Por Alan Cosme
– Faz sentido, Renato. Foi quando mãe morreu que ele começou a ficar desse jeito.
– Não caia nessa, Joana! Foi só coincidência. Alias, nem dá para considerar uma coincidência já que os dois fatos são tão desconexos. O que a morte de dona Judite tem a ver com a história?
O casal conversava na cozinha em quanto a visita esperava na sala. A intenção era tornar a conversa privada, mas como resultado dos ânimos exaltados os dois se expressavam alto o suficiente para serem ouvidos. Marido e mulher discutiam sobre a credibilidade da visita.
A visita não era social, o homem a esperar na sala era um prestador de serviço. Qualquer outro trabalhador em sua situação poderia ficar ofendido ao ouvir tais questionamentos à sua honestidade. Mas Marcos Mignola já estava habituado a isso. Alguém no seu ramo de atuação logo aprende a se acostumar com a desconfiança alheia.
– Você notou os braços dele?! Que tipo de pessoa espiritualizada tem os braços tão tatuados assim?
– Do tipo que é espiritualizada o suficiente para não se importar com padrões sociais. Você já notou o que suas tatuagens representam?
– Porra, Joana! Nosso filho precisa é de tratamento, não da “ajuda” de um maluco que só irá piorar as coisas.
Marcos ignorou todos os comentários a seu respeito, menos aquele último. Já que o pai do garoto não estava totalmente equivocado. De fato Marcos já passou um tempo internado em um manicômio. Por motivos óbvios aquele detalhe era melhor não trazer à tona no momento. O que mais lhe doía é que as vezes achava que aquela versão dos fatos era a coerente. Que seu dom seria só a expressão de uma loucura.
– Desculpa interromper. – Disse Marcos ao entrar na cozinha. – Façamos assim, não irei cobrar pelo trabalho antecipadamente como o habitual. Vou fazer o meu serviço e daqui há um mês eu volto. Se o garoto melhorar eu recebo o combinado, se ele continuar na mesma eu não ganho. E então?
Oferta tentadora essa que até mesmo Renato ficou inclinado a aceitar. Apesar de se considerar cético, Renato via fatos sobrenaturais com um certo receio. Ele não gostava de confessar isso nem para si mesmo, mas uma parte dele acreditava.
Assim como Marcos tinha um pouco de ceticismo temperado em sua espiritualidade, Renato tinha um pouco de espiritualidade temperada em seu ceticismo. Apesar das pessoas não gostarem de tê-la, um pouco de duvida temperada em qualquer tipo de raciocínio faz bem.
Só os fanáticos tem certeza de tudo.
– Tenho medo de que ele vá deixar o garoto ainda mais confuso. – Confessou Renato.
– Mais do que já tá? Duvido. – Rebateu Joana. – Até porque será só uma consulta. Quanto mal dá para fazer em cinquenta minutos?
Renato arregalou os olhos ao pensar na resposta. – Só aceito se eu estiver presente.
– Tudo bem. Mas vou logo adiantando que você não verá muita coisa.
O trio seguiu rumo ao quarto do adolescente. A porta havia sido trancada e a mãe estava com as chaves. Ao destrancar o quarto Joana se justificou por saber que a situação era estranha. – Se a gente deixar a porta aberta ele vai acabar saindo para a rua. – Marcos não precisou ser médium para ter percebido o temor dela de julgamentos. Para tranquilizá-la, ele apenas negou levemente com a cabeça e exibiu um sorriso de piedade.
O garoto estava nu encolhido no canto do quarto. Não tinha nada nele que o diferenciasse de qualquer outro adolescente saudável de quatorze anos.
– Querido, não quer se vestir? Temos visita. – Pediu Joana com o coração na mão.
– Quero, mas ela não deixa. – Ao ouvir aquela resposta Joana não aguentou e teve que pôr a mão na boca para engolir o choro.
Marcos sentou na cama de modo a sua vista ficar na direção do menino.
– Calma, tio, eu sei que dá para fazer. – Marcos achava que estava sussurrando, mas o pai do adolescente ouviu.
– O que disse?
– Nada. Estava só pensando alto.
Marcos ajeitou a coluna, relaxou o pescoço e fechou os olhos.
– É assim que você vai livrar o menino do encosto? – Perguntou o pai sem esconder o tom de escárnio na voz.
– O único encosto que conheço é o de cadeira. – Renato suspirou aliviado acreditando que talvez o suposto médium não fosse tão maluco assim. Aquela pequena fagulha de confiança morreu quando ele ouviu o resto da resposta. – Obsessor, demônio, encosto… Esses nomes são usados só por aqueles que não são instruídos o suficiente para entenderem como as coisas realmente funcionam. O que perturba o seu garoto pertence a espécie dos Encantados. Mais precisamente à raça Succubus.
Durou muito menos do que um segundo, mesmo assim Renato notou. Marcos sumiu do quarto e depois reapareceu. Como aquele fato contrariava muito a sua concepção do que seria possível Renato não o assimilou. Preferindo acreditar que foi só alguma pegadinha armada por seu cérebro. Mas se foi esse o caso, por que a roupa de Marcos ficou toda machucada e seu corpo ganhou alguns hematomas?
– Pronto. – Respondeu Marcos após meio segundo de serviço. Um exorcismo recorde.
– O quê? Só isso?!
– “Só isso”? Deu um puta trabalho. – Como se tivesse feito algo trivial, Marcos calmamente saiu do quarto e caminhou rumo à saída da casa, ainda que mancando. – Volto no mês que vem.
XXX
Ao passar a língua nos dentes ela notara que os trinta e dois estavam intactos. Seus cabelos voltaram a ser belos e brilhantes. Sua pele que antes era flácida ganhou firmeza, além de ter perdido o tom encardido trazido pela idade. Tudo nela que era flácido se tornou firme. Judite voltou a ter um belo corpo, apesar de tecnicamente ela não ter mais corpo nenhum.
As curvas que o tempo levou, a morte trouxe de volta.
Os seus sentidos voltaram a ficar afiados. Sua visão, seu tato, sua audição, até mesmo sua mente. A lentidão no raciocínio não era mais um problema.
A única recordação de sua velhice era o vestido que usava. Uma roupa sem graça que fora projetada tendo em vista alguém que já desistira da vaidade. Assim que ela notou tal recordação ao se olhar no espelho ela tratou logo de tirá-la e jogá-la bem longe.
Ao olhar para si mesma no reflexo ela se alegrou com o que viu, algo que há tempos não acontecia.
Os sentidos, o corpo, a mente, tudo voltou ao que era antes, inclusive o desejo. Sendo que esse último veio com bônus.
Ao olhar à sua volta, Judite reconheceu a casa que viveu até o dia de sua morte. Só que ela estava diferente. Se tornou uma explosão de cores, sendo que muitas delas eram inexistentes no nosso plano. Alguns móveis mudaram de lugar, alguns cômodos surgiram em detrimento de outros. Falando assim até parece que Judite se encontrava em uma casa completamente diferente. Mas não. Para ela tudo era familiar.
Ao entrar em um dos quartos, Judite viu um garoto levantar da cama. A mulher achou o rapaz atraente, tanto que passeou a língua pelo lado de fora da boca, como uma personagem de desenho animado faz ao encontrar uma comida apetitosa.
Quando o garoto se pôs de pé, ela se aproximou. O garoto estava com pouca roupa, vestido apenas com uma cueca samba-canção. Mesmo assim Judite achou que era roupa demais.
Em outro lugar, mas no mesmo plano ou em outro plano, mas no mesmo lugar…
Até considerando somente a nossa realidade, o tempo é relativo. Quando coisas como dimensões paralelas, universos alternativos e multiverso entram na equação tal conceito eleva-se ao ridículo. Meio segundo pode virar vários dias e um século pode virar milésimos de segundos.
Nem perca seu tempo queimando os neurônios tentando entender essa relatividade.
Marcos foi materializado em uma rua cujas casas permaneciam de pé, mesmo desrespeitando todas as regras da arquitetura e do bom senso. Isso era o de menos, já que algumas até voavam ao sabor do vento.
Mas que vento?
Ao se perceber no plano astral, Marcos estendeu os braços e respirou fundo. Seu rosto exalava contentamento. – Como senti falta desse mundo que não faz o menor sentido!
– MARCOS! – Seu nome apareceu em destaque como se o céu fosse um grande letreiro. As letras foram acompanhadas por uma voz gutural e ameaçadora. Talvez um outro em sua situação ficasse assustado, mas não ele. Como conhecia quem estava por trás disso, Marcos não conseguia sentir medo. É difícil ficar aterrorizado quando se tem conhecimento.
O enorme gorila azul apareceu diante de Marcos em um salto.
– Oi, Abastos. Como vai meu Skunk Ape favorito?
– ROOOAAR! Falei para você só aparecer aqui com o que me deve, não foi?
– Escuta, amigo. Estou no meio de um trabalho e…
O gorila estalou os dedos fazendo com que outros Encantados que se encontravam escondidos se revelassem.
– Se você prefere desse jeito, para mim tudo bem. – Marcos fez um gesto de pegar solto no ar. Ao completar o gesto sua mão antes vazia foi preenchida com a bainha de uma espada.
A espada era grande ao ponto de seu manejo ser impraticável. Ninguém consegue segurar tanto metal por tanto tempo sem se cansar. Mesmo assim, Marcos com ela conseguiu eliminar todos os companheiros do gorilão. Nesse caso uns bichinhos estranhos que mais pareciam bonecas de porcelana aladas.
Para enfrentar o Skunk Ape, Marcos presumira que iria precisar de algo mais potente. Na velocidade do seu pensamento a espada se converteu em um gigantesco machado rubro.
A arma talvez fosse eficaz se acertasse o alvo. O Skunk Ape desviou no último instante e aplicou em seu oponente um soco tão fenomenal que o fez voar para os céus como um foguete. Para terminar o que havia começado, o gorila ainda deu um de seus supersaltos e acertou a coluna de Marcos quando ele ainda estava em ascensão. O foguete ascendente agora descia duas vezes mais rápido do que na subida, atravessando o solo e indo parar em um local completamente diferente.
– Porra, que dor nas costas. – Marcos perdeu os sentidos por alguns instantes, ao despertar se viu dentro de uma cratera provocada por sua entrada no recinto. Marcos demorou um tempo para despertar e o dobro desse tempo para tomar coragem para se levantar.
Para finalmente ficar de pé ele demorou ainda mais.
Enquanto tomava coragem, Marcos viu uma barata do tamanho de um cachorro pequeno. Ela não era nojenta, já que sua pele não era viscosa. Mais parecia um brinquedo de plástico gigante.
– O que você fez em vida para merecer terminar desse jeito, amiguinho? – Se a barata entendeu o que lhe foi questionado não fez sinal, apenas saiu correndo para outra direção.
Marcos se percebeu na versão onírica da casa da família do garoto problemático. O soco o levou até lá porque ele queria estar lá.
Nem perca seu tempo queimando os neurônios tentando entender essa geografia.
Novamente o super médium materializou sua espada, já preparado para enfrentar um monstro terrível. Após entrar no quarto equivalente ao do adolescente Marcos encontrou o monstro. Mas não era quem ele esperava ser.
A succubus monstruosa o recebeu com um olhar curioso e ingênuo. Poderoso o suficiente para deter o avanço de sua espada. Marcos descartou sua arma e tentou resolver aquele problema de uma maneira mais civilizada.
– O que está fazendo?
– Deixando ele feliz. – Marcos olhou para o garoto encolhido no canto do quarto e constatou que ela dizia a verdade. O problema era que o menino estava feliz demais.
– Não. Assim não pode.
– Por quê? – Ela era egocêntrica, sem nenhuma noção de moral e movida exclusivamente pelo desejo. Ou seja, uma criança de quatro anos. Uma criança em um corpo escultural de dezoito. Sem ter ninguém para guiar só podia dar em uma coisa: merda.
Marcos pegou um vestido sem graça que estava jogado no canto e a entregou para vestir. Ela protestou, mas acabou sedendo. – Sem vestido, não pode.
Marcos respirou fundo já se cansando só por ficar ciente da batalha que teria pela frente.
Após um tempo impossível de mensurar Marcos chegou à conclusão de que seu trabalho fora bem sucedido. Era o momento de partir.
Foi difícil a despedida, já que a succubus se afeiçoou a ele. Agarrando o seu braço e não querendo deixar que fosse embora. Apesar do contato direto de pele com pele entre os dois Marcos nem mais conseguia se sentir tentado. Seus olhos só conseguiam ver uma criança birrenta.
Do lado de fora da casa astral a succubus fez um pedido. – Pode?
– Tá bom. Pode.
Ela então arrancou seu vestido e o jogou longe, se sentindo novamente livre. Para deixar as coisas bem claras, antes de deixá-la Marcos reforçou sua mais importante lição.
Para ela poder melhor compreendê-lo, Marcos acompanhou com o gestual o que a sua fala dizia. – Aqui pode. Na frente dele não pode.
– Tá.
Marcos deixou a casa astral da família caminhando rumo ao mundo real quando o seu nome apareceu gigante no céu acompanhado por um grito. O gorila azul estava de volta. – MARCOS!
O Skunk Ape de um salto apareceu diante de Marcos. – Cadê o que me deve?!
– Porra, Abastos, deixe de pressa. Depois eu resolvo isso.
– Tá certo então. – O Skunk Ape estalou os dedos fazendo que mais Encantados surgissem. – Fiquei sabendo que você estava à procura de uma Succubus, então resolvi te fazer um favor. Trouxe uma Succubus e um Inccubus. Foi difícil achar dois genuínos em meio à tanta falsificação, mas eu consegui.
Eles eram dois, mas se mostravam tão colados que chegavam a ser um. Egocêntricos, sem nenhum senso de moral e movidos pelo desejo. A única diferença era que o que desejavam não tinha nada de bom e sabiam disso. E gostavam.
Para essa batalha Marcos materializou sua espada. Dessa vez iria precisar.
XXX
Um mês depois, Marcos voltou à casa da família. Antes mesmo de entrar na rua ele sorriu ao ver a confirmação de que seu trabalho foi bem sucedido. O filho do casal caminhava uniformizado para a escola com a alegria de quem não precisava confrontar nenhum problema sério. O adolescente passou ao seu lado, ignorando-o por não reconhecê-lo. Do jeito que sua cabeça estava ruim na ocasião, não dava para exigir que ela se recordasse de muita coisa.
O médium ainda ficou a acompanhar o andar do garoto, vendo-o sair da rua e se encontrando com uma menina da mesma idade. Os dois se beijaram fazendo com que Marcos entendesse que estavam namorando ou ao menos ficando.
O menino tinha tudo para dar certo com o sexo oposto, já que ao contrário da maioria constava com um cupido particular. – Isso mesmo, Judite. – Comentou Marcos mais para si mesmo do que para qualquer outra pessoa, viva ou morta. Marcos via o namoro do casal com olhos que a maioria não tinha. – Se é para mexer com a vida do menino que faça de maneira produtiva. Só não vá enfiar o pé na jaca de novo.
Marcos tocou a campainha. Enquanto esperava ser atendido ouvia uma conversa privada do casal. Não que ele fosse indelicado, o problema era que simplesmente não dava para não ouvir. Certas pessoas não conseguem ter uma conversa particular em um tom discreto.
– O garoto só melhorou por causa do tratamento médico. A pajelança do figura não teve nada a ver com a história. Foi só coincidência. Alias, nem dá para considerar uma coincidência. É análogo a precisar tomar três copos d´água para fazer uma pilula de matar sede funcionar.
– Já notou que você só considera coincidência aquilo que favorece sua opinião? O tratamento médico ao qual você se refere deve ter sido milagroso então. Só duas consultas no psiquiatra e o menino ficou curado! Profissional bom do caralho esse, né?
– Quer saber, pague o charlatão. Setecentos reais não vão nos fazer falta já que a gente tá nadando em dinheiro.
Marcos foi recebido por um sorriso amarelo quando a porta se abriu. Ele manteve a expressão dura para deixar claro que ouviu tudo. Sem dizer palavra ele tomou o dinheiro da mão de Joana e partiu.
No meio do caminho de sua casa, Marcos teve uma conversa com alguém que só ele podia ver e ouvir.
– As vezes essa falta de respeito com o meu trabalho me cansa, tio.
– Você quer enganar a mim?! O que te chateia, “senhor espiritualizado”, é que uma parte sua acha que Renato tem razão.
– Tenho total convicção no que faço e no que sou.
O fantasma riu como se tivesse ouvido a mais absurda das piadas. – Você viajou com seu corpo físico ao plano astral, não conheço nenhum médium capaz de fazer isso. E nem me venha com uma explicação que tenha a palavra “quântica” no meio. Confesse, as vezes você tem duvida de que sequer é humano.
Marcos fitou seu tio com fúria injetada nos olhos. – Não venha me perturbar com duvidas! Saia daqui! Você só quer me confundir! Você não é nenhum guia espiritual, é só mais uma porcaria de atraso na minha vida fodida! – Uma pessoa que briga sozinha na rua chamaria atenção, mas tendo em vista o que começou a acontecer ao redor aquele fato perdeu relevância.
Só quando Marcos se acalmou é que ele percebeu o que tinha feito. Janelas de casas e veículos se quebraram, postes empinaram, o asfalto ganhou várias rachaduras. Apesar de gritar com um interlocutor invisível, ninguém se importou com isso. Quem liga para um estérico em meio à um terremoto?
Marcos olhou para o que fez sem acreditar. Ainda bem que seu tio (de consideração) estava presente para colocá-lo nos eixos.
– Está vendo? – Indagou o fantasma. – A duvida que coloquei em sua cabeça foi pertinente, não?