar. Quem não obedece apanha.

– Isso é doentio! – Rosnou Lily.

– Sim. – Confirmou Bruna – Bem… – Ela suspirou – Eu acho que vou apresentar vocês às outras. Passaremos muito tempo convivendo.

Bruna apresentou Wanda e Lily às outras quinze mulheres no harém. Aquela sala onde elas ficavam era de uso exclusivo do patriarca da família e de quem ele permitisse; contava com as melhores concubinas. Todas as mulheres eram beldades de rosto bonito e corpo voluptuoso; eram bem cuidadas e cheirosas, pois tomavam banho com frequência. As duas logo se integraram à “comunidade” fazendo amizades rapidamente. Havia mulheres de todas as partes do mundo ali, cada uma com uma característica marcante de sua terra natal.

– Por que todas vocês estão nuas ou então usando um véu para cobrir o rosto? – Perguntou Lily, em meio a uma conversa sobre a vida no harém.

– Porque não nos permitem usar roupas, exceto véus. – Explicou uma das mais velhas ali, de 24 anos; nascida nos Picos dos Andes – Vocês também vão perder suas roupas quando forem usadas pela primeira vez. É uma espécie de protocolo desses monstros Arabis.

– Eu não vou perder minha virgindade para um velho Arabi. – Disse Lily com convicção.

– Acho que você não tem muita escolha, amiga. – Disse Wanda, com um sorriso no rosto – Ao menos quando você for ter a sua primeira vez consentida não irá doer. – E desatou a rir. Algumas a acompanharam.

– Ela é virgem? – Perguntou Bruna, surpresa.

– Sim. – Disse Lily – Toda amazona é virgem até capturar seu primeiro homem. Depois ela deve ter com ele até engravidar e matá-lo quando a filha atingir a idade militar. Se for um filho, ele fica na comunidade para ser usado como reprodutor e o homem capturado vive até sua captora ter uma filha com ele. – Ela deu tom de desprezo na palavra “ter”.

– Que sociedade estranha a sua. – Comentou Bruna – Na minha os homens mandam e as mulheres obedecem. As mulheres permanecem virgens até que seu pai as arranje um marido.

– E se o pai morrer antes disso, Bruna? – Perguntou Wanda.

– Aí ela passa a morar com o homem mais velho da família. – Explicou Bruna – Pode ser um tio, avô. O patriarca da família.

– E em Angband, Wanda? – Perguntou a andina de vinte e quatro anos – Como é?

– Há igualdade. – Disse Wanda, dando de ombros – A mulher e o homem são livres para escolher com quem querem casar, mesmo que seja com uma pessoa do mesmo sexo. Então, quando acham uma pessoa que gostam e a pessoa aceita, se casam e vivem felizes.

– Como assim? – Exclamou Bruna – Até do mesmo sexo?

– Sim. – Respondeu Wanda com simplicidade, não entendendo o asco das companheiras.

– Isso é estranho. – Disse a andina, que se chamava Aaminah.

– Nem tanto. – Retrucou Bruna – Às vezes é legal ter… – Ela ironizou o tom de Lily ao aplicar a mesma palavra – Com mulheres. Todas nós passamos por essa experiência aqui, mesmo que a contra gosto.

– Se eu pudesse, não teria um reprodutor e faria o filho eu mesma. – Disse Lily – Eles são todos uns merdas.

– E só servem pra carregar toras de madeira. – Ironizou Wanda – Você mesma ficou pedindo para que Ley aparecesse e nos libertasse, pensei que sua opinião tinha mudado.

– Não mudou. – Retrucou Lily – São seres arrogantes, estúpidos e inúteis. A única coisa que sabem fazer é duelos de bravata.

– Tem que mudar. – Respondeu Wanda – Você e eu dependemos deles para muitas coisas. Você nem tanto, por causa do seu asco.

– Diga-me uma coisa na qual dependemos deles. – Desafiou Lily.

– Ter filhos. – Disse Wanda, séria – E eles também podem ser nossos brinquedinhos de prazer, se você não for fresca. Além disso, eles são tão racionais e inteligentes quanto nós, não são nenhum animal estúpido.

– Vocês vivem brigando assim? – Interrompeu Bruna.

– Normalmente. – Disseram as duas, em coro.

– Mas geralmente temos homens à nossa volta para usar de exemplo. – Acrescentou Wanda.

– Vocês são estranhas. – Brincou Aaminah.

– Não. – Retrucou Wanda, sorrindo – Só eu sou estranha. Ela é fresca mesmo.

– Sua vadia. – Lily deu uma tapinha na nuca de Wanda, brincando.

E assim as concubinas ficaram conversando até a hora de dormir.

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