[Conto] 1963 [Um conto no universo do Chaves]

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por Rodrigo Rahmati

Voltar para aquele lugar era exatamente o que me faltava para escrever esse relato. Passeando pelos entulhos, as memórias pulavam através do chão, dos escombros e do tempo, e surgiam em minha frente, por todos os lados. Apesar do estado em que a antiga vila se encontrava, para mim era como se nada houvesse realmente mudado — o tanque aqui, o vaso de flor ali, a porta que já não havia sob o batente, os tijolos à vista, na parede quebrada… E mais do que o lugar que eu imaginara, ao pé da escada, me atraiu a casa onde encontrei todos aqueles documentos. O arrependimento de tudo o que fiz com a pessoa que ali morava era quase doce, como são todos aqueles que se referem às travessuras dos tempos de criança, mas mesmo assim eu desejava uma nova oportunidade de dizer a ela o quanto eu era grato por todos aqueles anos.

Já não há a parede lateral da casa, como já não há sua moradora, e assim como já não há mais o número branco e nem mesmo a porta onde ele era lido, mas isso não impedia que eu o visse como a uma projeção, exatamente no lugar onde sempre esteve — um mal desenhado 71, à altura dos meus olhos.

Naquela casa eu encontrei, há mais de trinta anos, aqueles papéis que se referiam a outros quatorze anos passados, e as coisas que neles li e que pesquisei e que imaginei por eles inspirado fazem assim minha narrativa voltar ao longínquo começo da década de 60.

***

Rubem subiu a rua da editora com as palmas das mãos suando de nervoso, diversamente ao suor do rosto, que nada mais era do que o reflexo do esforço e dos quase quarenta graus. Ainda não sabia do que trataria no prédio que finalmente surgiu à sua frente, mas só podia ser uma única coisa — recusas eram dadas por telefone, carta ou não eram dadas de forma nenhuma, o que apenas contribuía com seu ataque de nervos. Quase automaticamente passou pela recepcionista; apesar de não ter reparado, deve ter dado seu nome automaticamente umas três vezes até ser enfim chamado na sala do editor-chefe.

O homem era pequeno, tinha pelo menos a metade de seu tamanho — o que também não era assim tão incomum — e cara de pelicano asmático. No instante em que Rubem deitou seus olhos sobre ele, teve a certeza de que nada de bom poderia sair de sua boca. Somente após umas dez frases concluídas vagamente, ele conseguiu focalizar sua atenção ao monólogo do homem.

— …então, com todos esses problemas financeiros, nós decidimos dar uma chance para que você procure uma casa mais adequada ao seu manuscrito, que não deixa de ter inúmeros atrativos como obra paradidática. — Rubem olhou para o teto, que começava a descascar a pintura, e respirou fundo.

— Então por que motivo ou causa vocês fizeram com que eu viesse aqui, nessa distância, para ouvir algo que eu poderia ter sido comunicado com um texto pré-escrito?

— Porque temos uma proposta para fazer-lhe, Sr. Girafales.

***

— Estou certo de que ele foi por aqui — disse um dos dois homens, o que estava de terno cinzento. O outro, que parecia um esportista, balançou negativamente a cabeça.

— Vamos então, mas eu não estou tão certo assim.

Assim que ambos se distanciaram, Ramón abaixou o jornal que fingia ler e o deixou para trás, junto com o paletó e o chapéu “emprestados”, em cima do banco da praça. Quando estava quase alcançando a esquina, correu para alcançar os disfarces, mas desajeitadamente não conseguiu alcançar tudo; meteu o chapéu na cabeça e o casaco por cima dos ombros e se virou para uma vitrine que exibia televisores novos em folha, bem a tempo dos dois homens passarem às suas costas. Ufa, essa foi por pouco, pensou Ramón, mas mal se virou percebeu os dois homens parados às suas costas. Ai minha santinha, rezou ele, mas os dois não davam mostras de tê-lo descoberto debaixo daqueles panos tão novos — estavam concentrados no que mostrava o televisor. Antes que comentassem alguma coisa, Ramón decidiu prestar atenção na programação, também interessado pela novidade das tvs em cores.

— …uma notícia para fazer a felicidade dos amantes dos esportes em todo o México — dizia o repórter de cabelos escuros. — Ontem, 18 de outubro, a Cidade do México bateu as cidades de Detroit, Lyon e Buenos Aires na preferência do Comitê Olímpico Internacional e foi escolhida como a sede dos XIX Jogos Olímpicos, ainda no primeiro turno de votação…

— Impressionante, não? — disse um dos dois homens às costas de Ramón. Ele rezou para que fosse uma pergunta retórica (não que ele soubesse o que isso significava).

— Estamos precisando é de uma revolução, não de festas — grunhiu o outro. Ramón suspirou, mas logo se arrependeu, com medo de chamar a atenção dos dois. — No fundo — continuou o homem, só prestando atenção aos próprios pensamentos —, é só para mostrar como um país do Terceiro Mundo está se desenvolvendo patrocinado pelos States.

Ai se me perguntarem o que acho disso… Melhor prestar atenção na tv, pensou Ramón.

— …os países, pela primeira vez, mais de cem — dizia outro repórter, bem mais velho que o primeiro. — Além disso, apesar dos jogos do ano que vem serem em Tóquio, no Japão…

— Será que ele acha que a gente não sabe que Tóquio é no Japão? — perguntou um dos homens, e o outro o mandou se calar.

— …se pergunta se a altitude da Cidade do México não causará danos respiratórios aos atletas — disse, quase rindo, o repórter.

— Um tanto melhor para os nossos atletas — disse o outro, menos eficaz em conter o escárnio.

— Que altitude o quê — disse um dos dois homens, finalmente indo embora ao lado do outro.

Quase sem poder evitar o alívio, Ramón apoiou-se na vitrine e soltou todo o ar que tinha retido naquele tempo, um verdadeiro recorde olímpico. Contudo, para não abusar demais da sorte, decidiu-se dessa vez continuar com o casaco marrom e o chapéu azul por mais algum tempo.

***

— Meu amor, não vá! — chorou Florinda, agarrada à beira da casaca da farda branca de seu marido.

— Sim, me vou! Sabes que não posso deixar de seguir meu destino — anunciou ele, como se falasse com um nobre ou fosse um. Florinda sempre achara graça nesse seu jeito, mas naquele momento tudo o que queria era poder dar-lhe uns safanões para que ficasse ao seu lado, mas com Frederico sua agressividade parecia sempre arrefecer. — Prometo retornar em breve, meu amor! Sabes também — acrescentou, ao ouvido da esposa —, que agora me destes um motivo muito mais forte para que retorne ao lar. É a primeira vez que sou chamado após o nascimento de nosso tesouro, e por isso mesmo devo atender prontamente, ou posso ser desligado. E sabes bem que não aceitarei que jamais qualquer um dos meus passem dificuldades. Devo ir, minha vida, mas voltarei, oh, sim, prometo voltar — concluiu, e saiu abruptamente, antes que fosse tarde demais.

Do outro lado da porta, Frederico hesitou, com o coração pesado, e quase tornou a abri-la, mas obrigou-se a ser forte e, na rígida postura militar, partiu em direção ao automóvel que o levaria ao porto. Se voltasse, não teria suportado ver Florinda chorando, ajoelhada ao chão, e ouvir seu recém-despertado filho — pouco mais que um bebê — chorando no quarto, e teria ficado junto a ela, escapando assim de seu inevitável destino. Mas não voltou. Nunca voltou.

***

“Só gostaria que a senhora entendesse…”, dizia o homem ao telefone.

— Que não cabe ao senhor; sim, seu sei, eu sei — concluiu Clotilde Fernandez, com os olhos baços. Sabia muito bem onde aquilo ia chegar. — Venha às 18 — disse, batendo o telefone.

Quase automaticamente repetiu o trajeto que já estava se acostumando — abrir sua bela caixa de joias, olhar uma por uma, rememorar todas lembranças, boas e ruins, que cada uma delas encerrava, que cada pedra contava, que cada brilho refletia, escolher a que menos dor e menos lágrimas lhe trouxessem… Mas, por fim, como ela já imaginara antes, nada mais restava que cobrisse aquela dívida de seu finado marido… Mais aquela dívida… Que ela esperava que fosse realmente a maior de todas. Virou todo o conteúdo da caixa na velha seda da cama e tomou a caixa em si entre as mãos. Talvez valesse mais que o valor devido, certamente valia, mas era seu único pertence que a saldava. Passou o dedo pelos desenhos que os pequeninos brilhantes incrustados na tampa faziam… Sua mente viajou enquanto seu tato discernia cada elevação, cada curva, cada entalhe…

Mas ela já quase não era mais a mesma pessoa daquelas lembranças. O tempo… a falta de sono… as privações… tudo aquilo contribuía para aquelas marcas, também incrustadas em seu rosto como as joias na tampa que ostentava aquele espelho que a refletia tão duramente. Alternando o foco do olhar para um ponto atrás do espelho, viu sua foto de outrora como que zombar de seu futuro. O olhar daquela moça por trás da faixa de Miss era demasiado acriançado para que pudesse preocupar-se com qualquer futuro. Seria aquela a vida real ou seria essa? Nem mesmo a madeixa esbranquiçada que lhe caía agora sobre os olhos sequer assemelhava-se àquela jovem que tinha o México sob seus pés… Mas em uma coisa, sim, uma única coisa as duas ainda se assemelhavam — tinham pouco mais que nada, uma no começo da fama; a outra no fim da vida, se Deus assim permitisse.

Quando acabassem as joias, lhe restaria apenas a casa; os móveis já tinham ido há tempo. Quando fosse a casa… que os anjos lhe tivessem misericórdia.

***

— Então o pacote fecha com um prédio comercial no bairro, duas casas e três terrenos — dois deles muito bem localizados, diga-se de passagem — disse o baixinho careca com cara de rato. Zenon podia dizer que chegava até a gostar dele. Era espirituoso.

— Naturalmente vou querer visitá-los todos — disse Zenon, analisando os documentos uma última vez.

— Ora, será necessário, meu amigo? — perguntou o cara de rato. — Há quantos anos negociamos!

— Eu insisto — disse Zenon, sorridente mas conclusivo. — Sabe que é o meu modus operandi. Acompanho pessoalmente todos os meus negócios, mesmo os de Mérida ou Ciudad Juárez.

— Como quiser, meu amigo. Veremos o prédio e as casas… Terrenos são todos iguais, não é? — riu o outro.

— Quero ver inclusive esses. Ou há algo que…

— Não, não, claro que não. Claro… — que sim, pensou apenas, rindo ainda mais amarelo.

***

— Venha, Lara. Venha! Você não precisa dessa gente — rosnou Emilio, arrastando a namorada por uma mão e sua mala pela outra.

— Não precisa mesmo — rosnou de volta a mãe da moça, exprimindo asco em cada músculo de sua face. — E faça o favor de nunca precisar.

— Mamãe — chorou a jovem Lara.

— Não me chame mais assim — cuspiu a velha. — Não que algum dia eu vá te atender, seja pelo que quer que me chame — acrescentou, batendo a porta à cara dos dois. Lara quase desabou, mas Emilio a arrastou para a rua.

Andaram silenciosos por muitos quarteirões; Lara contendo o desespero e Emilio a fúria. Somente quando a moça começou a soltar leves gemidos causados pela dor nos pés machucados pelo sapato apertado, eles pararam e sentaram-se no banco de uma praça. Se olharam e Lara não conseguiu conter mais o choro; por meia hora esteve soluçando grudada ao peito de Emilio, até que foi acalmando-se aos poucos.

— Estou com fome — disse ela. Emilio tirou a carteira do bolso e analisou o conteúdo.

— Acho que o que tenho dá para nos manter por alguns dias — disse ele. — Quanto você tem? — Lara olhou-o com olhos chorosos.

— Minha mãe tomou minha bolsa. Não me deixou trazer nada.

— Nenhum dólar nessa sua maleta gigante?

— Não… Eu não imaginava que…

— Tudo bem, amor, tudo bem — disse Emilio, abraçando-a, e certo de que nada estava bem. — Venha, vamos comer alguma coisa. Tem um sanduíche de presunto ali que é uma delícia.

***

— Essa é a grande proposta que têm a me fazer? — perguntou Rubem Girafales.

— Eu disse que era uma proposta — respondeu o nanico com cara de pelicano asmático. Não disse que era grande. Afinal, o senhor precisa de um salário fixo para continuar criando, não precisa?

— O caso é que não tenho qualquer vocação para isso. E olha que já fiz muita coisa em minha vida. Até para toureiro já fui treinado. Mas isso… Sinceramente não me agrada.

— Bom, infelizmente, Sr. Girafales, é o que posso fazer pelo senhor. Sinto muito — disse o homem, estendendo-lhe seu original. Rubem pegou-o sem qualquer satisfação.

— Pode pelo menos fazer uma ligação, indicar-me a outra editora?

— Claro, Sr. Girafales — respondeu o homem, que sorrindo parecia ainda mais um pelicano, e Rubem imaginou que talvez um pelicano do zoológico ajudá-lo-ia bem mais do que aquele homem.

De fato, preciso de uma renda fixa, pensou Rubem descendo novamente a rua da editora. Já não estou mais tão jovem, e o desemprego na minha idade é um mal do qual se morre hoje em dia. Aquele homem que corre perseguido por aqueles outros dois, por exemplo — certamente deve-lhes algo, roubado ou emprestado, e se trabalhasse não estaria fugindo, é o que penso. Alguém com uma casaca tão cara não teria o rosto tão enrugado e a barba tão grande e descuidada. Não quero acabar assim como ele. Mas também não quero acabar num buraco qualquer. Devo insistir mais ainda em meu livro. Um ano talvez, se tudo der certo. Isso. Um ano.

***

— Corra mais, Alejandro! Ele está escapando!

— Corra você então! Estou dando o máximo! Se correr mais rápido, posso ir até para as Olimpíadas!

— Para o inferno você com essas Olimpíadas! Não, ele pulou o muro…! Ande, pule!

— Pule você! Olhe o meu tamanho e olhe o seu!

— Para o inferno com esse trambiqueirozinho! Não sou pago para perseguir esse tipo de gente — disse o de terno, tentando escalar o muro sem sucesso.

— É para isso que você é pago. Mas eu não. Nem sei por quê estou aqui, e não vou sujar minhas roupas importadas.

— Ah, você parece um babaca com essas roupinhas — arfou o de terno, desempoleirando do muro. — Ele já sumiu. Venha, vamos dar a volta no quarteirão.

***

— Cuidado! — gritou Frederico para o motorista que o levava, no momento em que o automóvel chocou-se contra um homem que corria pela rua. Deve ter matado o pobre homem!

Frederico saltou fora do carro com sua postura militar e exagerada, e viu um sapato caído no asfalto. Meu Deus, suas tripas devem estar espalhadas pela rua! Deve estar atrapalhando todo o trânsito! Vou ser expulso da Marinha por isso! Vou ter que pagar uma indenização! Vou… Mas o homem estava sentado no chão, massageando o ombro, com um chapéu azul meio torto sobre a cabeça. Logo que o viu, fardado, levantou-se de um salto, mas Frederico agarrou-o pelo braço.

— Eu não fiz nada, eu não fiz nada — chorava e contorcia-se o homem. — Ai minha santinha, juro que não fui eu!

Ah, por favor, acalme-se, homem! — bradou Frederico. — Deve ter batido a cabeça, não falas coisa com coisa.

— Ahn? Não vai me prender?

— Mas por quê, homem, se eu o atropelei?

— Por um momento pensei que ia… digo… digo…

— Não diga nada — disse Frederico, estufando o peito. — Tome seu casaco, muito bonito por sinal, é americano?, tome seu sapato, e tome esse presente como pedido de desculpas.

— Olha, muito obrigado, senhor soldado, mas eu não posso…

Não! — bradou ele novamente, fazendo Ramón tremer e se encolher. — Insisto que aceite, já que quase o atropelei.

— O senhor me atropelou, mas… Digo, bem, já que o senhor insiste — disse Ramón. Frederico esticou a mão para dar-lhe o dinheiro, mas ele já se encontrava no bolso de dentro do casaco do outro. — Agora, com sua licença que… Ai mãezinha — disse, vendo os dois homens que o perseguiam virarem a esquina. — Com sua licencinha que tenho um compromissinho urgentinho — acrescentou, já correndo para a esquina oposta.

— Ah, como é bom fazer o bem às pessoas — disse Frederico a si mesmo, mas alto o bastante para que todos pudessem ouvi-lo. — Mas vamos, Gómez, que tenho um navio a comandar amanhã pela manhã! Mas, por favor, homem, dirija com cuidado dessa vez.

***

Uma última olhada para a casa que lhe abrigou por tantos anos, a segunda apenas de sua vida, e tão diferente da primeira…! Uma última triste olhada, e nada mais, foi tudo o que Clotilde se permitiu — nem sequer mais um pensamento voluntário ou um suspiro de pesar, mas quem controla o próprio pensamento? O que tinha realmente a pensar era o longo caminho que teria que fazer a pé, carregando na pequena mala tudo o que lhe restara, sem dinheiro para um carro de aluguel… Talvez fosse melhor não pensar nisso também. As árvores daquele bairro eram tão bonitas e deixavam no ar um aroma tão agradável, adocicado… e tão marcante que era quase a síntese dos anos felizes que agora se esvaíam… Se esvaíam como o aroma doce também se esvairia quando ela alcançasse a avenida e os outros bairros, mais pobres, mais sujos, menos arborizados, cada vez mais em direção à periferia onde ela agora tinha de morar.

Que Deus me perdoe por essa ingratidão, pensou Clotilde quando se lembrou da prima que tão amavelmente a convidara a morar com ela… Se não fosse seu auxílio, o que lhe restaria? A rua? Um albergue? Ou pior ainda, um asilo de velhos artistas esquecidos? Que Deus lhe ajudasse… Mas ela não exigiria mais nada Dele, que já lhe permitira ficar livre de todas as dívidas herdadas, ainda que à custa de tudo o que tinha… Não, não tudo; ainda lhe restara o que tinha de mais valioso — a própria vida, com todas as possibilidades que uma vida humana encerra pela sua divina natureza.

***

— Como vê, Sr. Barriga y Pesado, todos os imóveis são de excelente qualidade — disse o baixinho e careca Sr. Avilar. — Não vejo necessidade em irmos até o último terreno.

— Há alguma coisa que esteja me escondendo sobre ele? — perguntou Zenon, intrigado.

— De forma alguma, Sr. Pesado — disse o outro, abanando as mãos exageradamente. — É que, veja bem, ele talvez não seja tão bem localizado quanto os outros… O senhor compreende, é um bairro da periferia, e talvez o Sr. desejasse tratar dele na segurança de seu escritório…

— Pois mais uma vez repito: faço questão de ir vê-lo pessoalmente, e se o senhor não me levar, descobrirei o endereço na imobiliária e irei em meu próprio carro.

— Não será necessário, Sr. Pesado — disse o Sr. Avilar, rendido. — Iremos imediatamente ver o… terreno.

***

— Mais essa, ainda — disse Emilio, suspirando e olhando para o asfalto. A água que escorria por ele de uma calha, resquício da chuva da madrugada, manchava o cinza-escuro com o vermelho-laranja do crepúsculo.

— Como assim, “mais essa, ainda”? — perguntou Lara, carrancuda. Limpou bruscamente com as costas da mão a boca, engordurada pelo lanche barato. — Não quer um filho meu, é isso? Já está arrependido? Em menos de dois dias?

— Talvez eu esteja mesmo — respondeu ele, sem olhar para ela.

— Ah! Depois que eu saio de casa você me diz isso!

— Nunca pedi para você sair mesmo.

— Imbecil — rosnou Lara. — Você e aquele seu irmão. Dois egoístas. Com aquela plaquinha na porta e tudo. Se estivesse tão bem assim, não tinha nos negado abrigo. Ricardo Furtado. Advogado! — riu ela. — O dia que descobrirem que ele não tem droga de diploma nenhum ele vai ver. Ah, eu devia ser igual minha tia, que empobrece sozinha e não pede ajuda para ninguém.

— Só porque a gente está mal não precisa desejar o mesmo para…

— Ah, vai defender agora. São idênticos mesmo. Mas se enganou numa coisa, Emilio: nós não estamos mal, nós estamos péssimos. Amanhã acaba nosso…

— Já sei, já sei, “acaba amanhã nosso dinheiro”, “logo acaba nosso dinheiro”, “nosso dinheiro está acabando”, é sempre a mesma coisa.

— Pois é. Só que a gente vai dormir na rua agora. Se para você estiver bem…

— Não está. Não está — resmungou Emilio, levantando-se do banco da praça defronte à pensão onde tinham dormido as duas últimas noites. — E vou dar um jeito. O meu jeito — gritou, enquanto atravessava a rua.

Pouco antes de passar pela porta suja e manchada de vidro da entrada do hotel Emilio percebeu que havia qualquer coisa de errada. A senhora da recepção, uma velha encarquilhada de olhos esbugalhados, tinha os olhos mais esbugalhados ainda, e olhou para ele com uma expressão de urgência, que ele não compreendeu a tempo.

Assim que entrou no hall, recebeu um tiro no peito, e o ladrão que acabara de assaltar a pensão passou correndo por cima de seu corpo e ganhou a rua.

***

Maldita proposta, que não para de me perturbar, pensou Rubem, sentado numa pracinha que havia perto de sua casa. Não conseguira sequer chegar a ela, e antes mesmo de chegar ali já voltara e prosseguira de novo pelo menos duas vezes, indeciso se voltava à editora e aceitava a proposta ou se reunia o pouco de dignidade que lhe restava e prosseguia sonhando com sua carreira de escritor.

Mas… dignidade? E por acaso é indigno qualquer tipo de trabalho? Quem eu penso que sou para dizer se sou digno ou não de um ou outro emprego? O pelicano asmático está certo, afinal. Preciso de uma renda para continuar tranquilo. Ele não sabe que tenho pensão de viúvo, mas de qualquer forma aquilo não dá para nada. É. É isso. Vou voltar lá.

O que é aquilo, em frente àquela loja? Que furdunço é aquele? Ah, uma vitrine de televisores. Essa transmissão a cores é mesmo fantástica. Mas que filme é esse? E o Vento Levou? Ridículo, melodramático. Nunca vi, mas não suporto essa música tema. Me dá náuseas. Prefiro muito mais aquela banda nova da Inglaterra… Qual é o nome? Que lançou o primeiro disco esse ano… Acho que é Bítols, alguma coisa assim. Gosto de coisas boas, modernas. É isso. Por isso não consigo me imaginar naquele buraco onde o pelicano asmático quer me colocar. Se quisesse continuar num buraco tinha ficado em Saltillo.

Mas de qualquer forma me parece irreal o um ano que me dei para continuar assim. Oh, Deus… Preciso de um charuto. Posso tentar publicar meu livro ao mesmo tempo em que trabalho, de qualquer forma. Essa cidade está ficando um inferno, e essas sirenes da polícia — da polícia e da ambulância — estão me deixando louco. Talvez fosse melhor mesmo me mudar para um bairro mais afastado do centro.

***

— Ah! Políci… — ameaçou gritar uma velha senhora, mas uma mão ossuda lhe tapou a boca.

— Por favor, por favor, minha senhora, não grite — sussurrou Ramón, tirando a mão da boca da velha. — Não quero lhe fazer mal; só estou fugindo de uns tipos que querem me bater. — A pequenina velha olhou-o com suspeita, mas os olhos daquele homem não pareciam ser maus.

— E por quê querem bater em você? — perguntou ela.

— Bem, porque… porque… porque eu dei uma topada no automóvel deles… ou melhor, eles deram uma topada no meu automóvel numa rua ali atrás, e cismaram em dizer que fui eu quem causei o acidente… Veja se pode… A senhora sabe como é, uns brutamontes daqueles que gostam de resolver tudo na pancada.

— Seu automóvel? — perguntou a velhinha, com os olhos estreitos. — Qual modelo? Automula? Quié, quié, quié — riu.

— Quê que foi, quê que foi, quê que há? — resmungou Ramón. — Só estou pedindo para a senhora me abrigar por uns instantes, não para me julgar como num tribunal.

— Tudo bem, tudo bem, não precisa ficar nervoso. Venha, está na hora do meu chá. Aceita? Não? Ainda bem, porque tem só para mim. Qual é o seu nome, meu filho?

— Ramón… Madruga, minha gentil senhora. E qual o nome da senhora minha benfeitora?

— Ah, meu filho, sou tão velha que já nem me lembro. Mas minha neta me chama de Vovó Neves.

— Então tudo neves, Dona Bem. Digo… digo… — gaguejou Ramón, preocupado em não passar em frente à janela. — A senhora se importa se eu usar seu banheiro um pouquinho?

***

Frederico inspirou com força o ar salobro do seu mundo, apoiado na balaustrada do convés. Aquilo o fortalecia, reforçava em sua mente a impressão de que estava no seu território, o mar, infinito, aberto, indomável, ao qual ele cavalgava as ondas e as vencia, conquistando novas terras ou defendendo a soberania de sua nação. Na verdade, Frederico não fazia nada daquilo, mas gostava de pensar que sim. Nos últimos anos, tudo o que fazia era sair ao mar, permanecer por alguns meses, reforçar alguns vínculos políticos com favores, transportes de cargas e outros serviços e retornar, geralmente mais magro e mais faminto, mas mesmo assim era o que garantia a sua sobrevivência e a de sua família. O governo lhe pagava um bom soldo por causa de sua patente elevada, mas há muito ele não sabia o que era combater.

— Este é o nosso segundo lar, homens — bradava ele à sua tripulação, — e nada — nada! — pode nos remover a felicidade de estar sobre a água salgada! Chegará o tempo em que a população olhará para nossa bandeira a tremular nos mastros e abençoará nossa Marinha. Já não rirão de nossos propósitos; já não zombarão de nosso brasão e já não desrespeitarão nossos princípios… Mas, enquanto este dia não chega… vamos zarpar rápido porque temos que entregar a encomenda do governador dentro do prazo, e uma tempestade se aproxima.

***

— Clotilde! Mas como demorou.

— Ah, María, nem imagina o que passei para chegar aqui — disse Clotilde, cumprimentando a velha prima com dois beijinhos nas faces e um abraço. Tentou evitar prestar atenção na fachada da vila, mas a pobreza daquele lugar a abraçava, a engolfava personificada nos braços magrelos de sua idosa prima María.

— Venha, vamos primeiro para a minha casa, para que você possa descansar. Por ali, no outro pátio. Cuidado com esse barril, o senhor do 14 o comprou para não sei o quê e largou aí no meio da vila. É logo ali, no número 8. Você deve estar exausta mesmo, veio a pé! Veja, essa é a casa onde você vai morar, e…

— 71? — perguntou Clotilde, tentando não tropeçar no chão rachado do pátio.

— É 17 na verdade; o incompetente do 4 o pintou errado, daí ficou 71. Como ninguém se importou, pintaram a do lado como 72. Acabamos nos acostumando.

Deus ajude que eu me acostume com isso, pensou Clotilde, observando o mofo nas paredes, a pintura descascando, as roupas velhas penduradas nos varais. Embora algo me diga que eu nunca vá.

***

— É isso o que o senhor chama de terreno — disse Zenon, indignado.

— Nossa — disse o Sr. Avilar, fingindo espanto. — Construíram uma vila sobre o terreno!

— Ora, não zombe de minha inteligência, homem — rosnou Zenon. — Pensou que eu nunca ia descobrir isso? — acrescentou, desentupindo-se do carro do corretor.

— Espere, Sr. Pesado — disse ele, correndo atrás do outro em direção à portaria da vila. — Espere um momento, por favor! Nós vamos resolver esse contratempo, é só o senhor nos dar mais tempo. Os papéis já estão praticamente prontos, só falta a assinatura do senhor.

— Que papéis?

— Os da… bem, da demolição disso. Para limpar o terreno para o senhor, compreende?

— Disso? Tem gente morando nisso! Pessoas, compreende?

— Bem, sim, mas a ordem de despejo está prestes a ser emitida e…

— Ordem de despejo? Por Deus, homem, onde essas pessoas vão morar? — disse Zenon já dentro da vila. A pobreza que via ali era tão comovente que ele se conteve para não esmurrar aquele cara de rato.

— Olha, Sr. Pesado — disse o Sr. Avilar, já num tom defensivo —; onde essas pessoas vão morar não é problema meu. O dono do… do endereço mandou-me vender o terreno, e se o senhor não quiser comprá-lo vendê-lo-ei a outro que queira.

— Pois bem — disse Zenon —, que venda. E não precisa me dar carona; pedirei um táxi daqui mesmo.

— Muito bem. Passar bem, Sr. Barriga y Pesado.

— Igualmente. Depois passo em seu escritório para assinar os papéis referentes aos outros imóveis.

— Espero que até lá o senhor tenha mudado de ideia.

— Ah, não mudarei — disse então Zenon, mas outra nuance do problema já perpassava sua mente.

***

— Posso pelo menos falar com ele? — perguntou Lara ao médico. Ele iria dizer que não era permitido, pelas regras e tudo mais, mas estava tão cansado e tão descrente que permitiu com um gesto vago a entrada da moça na sala da emergência. — Emilio? — chamou ela, ao lado da cama. — Está me ouvindo?

Ela achou que ele não estava, mas depois de um tempo ele arquejou e abriu os olhos. O aparelho ao seu lado fez um bip.

— Eu… sinto muito — disse ele, numa voz fraca.

— Não tem problema — disse Lara rapidamente, e uma lágrima correu sobre sua bochecha.

— Sua tia — sussurrou Emilio. — Ligue para ela. Peça ajuda.

Lara não discordou. Emilio fechou os olhos e ela ficou ao seu lado, até que tivesse certeza que ele não os abriria mais. Não falou com ninguém nem ao sair do Pronto Socorro, nem no resto do dia, nem no resto da semana. Também não reclamou quando foi obrigada a sair da pensão, e nem quando dormiu a primeira noite na rua, e nem quando roubaram sua mala, e muito menos quando teve de roubar para comer.

O último momento em sua vida que sentiu necessidade de conversar com alguém foi quando raciocinou que certamente o velhinho que cuidava dela na rua não poderia ajudá-la quando sua bolsa estourou.

***

— Muito bem, qual é a jogada sobre a proposta? — perguntou Rubem ao pelicano asmático assim que entrou pela porta de sua sala.

— Sabia que retornaria, Sr. Girafales. Porque é um homem sensato — apressou-se em dizer o pequeno homem. — Não há jogada. É um primo meu que tem uma escola decadente na periferia, e a prefeitura ameaçou fechá-la e botá-la abaixo para um loteamento se ele não encontrar um professor.

— E por que motivo, causa, razão ou circunstância ninguém mais quis lecionar lá?

— Veja bem, senhor… É um bairro muito pobre, e meu primo paga pouco. Mas eu nunca lhe escondi isso — acrescentou. — E ninguém que more na vizinhança da escola… Bem, ninguém de lá poderia acrescentar nada às pobres crianças. E como o senhor apresentou bons conhecimentos no seu manuscrito… E dada a sua condição…

— Que condição?

— Calma, Sr. Girafales, eu só quis dizer… bem, bem, como o senhor é solteiro, quero dizer, viúvo, e não tem outra renda, bem, bem…

— Tudo bem, tudo bem, me desculpe o senhor — disse Rubem. — Está bem — acrescentou, com um suspiro pesado —; já que não há outra forma… Eu aceito. Vou lecionar nessa escola da periferia. Mas por seis meses como teste, primeiramente.

— Perfeitamente, Sr. Girafales — disse o pelicano asmático. — Estou certo que o senhor gostará das crianças.

Crianças, pensou Rubem. Que Deus me ajude a suportá-las.

Mal sabia, ele.

***

— Ah! Políci… — ia gritar novamente Dona Neves, mas Ramón tapou sua boca a tempo.

— Quê que foi, quê que foi, quê que há? — grunhiu. — Mas por que de novo ia chamar a polícia?

— Ah, é você, meu filho!

— Claro, só tirei a barba, mas deixei o bigode! Fiquei tão diferente assim? Que bom!

— Pois é, pois é, pois é — riu a velhinha. — Só espero que não tenha usado a lâmina que uso para me depilar — acrescentou, com uma piscadinha. Ramón arregalou os olhos e engoliu em seco, mas não conseguiu dizer nada. — Mas ande, você precisa ir agora; minha neta que mora numa vila no outro lado da cidade vem me visitar e chega daqui a pouco. Não quero que ela pense que ando recebendo homens em casa!

— Pois não, minha senhora. Já estou de saída — retrucou Ramón, tocando a aba do chapéu em despedida, como treinara no banheiro para simular ter o habito há muito tempo.

Contudo, pouco antes de sair pelo portão da frente, viu a neta de Dona Neves prestes a entrar por ele. Pensou rapidamente — para que não complicar a velhinha que o ajudara e também para que a moça não gritasse de medo — e decidiu se dirigir a ela antes que ela fizesse alguma pergunta.

— Boa tarde, minha senhora, gostaria de… — Mas não conseguiu terminar. Era a mulher mais linda que vira na vida, e seu coração quase saiu pela boca.

— Sim, pois não? — disse ela, e sua voz era quase a de um anjo.

— De… de… de comprar uma bíblia? — perguntou ele, ainda embasbacado.

— Ah, obrigada, eu já tenho uma em minha casa. Mas… não vejo nenhuma bíblia com o senhor.

— É que… estão no meu automóvel. Eu o bati ali atrás, mas se a senhora desejar posso buscar uma para a senhora e…

— Não precisa, obrigada — disse ela, passando por ele e deixando um perfume no ar que só ele sentiu. — Mas se qualquer dia estiver vendendo outra coisa… Passe por aqui. Talvez nos vejamos de novo — disse ela, sorrindo e sumindo atrás da porta fechada.

— Volto sim — disse Ramón, sozinho e sem ar. — Ah, se volto.

***

— Eu disse — gritava Frederico em meio à borrasca —, eu disse que aqueles contêineres eram pesados demais para essa velharia!

— Perdão, senhor, mas não disse não — gritou seu imediato, agarrado à mesa porta que ele. Ambos a soltaram meio segundo antes que ela batesse e lhes esmagasse os dedos, o que os fez serem lançados pelo convés e se chocarem contra uma superfície indistinta de metal. O navio balançava de um lado para o outro, adernando, e os sons de metal rangendo, água batendo, homens gritando e madeiras se quebrando tornavam o ambiente pouco menos que o liquidificador do Diabo.

Vendo que seu imediato ameaçava se soltar de onde segurava — o que certamente o faria ser jogado de encontro à balaustrada do convés e provavelmente ao mar, depois —, Frederico se lançou a ele e amarrou a ponta de uma corda ao redor de sua cintura. Gritou-lhe que não tentasse se soltar, mas o homem não ouviu; contudo, ele não podia ficar ali repetindo ordens.

Arrastou-se como pôde para a lateral do navio a tempo de agarrar um de seus homens que escorregava pelo piso ensebado, e quase quebrou um braço na manobra. Arrastou o homem para junto de si, um jovem de vinte e poucos anos que tinha a esposa grávida, como a dele própria estivera há tão pouco tempo, e deixou-o em segurança atrás de um ferro fixo do convés.

Tentando seguir para a ponte de comando, Frederico tombou com um movimento contrário brusco do navio e bateu a cabeça em qualquer coisa que voara de encontro a ele, caindo temporariamente sem sentidos. Pouco depois, sentiu o gosto de sangue na boca, e levando a mão à fronte, viu que o sangue escorria de sua testa por todo o seu rosto. Olhando ao redor, viu que estava preso às correias de um dos contêineres que ficavam no convés, e dois marinheiros estavam ao seu lado.

— Capitão, o senhor está bem? — gritou um marinheiro.

— Melhor impossível — gritou de volta Frederico.

— A tempestade vai acabar logo — gritou novamente o marinheiro. — O senhor vai ver!

— Tomara mesmo — gritou o outro homem, e sua voz estava esganiçada e trêmula. — Eu sei bem onde estamos! Eu é que não quero virar comida de…

— Calem-se, homens! — bradou Frederico. — Ninguém vai virar comida de bicho nenhum aqui! Soltem-me; vou à ponte de comando estabilizar essa banheira ou não me chamo Frederico Mátalas!

— Mas, senhor, não…

— Calados! Andem, ajudem-me!

Os homens nada mais puderam fazer para impedi-lo. Nem mesmo a manobra da pancada na cabeça arriscariam — Frederico já vertera sangue suficiente por uma noite. Tinham uma certeza quase absoluta que nada podia ser feito da ponte de comando, mas o capitão não era um homem que pudesse ser demovido de seus intentos com palavras. Diziam que apenas sua mulher o fazia abaixar a cabeça, e riam entre si que ela devia ser uma criatura terrível para conseguir tamanho feito.

De fato, não foi possível mudar a ideia de Frederico, nem os dois marinheiros presos ao contêiner nem o outro que também tentou, antes de ser lançado para a morte no mar revolto. Com algumas dificuldades — as maiores quase ignoradas pela adrenalina e pelo sangue que escorria pelo seu rosto em meio à chuva, turvando seus sentidos —, Frederico enfim adentrou a ponte de comando.

Em meio ao caos, aos destroços de madeira e aos gritos, ele mal conseguiu discernir em seus confusos pensamentos o procedimento padrão, assim como mal percebeu que o leme estava frouxo, seus mecanismos quebrados, assim como tudo estava quebrado, assim como mal percebeu o navio erguer a proa e fazer um contêiner soltar-se de suas ameias e vir em direção à ponte de comando. Somente em seu último momento Frederico recuperou o controle de seus próprios sentidos — o tempo necessário para lembrar-se de duas pessoas antes que o contêiner estilhaçasse o vidro à sua frente.

Talvez fosse importante dizer que a tempestade amainou cerca de meia hora depois, e que somente o que restou do navio foi um único contêiner, revestido à prova de água, flutuando no oceano, e que foi resgatado dois dias depois e levado de volta ao seu remetente, o senhor governador.

***

— Muito simpático, esse zelador — disse o Sr. Sallas, o futuro comprador da vila, como tudo levava a crer.

— Nem sabia que ela tinha um zelador — riu o Sr. Avilar, olhando para trás e vendo o zelador, gordo, de boné azul escuro, entretido com uma minimoto de fricção nas mãos e de cabeça baixa. — Mas isso não tem importância. O senhor pode conferir as medidas do terreno. Leve o tempo que desejar.

— Que será o menor possível — disse o Sr. Sallas. — O cheiro desse lugar me revira o estômago.

— Certamente, mas isso será corrigido em breve — continuou rindo o Sr. Avilar, passando com o outro para o pátio subsequente.

Com o maior silêncio que pôde, Zenon extraiu-se da casinha de zelador — que não era usada há muitos anos, se é que fora algum dia — e ergueu o boné. Se o disfarce não era perfeito, fora ao menos suficiente. Esgueirou-se até a esquina do beco entre os pátios e observou os dois. Pareciam realmente querer sair dali o mais rápido possível. O tal Sr. Sallas bateu os olhos rapidamente por toda a extensão do segundo pátio e apenas olhou de relance o terceiro, conversando com o corretor e tencionando voltar ao primeiro pátio. Entrou rapidamente na casa de número 71, que estava vazia, e ouviu as vozes dos dois homens passando pela janela que dava para o corredor.

— …então o senhor está de acordo, Sr. Sallas? — dizia o Sr. Avilar.

— Plenamente — respondeu o outro. — Posso assinar o documento aqui mesmo? Seu escritório fica muito fora de meu caminho. Espero que o tenha trazido — o documento, bem entendido.

— Claro, ha ha, Sr. Avilar, boa piada. Vamos, tem uma casa vazia aqui; há nela uma mesa com duas cadeiras, podemos nos sentar para o senhor ler melhor o documento.

— Por Deus, que não seja essa — pensou Zenon, tão nervoso que se sentia incapaz mesmo de olhar se ali tinha uma mesa ou não, tentando afundar-se na parede à qual estava colado. Contudo, quando as vozes se afastaram e ele ouviu um barulho de porta se abrindo, soltou a respiração ao perceber que entraram na casa do outro lado do corredor, que também estava vazia. No pânico, havia até se esquecido dela. Não tinha mais tempo a perder, agora. Correu novamente para a entrada da vila, tentando se esquivar da vista da janela aberta da casa onde o corretor e o comprador estavam.

Chegando à rua, pegou pelo colarinho o primeiro menino maltrapilho que passou e esquivou-se de sua mordida. A visão de uma nota de cinquenta fez o menino se aquietar.

— Quer ganhar cinquenta pratas, moleque? — perguntou ele.

— Craro — exclamou o menino —, mas pur que o sinhô tá cochichando, tio?

— Ora, cale-se. Ande, você só tem que pular aquela janela ali, derrubar um velho magricela da cadeira onde ele está sentado e aproveitar a confusão para pegar os papéis da mão do outro homem. Entendeu?

— Craro, tio, fácil, fácil. Ontem mesmo eu…

— Ora, vá, vá, não há tempo para conversas — rosnou Zenon, empurrando o menino para dentro da vila, e ficou de ouvido colado na porta. Quando ouviu os gritos, tudo o que teve que fazer foi esperar o menino passar correndo e arrancar-lhe os papéis, ao mesmo tempo que ele lhe arrancava a nota de cinquenta. Quase tarde demais percebeu que os dois homens viriam correndo atrás do moleque e se jogou janela adentro da salinha do zelador, quebrando a mesa com o seu peso.

— Inferno, inferno! — gritava o Sr. Avilar; o outro homem se limitava a segui-lo, bufando. — Maldito moleque! Malditos mendigos! Bandidos! Ladrõezinhos! E você, zelador, para onde aquele moleque foi? — gritou ele, mas logo viu que o zelador não estava visível na sua casinha, embora fossem audíveis seus grunhidos.

— Num sei não sinhô — disse Zenon, tentando se encolher abaixo da janela. Viu o brinquedo de lata no chão ao seu lado e pegou-o, rapidamente erguendo-o acima de sua cabeça e em frente à janela, deixando à vista o “Made in Japan” escrito no escapamento desenhado. — Tava pegano minha motinha — acrescentou, e o Sr. Avilar soltou um xingamento abafado.

— Ora, ora — disse ele, tentando compassar a própria respiração —; não tem problema. Prepararei outro documento para o senhor, Sr. Sallas, e logo…

— Não se incomode — disse o outro homem. — Não ficarei com esse antro de marginais. Ótimo isso ter acontecido antes de eu ter assinado.

— Não, Sr. Sallas, veja bem, eu tenho certeza de que isso não…

Aos poucos, as suplicas do Sr. Avilar foram sumido em meio aos sons do trânsito, e logo o som de um carro sendo posto em funcionamento encerrou-as por completo. Felicitando-se silenciosamente, Zenon somente saiu de seu esconderijo quando ouviu o carro do próprio Sr. Avilar sair, instantes depois, com um som que parecia refletir a desolação do corretor.

— Agora, é só aguardar uns dias e oferecer uma proposta irrecusável — disse ele a si mesmo, mas de forma alguma imaginava que o pequeno e franzino Sr. Avilar guardaria tanto rancor e se recusaria a vender-lhe a vila — ou, antes, se recusaria a vendê-la com o preço de terreno.

— Se o senhor quer comprá-la — rosnou o Sr. Avilar, certa vez —, terá de pagar o preço de uma vila completa! Não é o senhor quem tanto preza por ela? Então pague!

Se o corretor com cara de rato imaginava ou não se tinha algum dedo dele no incidente na vila, Zenon não sabia; somente tinha certeza que teria que repetir sua atuação como zelador ainda por alguns tempos para que pudesse convencer o Sr. Avilar a vendê-la por um preço mais razoável.

Ele só não imaginava que teria de fazê-lo por tanto tempo, até que o próprio Sr. Avilar morresse de um infarto causado por um colapso nervoso, tendo sustentado sua palavra de não vendê-la a ele até o fim, e outro corretor a passasse, finalmente, para o seu nome.

Aliás, até que seria uma boa fonte de lucros, com todos aqueles aluguéis.

Claro, se todos os pagassem em dia.

 ***

 — Eu não sabia que você tinha saído de casa — disse Clotilde assim que Lara abriu os olhos. Estava tão pálida que já não parecia ser capaz de segurar qualquer resquício de vida em si, e magra e maltratada daquele jeito, com os dentes outrora tão brancos agora tão amarelados, grudada em todos aqueles fios e tubos da pobre uti, nem parecia mais ela mesma.

— Parece… que a teimosia… é do sangue… tia — disse a moça, a voz tão fraca que era quase inaudível. — A senhora… já viu… ele…?

— Vi — mentiu ela. — Também não sabia que estava grávida. O médico me contou… sobre as complicações do parto.

— É um menino… muito forte — sussurrou Lara, com um arremedo de sorriso, ignorando o comentário. — A senhora pode… olhar ele… por mim…

— Sinto muito, Lara. Mal tenho condições de me sustentar. Estou me mudando para um lugar que… Não tenho condições. — Lara suspirou e fechou os olhos. Clotilde achou que ela tinha adormecido, mas ela voltou a abri-los um instante depois.

— Não quero… minha mãe… fique… com ele…

— Tudo bem, Lara. Agora descanse um pouco. Tem uma pessoa… — Mas Clotilde não completou. Sua sobrinha não precisava ouvir aquilo, mas sua antiga empregada sempre quisera um filho e não podia tê-lo; talvez ficasse com a criança.

Lara não disse mais nada e fechou os olhos. Inspirou lentamente, o peito magro encheu-se e esvaziou-se novamente, lento, lento, até que ela aquietou. Pela primeira vez na vida, Clotilde deu um beijo na testa da sobrinha, e deixou-a ali, para o seu descanso final.

 ***

 Fazia um ano que ele tinha saído da vila, então com doze anos, e Clotilde percebeu que outras crianças jamais substituiriam o carinho inexplicável que ela sentia por aquela em especial. Contudo… havia uma que talvez pudesse fazê-lo.

Não se pode dizer que ela não necessitara de uma dose enorme de coragem para decidir ir até aquele orfanato, mas uma vez fora de casa suas pernas a levaram quase que automaticamente pelas ruas e avenidas. A instituição que aquela sua antiga empregada outrora lhe falara ficava praticamente do outro lado da cidade, e quando chegou até lá já estava exausta e com dores por todo o corpo.

Desde que foi recebida porta adentro, os desgostos de Clotilde só aumentaram. O primeiro foi ao imaginar seu sobrinho vivendo naquela pobreza; o segundo, em imaginá-lo sendo criado por aquela mulher estúpida e grosseira que a recebera e, como parecia ser, a única a trabalhar ali; e o terceiro desgosto, e o maior de todos, a abateu e a perseguiu depois por muitos anos ainda. Quando a velha única funcionária do orfanato a informou que a criança que ela procurava fugira assim que completara seis anos, e lhe mostrar a fotografia dos registros, Clotilde imediatamente se apercebeu de quem era o seu sobrinho.

Tão rápido quanto chegou, Clotilde saiu do orfanato, e pelo ano e meio que ainda lhe restou, procurou pelo menino que chegara tão sujo e remendado — coincidentemente ou milagrosamente? — naquela vila, e que fora acolhido por sua prima María, na casa de número 8, mas nunca mais o encontrou novamente em vida.

***

 — Creio que minha parte ficou por demais… romantizada… Mas gostei muito — disse aquele que acabava de ler o relato. — De qualquer forma, obrigado por não mencionar o acidente, acrescentou, entregando-me o original.

— Eu achei que tinha deixado o mais enxuto possível — eu disse. — Preferi não contar o depois. Não achei justo mencionar uma coisa que tenha significado minha salvação em detrimento da morte de Febrônio… Dentro de mim sou grato ao senhor por isso; não achei necessário deixar por escrito.

— São os caminhos traçados por Deus — disse ele com um suspiro. — Mas não me arrependo nem um momento em ter-lhe feito meu herdeiro, Chavinho.

— Estamos nostálgicos hoje — eu ri. — Talvez o conto tenha lembrado coisas demais.

— Nunca é demais relembrar — disse então Zenon, acionando sua cadeira de rodas elétrica e colocando-a defronte à porta da varanda. — Mesmo que os noventa anos não batessem à minha porta, ainda não seria demais relembrar.

“Não aqueles anos.