Estive lendo um texto chamado “Um Exemplo Paradigmático das Relações Conflituosas Entre Ciência e Ideologia: A Resistência ao Behaviorismo na França”. Garanto-lhes que, apesar do portentoso título, o texto escrito por Esteve Freixa i Baqué é conduzido de maneira muito fluida, inteligente, agradável e divertida. Ele fala sobre o behaviorismo, aquele área ou conjunto de conceitos da psicologia que engloba diversas questões comportamentais. Possui ramificações de ordem experimental, ligadas às chamadas hard sciences e ecoa de maneira muito viva em e com outras ciências, tais como: a biologia, a química, as neurociências. “E o que diabos isso tem a ver com poesia?”, vocês devem estar se perguntando. Assim como todas as coisas, tudo.
Durante seu discurso, Baqué aponta um conjunto de fatores para mostrar como o mundo ocidental, especialmente seu país de origem, a França, resiste à entrada/presença da ciência behaviorista. Em certo momento do texto, o autor cita um caso um tanto pitoresco envolvendo o famoso poeta alemão Goethe – autor dos clássicos Fausto e Os Sofrimentos do Jovem Werther – para ilustrar um dos numerosos exemplos a essa repulsa científica. Na época de Goethe, Isaac Newton acabava de mostrar ao mundo sua teoria corpuscular da luz e das cores, demonstrando a decomposição do feixe luminoso nas diferentes cores do arco-íris, com a ajuda de um prisma de refração. O experimento que até hoje se mostra muito popular figurou, ainda que em nível simbólico, em outro elemento popular, embora culturalmente falando. Trata-se do álbum The Dark Side of the Moon, obra máxima e um dos maiores elementos musicais da cultura pop, do grupo britânico de rock progressivo, Pink Floyd, cuja capa possui o famoso prisma como ilustração. Aqui vemos um primeiro indício de onde quero chegar: a comunhão de dois polos muitas das vezes conflitantes – ciência e arte. Mas voltemos a Newton e Goethe.
Quando Newton inaugura sua visionária teoria da luz e das cores, o poeta alemão não tarda em escrever um manifesto em tom de protesto, digno de uma praga furiosa, contra o cientista britânico e sua descoberta. O motivo de toda essa revolta lírica? Goethe argumentava que, a partir do momento em que o processo de decomposição da luz em cores era um fato conhecido por todos, desde as cátedras científicas até as choupanas camponesas, as pessoas perderiam o encanto. Pensar que as maravilhosas cores do arco-íris, que inspiravam corações de casais apaixonados, pintores, poetas e menestréis não passavam de meros ângulos de refração da luz, impossibilitaria a todos de apreciarem esse genuíno monumento em sete cores. Hoje, ler isso nos parece algo risível, digno de piadas das mais jocosas. Não pude deixar, confesso, de dar um pequeno riso de divertimento quando me deparei com a ideia. Mas, na minha condição de poeta, percebi que, dados os contextos da época, o posicionamento do grande Goethe foi compreensível e passei a levá-lo a sério. Digo, não que ele estivesse inteiramente certo; para usar um termo científico: certo a stricto sensu. Mas sua preocupação era séria – e sincera. É preciso ter em mente que toda ideia nova, tudo aquilo que irrompe com o estabelecido, causa resistência, medo, aversão. Assim foi com Goethe bem como é conosco que, muitas vezes, resistimos às novas configurações não apenas científicas, mas também artísticas, sociais, existenciais, subjetivas… e acredite, mesmo que superadas tais barreiras, sempre ergueremos novos muros no porvir. Cabe à humanidade esse papel, do mesmo jeito que derrubá-los também faz parte desse eterno círculo de construção e demolição. Newton derrubou o muro de Goethe, este, por sua vez, tentou derrubar o de Newton e, de certo modo, foi quem caiu por terra. Einstein derrubou Newton quando elegeu o tempo enquanto relatividade, pondo em xeque a noção absoluta de tempo proposta pelo físico britânico, anos antes. Não me espantaria se dentro de 1 hora ou 1 ano alguém se colocasse contra Einstein, propondo novos parâmetros para o tempo-espaço. Parece-nos impossível? Talvez hoje. Lembremo-nos, porém, que certo dia pareceu impossível, sequer imaginável, que o arco-íris fosse resultado de processos naturais ao invés da criação dos deuses, no entanto…
Acolho o protesto e o temor de Goethe. Embora não precisemos chegar ao mesmo ponto em que ele chegou, sabemos que sim, conhecer muitas vezes não é criar: é castrar. Nas palavras de outro alemão, o filósofo Friedrich Nietzsche: “E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.” Só quem já olhou em demasia para o abismo, chegou a um ponto sem retorno, conheceu certos aspectos da realidade sob diversos ângulos, sabe que nem sempre é fácil voltar ao olhar original – como o ateu que não consegue mais acreditar em Deus depois de se deparar com argumentos históricos sobre a religião ou fatos científicos sobre a evolução humana, por exemplo. Desse modo, sim: o conhecimento, especialmente o conhecimento científico, acadêmico, pode muitas vezes destituir os arco-íris de nossos olhares e substituir a vida antes colorida por paletas em tons de cinza. Mas percebo também que certos paradigmas separatistas não são mais tão necessários, dicotomias que caíram por terra e só teimam em permanecer em algumas instâncias – necessariamente, talvez. As fronteiras entre arte e ciência são cada vez mais tênues; há um diálogo (que não se enxerga sem um olhar atento) ocorrendo freneticamente, presente em processos dos mais simples (como no fato de eu estar usando um computador, produto da ciência e da tecnologia, para redigir um texto sobre arte) aos mais complexos (utilização de tecnologia de ponta na produção de filmes, performances artísticas, técnicas de pinturas, esculturas e afins). Há muito material acadêmico/científico produzido sobre arte – e não apenas dentro das ciências humanas. Do mesmo modo, há inúmeras obras de arte que não somente se utilizam de técnicas oriundas da ciência para existirem, mas se fundam na própria ciência. Exemplos claros disso são as obras de ficção científica visionárias de Isaac Asimov, William Gibson e Júlio Verne. O próprio Isaac Asimov, além de escritor, era bioquímico; Lewis Carroll, autor de uma das histórias mais delirantes já escritas, Alice no País das Maravilhas, vale lembrar, era uma síntese de aparentes disparidades: escritor, poeta e matemático. Esse último detalhe me causava espanto, quando criança. Em minha mente ainda limitada por dicotomias, eu pensava ser impossível alguém que lidasse com números ser capaz de produzir histórias tão mágicas e encantadoras – o tempo só me mostrou o quanto eu estava errado.
Receio, porém, que nem sempre essa harmoniosa intercomunicação entre ciência e arte seja possível, é por isso que se deve pensar no conhecimento não como totalidade ou Verdade Absoluta, mas como uma caixa de ferramentas que contém dispositivos compatíveis com os diferentes momentos e com as diferentes necessidades de uso. Rubem Alves (que, aliás, é psicanalista, educador, teólogo e escritor) tem uma interessante ideia sobre isso: o ser humano possui duas caixas ao longo da vida; uma é de ferramentas, a outra, de brinquedos. A caixa de ferramentas possui instrumentos úteis que contém diversos saberes que melhorarão a vida. A caixa de brinquedos é repleta de objetos aparentemente inúteis, mas que servem para tornar a vida mais bela, prazerosa e digna de ser vivida: a arte, a poesia, a alegria, a música, etc. Ainda que seja uma ideia muitíssimo interessante, penso que conceber duas caixas em separado corroboram para que certas dualidades permaneçam. Assim sendo, gosto de imaginar que há apenas uma caixa, onde brinquedos e ferramentas estão misturados e muitas vezes se confundem, de modo que não sabemos o que é cada coisa. Isso é um pião ou uma chave de fenda? Entender que os conhecimentos são ferramentas relativas nos ajuda a sermos livres para agenciarmos os conteúdos de nossas bagagens, ao invés de limitarmos um espaço tão amplo que carregamos conosco. Não se pode usar uma chave inglesa onde se precisa de uma chave de fenda, mas às vezes dá pra girar um parafuso com uma faca. De qualquer modo, o importante é saber o que usar, como usar e quando usar, reconhecendo a importância de cada instrumento. Quando Newton fez sua descoberta sobre as cores ele abriu portas. Tempos depois, cientistas desenvolveram o raio laser, usado em operações de miopias graves. Um avanço que resgata a visão de muitos, para que eles possam voltar a admirar os arco-íris que pintam os céus. A descoberta científica, nesse caso, não anula a beleza e o potencial poético de um arco-íris. Haverão cientistas falando sobre a decomposição das cores, mas ainda haverão poetas, músicos e pintores que resignifiquem as cores para além do óbvio e do pragmático. Os antigos nórdicos acreditavam que o arco-íris era Bifrost, a ponte mágica que ligava o domínio dos homens ao domínio dos deuses. Os deuses estão mortos por muitos, ou ao menos moribundos; podemos ter o conhecimento proporcionado pela física e sabermos do que se trata realmente um arco-íris, mas nada nos impede de abrir um livro, assistir um filme ou ouvir A Marcha das Valquírias, de Wagner, e ressuscitar os deuses, reerguer o arco-íris como ponte na literatura, no cinema, na música… nas artes: lugar onde o mágico sempre terá vez. Pode parecer, a princípio, uma ideia um tanto ingênua, mas acho que é uma das mais arrojadas, pois exige um grande esforço – esforço para compreendermos, insisto, que o conhecimento é múltiplo em sua unidade, um grande alforje cheio de ferramentas que podemos e devemos usar de acordo com a conveniência. Não há porque não entender que o arco-íris é um fenômeno óptico e meteorológico enquanto se estuda física e não há porque não acreditar que ele é uma ponte mágica enquanto se lê um livro de lendas nórdicas. O que não se deve fazer é eliminar uma forma de saber em detrimento de outra, causando assim um nazismo epistemológico. Ou ainda, agir de modo a tornar o conhecimento, dispositivo tão potencializador, em artefato castrador. Antes, é preciso reconhecer a importância dos arlequins e alquimistas, como escrevi certa vez:
Se no mundo a penumbra assombra
E não há quem afronta o mal que desnuda
Há a esperança que a alma compra
E no coração dentro se afundaUns trazem em seus alforjes, às tontas
Outros, cuidadosamente em caixas carrancudas
Alaúdes, minérios, tintas e plantas
Em alvos trajes ou com vestes imundasO ofício nunca se finda
De içar a vela e erguer a bandeira
Caçar eternamente o tesouroArlequins e alquimistas
Cada qual à sua maneira
Transformando o mundo em ouro
(Elton SDL – Arlequins e Alquimistas)
Ah… e como é de costume dizer por aqui, nunca se esqueçam:
Poetizem!