[Conto] Lendas do Dragão do Céu: A Queda da Ampulheta – Parte 6

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Vingança é um prato que se come frio

por Gabriel Mendes

Às nove horas ele ouviu, mas esse barulho era diferente. Vinha do Leste, muito alto e difícil de descrever. Mas ele sabia o que era. Sorrateiramente, escondendo-se nos matos e sem fazer barulho ele se reposicionou para observar a caravana que chegava. Teve que cruzar o oásis inteiro até chegar à outra borda, de onde podia ver muito bem os invasores. Eram muitos cavaleiros vindo em ritmo de viagem. Pareciam cansados, uma nuvem de areia não muito alta os seguia por onde passava. Cerca de vinte à frente, todos armados, e não se podia ver muito do que estava atrás: algumas carroças, mas essas deixavam uma nuvem de poeira que ocultava o que estava atrás.

Resolveu aparecer para conversar, pois dificilmente seria ferido. Mesmo se o Sol incidisse diretamente sobre sua pele, ainda resistiria ao toque do aço. Mas aqueles cavaleiros não teriam aço, pois no Deserto dos Desertos o melhor metal à disposição para armas era o Ferro Vermelho – famoso pela maleabilidade e resistência a ferrugem, mas não muito eficiente na fabricação de armas. Os cavaleiros continuaram e subiram a pequena elevação do oásis. Era uma colina de areia pouco íngreme e com cinquenta metros de altura. O oásis ficava numa depressão, no topo da colina.

O líder dos cavaleiros parou à sua frente. Desceu do cavalo e abriu seu turbante, que protegia seu rosto das areias do deserto. Era um homem alto para o padrão da região, vinte centímetros mais alto que Ley, com nariz protuberante, barba grande, olhos marrom-claro, pele escura – o que era típico da região. Os ombros eram largos e suas vestes eram feitas com tecido tingido de múltiplas cores. Ele parou diante de Ley e o cumprimentou em Língua Geral.

– Bom dia, forasteiro. – Disse o líder dos viajantes – Meu nome é Askia, líder da tribo Songhai.

– Meu nome é Ley – Respondeu o homenzinho vestido de preto, com roupas cobrindo o corpo e o rosto. Os braços estavam cruzados e ele se recostava em uma palmeira.

Askia curvou levemente a cabeça em cumprimento, Ley fez o mesmo. Era um gesto universal de paz entre os Humanos.

– Quantos trazes contigo, Askia? – Perguntou Ley.

– Meu povo. Somos cerca de cinco milhares de pessoas, sendo mil e quinhentos guerreiros. – Respondeu o líder – Estamos indo para Coppah, mas antes iremos passar alguns dias aqui para descansar.

– E o que farão em Coppah? Se me permite perguntar.

– Não é de seu interesse. – Retorquiu Askia rispidamente.

– Creio que seja, Askia. – Retrucou Ley, sério – Tenho assuntos mal resolvidos em Coppah.

– Então nos conte. – Disse Askia, sacando uma rústica espada de ferro vermelho e apoiando-a no ombro – E talvez eu lhe conte nossas intenções.

Ley convidou Askia e sua tribo para adentrarem o oásis e montar acampamento, prometendo ajudar e contar sua história depois. O grupo que viera com Askia, cerca de 50 homens, era de batedores. O resto da tribo chegou nas horas seguintes em uma caravana gigante. Os Songhai não eram muito amigáveis com os nórdicos, mas Ley provou ser bastante gentil e pacífico e logo fez amizade com o povo. Os Songhai eram muito parecidos entre si, mas era possível diferenciá-los um dos outro. Ao final da tarde, a tribo se encontrava instalada ao redor do lago principal, com várias fogueiras diante de cada barraca. As barracas eram muito grandes, abrigando uma família cada uma. 800 barracas foram erguidas pelos Songhai, com os mais ricos e importantes no centro. Ao menos havia espaço mais que suficiente para todos. Ley estava na barraca de Askia, sentado em um banquinho, com um copo de madeira cheio de água na mão e várias pessoas diante dele. Eram os principais líderes e algumas de suas esposas e filhos primogênitos.

– Conte-nos sua história, Ley de Angband. – Pediu Askia, ao contar que todos estavam ali – Ouvi muitos relatos sobre sua passagem no Deserto. Mas você não estava sozinho.

– Não estava. – Confirmou Ley – Eu cheguei a Haggem no dia 24 deste mês de Outubro. Passei uma noite lá e segui viagem até Coppah. Eu estava com meu grupo e estávamos tendo um problema de relacionamento: nosso Ranger estava enlouquecendo.

– Algum espírito do Deserto? – Perguntou Askia, cuja religião politeísta acreditava que os espíritos do Deserto, bons ou maus, se manifestavam em algumas pessoas periodicamente.

– Talvez. – Respondeu Ley – Era uma Sombra, um espírito devorador de almas. Quando chegamos a Coppah, a guarda da cidade me separou de meu grupo por suspeitar de mim. Acho que as razões são óbvias: quem confiaria em um nórdico como eu à primeira vista? – Ele apontou para si mesmo, mostrando suas roupas – Quando finalmente entrei na cidade, o caos estava se espalhando por causa de nosso Ranger. Ele surtara na praça principal e espancou dezenas de pessoas. E devo dizer que ele é um homem muito grande, com muito mais de dois metros de altura.

Askia olhou para o teto de sua barraca. O Ranger o tocaria em alguns pontos.

– Quando finalmente consegui contê-lo… – Continuou Ley – Farid, um capitão da guarda da cidade tentou nos prender.

– Farid! – Askia pronunciou aquele nome com raiva, acompanhado de alguns dos líderes, que praguejaram contra o capitão da guarda.

Os ânimos estavam aflorando demais, Ley pôde perceber. Ley assentiu e continuou sua história.

– Escapei por algumas horas, mas parte de meu grupo havia sumido. Fiquei com o Ranger e a nórdica de meu grupo durante algumas horas e me entreguei a Farid para livrar meu grupo de quaisquer penas que as leis os impusessem. Farid ordenou minha execução, mas eu escapei disso com alguns truques. – Ele abriu um sorriso malicioso enquanto falava e fechou a cara quando terminou – E Farid ordenou que eu fosse enterrado no deserto. Depois de muitas milhas e horas sob o Sol escaldante, os guardas que me levavam cavaram uma cova e me jogaram lá dentro, amarrado. Depois me enterraram e fincaram minha espada na areia. – Ley tirou a espada de onde a escondera (às costas, com o cabo próximo do ombro) e mostrou aos Songhai – Demorei uma noite e um dia para me libertar.

– Você deveria ter matado Farid quando teve chance. – Disse Askia – Aquele homem é um…

– Eu caminhei para Leste quando me libertei. – Continuou Ley, interrompendo a interrupção de Askia. Ele perguntaria sobre Farid depois – Fui atacado por leões durante a noite, mas sobrevivi. Matei a sede e a fome que sentia com eles e segui viagem. Continuei caminhando até achar uma caverna, onde me abriguei por um dia. Você deve ter percebido pela minha pele que não suporto o Sol do Deserto. Lá havia um leão e vários filhotes, mas eu consegui dominá-los. Então impedi que saíssem para que eles sentissem sede e os libertei à noite. Assim, eles me trouxeram até aqui, beberam água e foram embora. Passei o dia descansando aqui até você chegar hoje.

– Como você dominou tantos leões? – Perguntou um dos mais jovens, que tinha cerca de catorze anos.

– Na vida nós aprendemos muitas coisas, garoto. – Respondeu Ley, que olhava nos olhos de aquém ele se dirigia – E algumas nós inventamos para sobreviver. E em Angband, ainda na sua idade, eu aprendi a fazer isso. – Ley não continuou falando. Apenas abriu os braços, com a espada em punho e fez a luz na barraca diminuir. Muitos se assustaram por um momento, mas a luz logo voltou ao normal (e não tinha reduzido tanto) – E foi assim que eu assustei os leões para que eles não me atacassem mesmo sendo um invasor no ninho deles.

– Você é um homem peculiar, Ley. – Disse Askia – Como fez isso?

– Askia, eu vivi coisas que você nem imagina. – Respondeu Ley.

– Então você é um feiticeiro? – Perguntou uma mulher da plateia, que era a mais velha de todas. Ela estava surpresa com o truque.

– Eu não me intitularia um, minha senhora, mas você pode me chamar assim; se quiser – Disse Ley, de uma maneira gentil e educada.

– Continue. – Pediu o mais velho de todos: um homem de setenta anos. Ele tinha barba grande e branca, um turbante roxo e estava acompanhado de sua única mulher, de cinquenta e quatro.

– Foi assim que vim parar aqui. Passei a noite bebendo água e dormi no mato ao nascer do Sol. Vocês me acordaram algumas horas depois de eu adormecer.

– Perdoe-nos por interromper seu sono, Ley de Angband – Disse Askia – Mas nós não temos tanto problema com o Sol – Askia, Ley e vários outros riram.

– Não há mal nisso, Askia. – Disse Ley, sorrindo de boca fechada – Agora eu gostaria de ouvir a história de seu povo.

– Sim. – Askia assentiu. A voz dele era grave e forte – Vocês podem ir dormir. – Ele disse para seus amigos. A maioria se levantou a foi embora conversando baixo. No dia seguinte espalhariam boatos sobre Ley fazer magias. E esses boatos cresceriam, tornando Ley um poderoso feiticeiro em questão de dias; talvez até mesmo um deus depois de alguns séculos.

Ley guardou a espada onde a deixara escondida, bebeu vários goles de água e começou a ouvir Askia.

– Os Songhai eram uma tribo que surgiu no deserto como outras tantas, uma antiga família que cresceu demais. Saímos em caravana para um oásis e construímos nossa primeira cidade. Começou como uma vila com algumas centenas de habitantes e foi crescendo com o tempo, tornando-se uma cidade. Mas com o tempo o oásis se tornou pequeno demais para a população, que já ultrapassava cinco milhares. Então alguns grupos das principais famílias montaram suas caravanas e começaram a colonizar algumas áreas em volta onde havia água. Com o passar dos séculos, as pequenas vilas se tornaram cidades e a tribo se tornou uma nação. E continuamos crescendo, atingindo quarenta milhares de pessoas. Éramos uma nação forte, nos defendíamos muito bem de invasões de bandidos e bárbaros. Mas nós não éramos os únicos a povoar o deserto. A cidade de Coppah era capital de nossos principais concorrentes, os Arabis.

– Arabis? – Perguntou Ley – Vocês todos descendem dos Árabes, correto?

– Correto. – Respondeu Askia – Os Arabis são mais próximos deles. Você deve saber que havia duas religiões principais entre os Árabes: a monoteísta e a politeísta. Os Songhai fazem parte dos que descendem dos politeístas e os Arabis dos monoteístas. Mas, como eu disse, nós não somos os únicos. Alguns povos são mais violentos e militaristas que outros e alguns são tão pacíficos que nós, os Songhai, tivemos pena de guerrear. Entenda… Para nós a guerra é algo sagrado, deve ser feita de uma forma ritualística e com adversários de igual poder bélico. Nós não tínhamos inimizade com os Arabis nem com nenhum povo mais fraco militarmente. Os Arabis foram um povo aliado e os Songhai e os Povos do Deserto lutaram lado a lado para defender o Deserto dos Desertos da invasão de Angband.

Ley encarou Askia por um momento, olhando nos olhos. Mas seu olhar não era intimidador, era como se aqueles olhos negros pedissem perdão. Askia percebeu isso e sorriu.

– Não guardamos ressentimento, Ley. – Disse o líder dos Songhai – Você não teve culpa disso. E Angband não massacrou os povos do Deserto após a conquista, pelo contrário. Angband respeitava muito os conquistados.

– Está enganado, Askia. – Respondeu Ley – Eu lutei nessa guerra.

Askia arregalou os olhos, surpreso.

– Eu me lembro de tudo. – Continuou Ley, com pesar – O ataque fulminante da Cavalaria Mandekelu e dos Smitars. Todos aqueles homens, alguns nem tinham dezessete anos. Eu era capitão do Exército de Angband na época. Eu defendi Alexandria do ataque dos Povos do Deserto. Dezesseis mil e oitocentas pessoas contra cinquenta mil guerreiros. E nós vencemos em campo aberto. Eu julgava que um cerco à cidade iria acabar conosco, então destaquei algumas tropas para combater os atacantes. Passei meses em depressão pelo massacre.

– Isso é impossível. – Retrucou Askia, após alguns minutos pensando – Ninguém vive tanto tempo.

– Eu não vivi, Askia; eu voltei dos mortos. – Respondeu Ley.

– Impossível. – Askia se levantou – Se você está brincando comigo saiba que eu não gosto de mentiras.

– Não estou mentindo. – Ley fechou a cara e se levantou – Ninguém de Angband mente.

Askia olhou nos olhos de Ley. Não havia mentiras lá. Eles ficaram se encarando por um minuto. Askia piscou algumas vezes e desviou o olhar. Ley não piscara.

– Voltar dos mortos é impossível. – Disse, por fim.

– É possível, com a magia certa. – Retrucou Ley, sentando.

– Por que está me contando isso? – Perguntou Askia.

– Eu achei que você deveria saber. – Respondeu Ley, dando de ombros – É doloroso lembrar isso. Estou impressionado com sua reação, a maioria se descontrola. Mas tu és um homem sábio, Askia.

– Você sabe por que me elegeram líder dos Songhai?

– Não. – Ley mexeu a cabeça em negação – Pode me dizer?

– Porque eu, além de líder nato, conheço o nosso povo muito bem. O líder dos Songhai deve entender de história, religião, conhecer muitas pessoas bem e ser um bom administrador e guerreiro. Por isso os Songhai são oligárquicos. Há um líder principal, mas ele não lidera sozinho.

Ley assentiu – Pode continuar sua história?

– Com prazer. – Askia voltou a sorrir – Não me leve a mal, você é um bom homem, Ley. Não se penalize pelos crimes que cometeu séculos atrás.

Lágrimas brotaram dos olhos de Ley enquanto ele assentia; estava se lembrando de uma jovem que matou a sangue frio durante um ataque a uma cidade.

– Estávamos contando das guerras, certo? – Prosseguiu Askia – Pois bem… Depois da conquista e da libertação pela Aliança Elementar, tudo voltou ao normal. E houve paz durante muitos séculos, com algumas guerras por esporte. Trezentos anos atrás, os Arabis traíram os Songhai e invadiram nossas cidades. Nós não estávamos preparados para um ataque assim, pois acreditávamos que as tropas Arabis vinham nos ajudar no conflito com os Egípticos. Mas os Arabis atacaram nossas cidades com máquinas de cerco e destruíram tudo. Os Songhai forma banidos de suas terras e passaram a vagar nômades pelo Deserto. E agora, após três séculos, nós vamos nos vingar.

– Como? – Perguntou Ley. Apenas Askia e Ley estavam na área comum da barraca, mas a mulher de Askia pôde ouvir quando Ley confessou ter sido ressuscitado.

– Os Arabis estão com números reduzidos. Seus exércitos estão concentrados no Norte, enquanto o Centro está desprotegido. Coppah é relativamente isolada no resto do califado e protegida pelas montanhas e morros. Atacaremos a cidade em duas semanas, temos tudo pronto.

Ley assentiu enquanto usava sua visão especial para ver a alma de Askia. O líder dos Songhai estava limpo.

– Por que está me contando isso? – Perguntou Ley.

– Porque eu achei que você deveria saber. – Respondeu Askia, piscando um olho.

– Posso inspecionar suas tropas? – Perguntou Ley, sorrindo.

– Claro! – Askia sorriu – Você tem mais experiência militar do que qualquer um aqui. E você conseguiu vencer cinquenta mil com apenas dezesseis.

– Mas considere que eu tinha algumas tropas especiais. Ainda assim, se contarmos com todos os fatores, eu estava em desvantagem.

– Seria ótimo ter um comandante como você para nossas tropas. – Askia mantinha a expressão de bom humor – Infelizmente, não temos armas de cerco e só temos nossa cavalaria.

– Ainda são os Mandekelus? – Perguntou Ley. A cavalaria Mandekelu era famosa por ser especialista no ataque a cidades muradas, mesmo sendo uma cavalaria pesada.

– São. – O sorriso de Askia se alargou, pois ele via que Ley estava interessado – E nós somos quinze centenas.

– Ótimo. – Ley assentiu – Podemos dividir essas forças em quinze centúrias, cada uma com um comandante; todas atacando em pontos diferentes e de forma coordenada. Irei espionar a cidade enquanto você prepara as tropas. – Ley suspirou ansioso – Estava com saudade disso.

– Isso o quê? – Perguntou Askia.

– A guerra, Askia. – Respondeu Ley, sorrindo – A adrenalina do combate, o sangue banhando a espada, os gritos, os barulhos, a correria. – Ley sentia o sangue ferver, se lembrava dos antigos combates no Deserto – A sensação de derrota anunciada, a reviravolta em combate, a cavalaria avassaladora correndo pelas estepes e batendo de frente com a parede de escudos, o avanço pelos flancos, a carga dos Uruk-Hai… – Ley parou por um momento ao se dar conta de que estava contando a Askia como vencera os Mandekelu no passado, mas o líder dos Songhai apenas sorria e assentia; estava animado pela expectativa de ter um bom general – A magia do momento, o prazer da vitória conquistada com sangue, suor e lágrimas.

– Ótimo. – Disse Askia, guardando o estranhamento que sentiu pela divagação de Ley – Sinta-se à vontade para descansar e começar a trabalhar amanhã.

– Hoje. – Retrucou Ley – Eu começarei hoje Askia. Posso ir a Coppah e voltar antes do amanhecer. Descansarei durante o dia, dormindo nas horas de Sol mais forte e organizarei o exército nas horas mais amenas.

– Você é livre. – Disse Askia – Vou comunicar a meus generais. Tenho certeza que poderemos tomar a cidade com menos baixas do que esperávamos antes de você aparecer.

– Mas eu não vou ficar para administrar o campo depois da vitória. Tenho trabalho a fazer. – Disse Ley, sério – Cabe a você segurar a cidade e liderar seu povo.

– Eu posso fazer isso. – Disse Askia – Confie em mim.

– Eu confio, Askia. Seu povo é bom e justo, eu pude perceber isso durante esta tarde.

– Então eu lhe agradeço. – Askia curvou-se em cumprimento – Irei dormir. Verei-lhe amanhã para planejarmos o assalto.

– Boa noite. – Disse Ley, curvando-se também.

E saiu para Coppah em uma Viagem nas Sombras.

Continua…