[Conto] As aventuras sobrenaturais de Marcos Mignola – capítulo 10

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cap10por Alan Cosme

Lorelei andava de um lado para o outro, seu nervosismo evidente acabava estimulando o mesmo sentimento nas pessoas ao seu redor. O senhor Mignola e sua esposa, a mãe de Marcos Mignola, estavam lá para dar apoio a moça. O fantasma Alex também, mas como ninguém conseguia vê-lo ou ouvi-lo ele não era bem sucedido em sua missão.

– Minha filha, não deve ter acontecido nada demais. Daqui a pouco ele aparece. Você verá. – A mãe de Marcos tentava acalmar Lorelei.

– Marcos foi trabalhar ontem e até agora não voltou!

– Na certa se envolveu em alguma confusão. – Comentou o senhor Mignola baixinho para não ser ouvido. Para o seu azar, o tom que usou não foi tão discreto quanto ele imaginava. O que resultou em uma reprimenda na forma de uma cotovelada na boca de seu estômago dado por sua esposa.

– Já tentou ligar lá para empresa onde ele trabalha? – Perguntou a senhora Mignola.

– Claro! – Respondeu Lorelei já perdendo a paciência. – Telefonei umas trinta vezes, mas os atendentes sempre respondiam de forma evasiva. – Talvez devido a explosão emocional, Lorelei sentiu uma tontura e precisou ser segurada pelo braço e levada até o sofá da sala.

– Menina, você está bem?

– Não foi nada. Acho que foi só minha pressão que subiu.

– Você é meio novinha para ter esse tipo de problema, não?

Alex olhou para a esposa de seu amigo recostada no sofá. Enquanto seus olhos imateriais esquadrinhavam a moça o fantasma notou algo intrigante. O quadril de Lorelei parecia ter alargado um pouco e seus seios davam a impressão de estarem mais cheios. – Você está grávida? – Perguntou o morto. Lorelei não ouviu a pergunta feita a ela. Mas de alguma forma a ideia solta no ar pelo fantasma acabou se alojando na mente da senhora Mignola. Mesmo sem saber que estava repetindo uma pergunta feita por outra pessoa, ela falou:

– Você está grávida?

A pergunta inesperada pegou Lorelei de surpresa. – Não!  – A resposta parecia obvia de início, mas aí a psicóloga se lembrou que já fazia um tempinho que não menstruava e que nas últimas semanas começou a se sentir meio “estranha”.

– Jesus! Vou criar um filho sem pai!

– Calma! Para tudo tem jeito!

– Já esperei demais, vou chamar a polícia!

O senhor Mignola iria protestar contra a ideia, mas desistiu no meio do caminho. Conhecendo bem o histórico conturbado de seu filho, ele julgava não ser prudente chamar a polícia para resolver qualquer tipo de problema a qual Marcos se envolvesse. Era bem capaz de preferirem colocá-lo atrás das grades do que deixá-lo solto por aí.

Decidida, porém nem tanto, Lorelei saiu de sua casa em direção a delegacia. Os pais de Marcos se ofereceram para acompanhá-la, mas ela recusou a ajuda dos dois. Lorelei não gostava do seu sogro por causa de todo sofrimento que ele fez seu marido passar. Lorelei não gostava da sua sogra por causa dela ter sido conivente com todo o sofrimento que fizeram seu marido passar.

Alex também se ofereceu para acompanhá-la. Lorelei, por não ouvi-lo, nem disse que sim, nem que não. Sendo assim o fantasma acabou decidindo por ela e a seguiu. O fantasma estava com mais desejo de protegê-la do que um guarda-costas contratado estaria.

Lorelei não precisou esperar muito para ser atendida quando chegou na delegacia. Para sua sorte o delegado era alguém conhecido. Não um amigo ou parente, mas sim uma pessoa que salvou sua vida. Por causa disso dava para dizer que seu vinculo com ela era ainda mais forte.

– Por favor, entre. – Lorelei foi convidada pelo delegado para entrar em seu escritório. Os dois conversariam a sós, com privacidade. – O que te perturba? – Perguntou o delegado com uma preocupação bem paternalista.

– É o meu marido. Ele desapareceu.

– Ok. Vamos registrar um B.O. Você pode me dizer o nome completo dele? Uma foto também ajudaria.

Lorelei pegou seu celular da bolsa e mostrou para o delegado uma foto. Assim que o homem viu quem era o marido desaparecido ele sentiu raiva. Uma raiva tão intensa que fez tremer sua espinha.

– O nome dele é Marcos Josué Mignola. – Lorelei revela ao delegado o nome do seu marido. Se bem que isso não era necessário, pois ele já o conhecia. Heitor Sacramento reuniu todas as suas forças para não deixar transparecer o ódio que sentia por aquele homem.

Ao sair da delegacia, Lorelei ficou com a impressão de que seu pedido de ajuda havia sido inútil. Uma impressão que foi reforçada por um comentário solto por Alex que ela não chegou a ouvir, mas que mesmo assim conseguiu influenciá-la. – Esse delegado odeia Marcos. Tudo bem que ele tem bons motivos para isso. Mas, sei lá. Esperava uma atitude mais profissional da parte dele. Enfim, tenho certeza que ele não vai dar um peido para ajudar seu marido. – O morto estava correto. Assim que Lorelei foi embora Heitor tratou logo de apagar o registro daquele boletim de ocorrência dos computadores da central.

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Apesar do sol brilhar intensamente, sua luz não queimava muito, fazendo com que o passeio não ficasse tão insuportável. Marcos Mignola se sentia como o personagem principal do filme Naufrago, preso em uma ilha deserta. A diferença era que o isolamento de Marcos era ainda maior que o do personagem de Tom Hanks, já que a ilha onde o vidente estava perdido se situava em outra dimensão. Marcos até poderia construir uma jangada improvisada, como Tom Hanks fez em seu filme, só que no caso dele de nada adiantaria.

Marcos caminhava por um terreno de areia quase branca, a sua direita ele via o início de uma floresta verde cheia de coqueiros e flora tropical, a sua esquerda ele via o mar. Olhando para aquele tanto de água salgada, Marcos tinha a impressão de que aquele horizonte não era assim tão sem fim. Ao longe ele podia ter um vislumbre do que parecia ser uma outra ilha que ficava no lado oposto daquele oceano que era surpreendentemente pequeno.

Para determinar qual era o tamanho exato daquela ilha Marcos decidiu caminhar pela costa em linha reta. Apesar do sol não mudar de posição, o relógio biológico do vidente lhe dizia que já haviam se passado várias horas desde sua chegada aquele lugar. Isso era estranho.

Como foi criado na cidade, Marcos não sabia se localizar muito bem em um ambiente natural. Por onde ele olhava só encontrava verde, assim sendo achava que todo o cenário era igual. Na cabeça dele se guiar pela floresta ou pelas estrelas no céu era algo mais impressionante do que falar com fantasmas.

Mesmo achando todo aquele mato idêntico até mesmo ele ficou com um pé atrás ao notar algumas repetições incomodas. Apesar de andar em um sentido único e em linha reta, Marcos começou a achar que alguns detalhes se repetiam. Certas pedras e árvores pareciam reaparecer várias vezes. Marcos se sentia andando em círculos, algo que não fazia sentido.

Após um tempo longo, mas indeterminado devido a falta de ponto de referência, Marcos desistiu da ideia de caminhar pela costa e optou por explorar a parte mais central daquela ilha. Ele tinha receio, assistiu filmes B de survival horror o suficiente para não ficar confortável com a ideia de explorar uma mata exótica. Que tipos de animais poderiam ser encontrados ali? A imaginação do vidente voava longe e sua cabeça começou a fantasiar sobre a possibilidade dele se encontrar em uma ilha cheia de dinossauros que foi projetada por um velho bilionário no intuito de construir um parque jurássico.

Para alivio de Marcos ele não viu sinal de fauna nenhuma. Nem mesmo o zumbido de moscas irritantes que é tão comum em um ambiente tropical. Parecia que ele era o único animal naquele lugar. Usando de suas habilidades ômega, Marcos tentou contatar algum fantasma. Nenhum apareceu. Algo que nunca havia acontecido com ele antes. O mais estranho daquela dimensão nem era o sol imóvel ou a ilha incrivelmente deserta, mas sim o fato de parecer que ali não tinha nem sequer uma alma penada dando sopa. Uma floresta sem nem mesmo um espírito da natureza? De todas as características sem sentido daquele lugar essa era a pior.

Marcos temia ter que passar um bom tempo recluso naquela realidade. Como sua expectativa de vida era extremamente longa, não era absurdo cogitar a possibilidade de ficar preso ali por uma eternidade. Tendo apenas como companhia o som suave do mar se chocando contra o litoral. Para sua sorte ele não precisou ficar amedrontado quanto a isso por muito mais do que alguns minutos. Talvez ele se tornasse um prisioneiro eterno, mas ao menos teria companhia nesse cativeiro.

Sentado em uma pedra, um adolescente nipônico parecia brincar com um objeto que lembrava uma varinha. O guri arremessava aquela “varinha” para cima fazendo com que ela girasse no ar e em seguida a pegava de volta. Ele repetia o movimento dezenas de vezes, provavelmente continuaria naquela atividade por horas se não fosse interrompido por nosso herói.

O japonesinho vestia uma blusa estampada com a foto de Steve Jobs e, logo abaixo, uma frase de efeito dita pelo empresário a qual Marcos não se interessou em ler. A imagem do rosto conhecido foi vista como um bom sinal. Foi por causa da foto que Marcos deduziu que aquele garoto vinha da Terra.

– Hei, menino! Preciso de sua ajuda! – Ao chegar mais perto, Marcos pôde ver melhor a varinha que entretinha o garoto. Não era bem uma varinha de bruxo como ele havia imaginado. De perto parecia uma caneta comprida e estilizada. Tinha um visual até meio futurista. – Como faço para sair daqui?

– Se eu soubesse como sair daqui eu com certeza já teria ido embora. Esse ambiente não tem quase nada com o que eu possa trabalhar. É o pior pesadelo de um tecnomante.

– Tecno o quê?

– Credo! Você é tão ignorante quanto parece. – Marcos estava ocupado demais procurando um meio para fugir dali para se ofender com o comentário. –  Tecno é a aglutinação da palavra tecnologia. Por sua vez tecnologia é a aplicação do conhecimento técnico e cientifico para o uso de ferramentas e métodos que visam solucionar problemas. O sufixo mancia é usado para fazer referência a algo mágico, místico ou sobrenatural. Finalizando: tecnomancia é a arte mágica que explora a ciência.

Marcos entortou a boca ao ouvir a última frase. – Isso não faz sentido!

– Aff, você é tão século XXI.

Deixando a discussão técnica de lado, Marcos resolveu recomeçar a conversa. – Me chamo Marcos Mignola, prazer. – O vidente estendeu a mão, mas o japonês não acolheu o gesto fazendo com que Marcos ficasse com a mão no ar por um breve período. Por causa dessa demonstração de falta de cordialidade, Marcos começou a julgar o garoto como sendo um pedante babaca. O japonês tinha até um pouco disso em sua personalidade, mas não foi esse o motivo que o fez não apertar a mão do vidente. O japonês não apertou a mão de Marcos simplesmente por não conhecer aquele gesto que não fazia parte de sua cultura.

– Me chamo Nakamura.

– Como veio parar aqui, Nakamura?

– Do mesmo jeito que você, imagino. Declinei do convite de um ômega que não sabe ouvir “não” como resposta.

– Ok. Estamos presos nesse mundo, mas não precisamos ficar presos nessa ilha. Olhando para o mar encontrei uma faixa de terra no horizonte, talvez…

– Você não entendeu. Essa “ilha” é esse mundo. Um mundo com apenas cinco quilômetros de raio. Essa faixa de terra do outro lado do mar que você viu é apenas o outro lado dessa “ilha”. Você pode alcançá-la apenas adentrando por essa mata.

– Que merda!

– Nem me fale.

*****

Em seu consultório de psicologia Lorelei passava uma imagem de confiança e controle emocional aos seus pacientes que beirava a frieza. Em sua vida pessoal ela não mantinha a mesma atitude por não precisar usar aquela máscara social. As pessoas que se consultavam com ela nem imaginavam que, em sua privacidade, ao se deparar com um problema que achava sem solução, Lorelei tinha a mania de chorar deitada na cama abraçada a um travesseiro. Antigamente a cena era pior, ela costumava fazer isso abraçada a algum bichinho de pelúcia. Por sorte seu bom senso lhe avisou que aquela atitude era um pouco indigna de alguém da sua idade, então ela parou de fazer isso. Ela achava que chorar abraçada a um travesseiro era um pouco menos patético do que chorar abraçada a um ursinho Blaublau. Lorelei tinha razão, apesar da diferença não ser muita.

– As vezes eu me pergunto o que Marcos viu em você além de um belo par de coxas e uma boa bunda.

As palavras de Alex, mesmo sem poderem ser ouvidas, conseguiram fazer com que o choro e o desespero da mulher se tornasse ainda mais acentuado. Sem paciência para continuar assistindo aquela imaturidade, o fantasma decidiu deixar ela para lá e tomar uma atitude mais proativa. Ele estava decidido que iria dar um jeito de solucionar o mistério do desaparecimento do seu protegido.

Alex era um ótimo detetive. Não tanto por seu talento dedutivo e investigativo, que não eram lá essas coisas. Mas sim por causa de sua condição. Como desencarnado ele conseguia ter acesso muito mais fácil a informação do que alguém de carne e osso. Algumas habilidades sobrenaturais como poder atravessar qualquer parede e entrar na cabeça dos outros são vantagens bem injustas.

Como qualquer detetive, Alex decidiu começar sua investigação vasculhando a casa da vítima em busca de pistas. Como qualquer detetive ao menos de cinema e seriado americano, o único contato com essa profissão que Alex teve em vida.

Ainda no quarto do casal, o fantasma ignorou a esposa chorona deitada na cama e foi dar uma conferida no armário, na sapateira e no criado-mudo. Não encontrou nada ali que o alarmasse.  O que já era esperado. Como não conseguia abrir as gavetas, Alex checava o interior dos móveis atravessando sua cabeça espectral pela matéria sólida. Seus olhos não eram sensíveis a diferença de claro e escuro, logo não havia dificuldade em sua vistoria.

O segundo cômodo da casa que o morto decidiu checar foi um que ele tinha expectativa de ser mais relevante. Em um quartinho dos fundos o casal decidiu guardar todas as quinquilharias místicas que Marcos acumulou na vida. A cesta de búzios, sua bola de cristal, seu tarô, alguns livros exotéricos e toda forma de bibelô religioso como estatuetas de buda, Jesus e de orixás, entre outras coisas.

Alex pegou dois búzios e ficou brincando com eles jogando-os no ar por alguns segundos. Infelizmente ele não sabia jogar búzios então aquela ferramenta lhe era inútil. Se bem que ele nem sabia se aquela ferramenta funcionaria com um fantasma, provavelmente ela seria inútil para ele de qualquer maneira.

Como regra, Alex não conseguia mover objetos físicos. Mas havia exceções. Objetos carregados com muita energia parapsíquica podiam ser facilmente manipulados por sua vontade. Na verdade, com o treino certo, Alex iria poder mover quase qualquer coisa que quisesse. Infelizmente ele nunca se interessou em assistir a um certo filme estrelado pelos atores Patrick Swayze e Whoopi Goldberg que dava essa aulinha. Como curiosidade, vale relatar que nos dias de hoje o fantasma de Patrick em algum lugar de hoolywood está aproveitando bem as aulas que teve quando interpretava o seu personagem desse filme.

Demorou doze horas para o morto encontrar algo de relevante naquele quartinho. Por sorte sua percepção de tempo não era a mesma de alguém ainda preso a matéria, do contrário ele já teria desistido. Em uma gaveta esquecida de um armário velho, Alex encontrou um papel dobrado curioso. Não era papel oficio, nem outro tipo de papel atual que ele já tivesse visto. Lembrava pergaminho por causa de sua estética, mas seu material era de qualidade muito superior. Só o fato de Alex conseguir pegá-lo facilmente já chamou sua atenção. Ao desdobrá-lo Alex viu um mapa que respondia ao desejo do seu portador. Um mapa maravilhoso que revelava o paradeiro de qualquer coisa que seu usuário quisesse encontrar. Essa “coisa” podia ser um sonho, um lugar, um objeto, um desejo, uma pessoa desaparecida…

– Nossa! Nunca encontrei algo tão… Mágico! Onde Marcos encontrou esse negócio?! – Ao contar para seu guia espiritual sobre sua aventura no plano dimensional que ele escolheu nomear de mundo Hippie, Marcos omitiu aquela aquisição. Não que ele quisesse esconder a descoberta daquele mapa de caso pensado, Marcos só não falou do mapa por achá-lo irrelevante. Não podia estar mais enganado. Se não fosse por aquele mapa muito provavelmente o nosso herói ficaria preso naquele mundo-ilha por pelo menos alguns séculos.

O papel cartográfico milagroso que Alex tinha em mãos era excepcionalmente fácil de ser decifrado, um nível de conveniência que só algo mágico podia proporcionar. Elaborado para se moldar a qualquer necessidade do seu dono, até mesmo alguém iletrado ou cego poderia usá-lo. Nesse último caso o mapa operava com sinalização sonora, inclusive usando aquela vozinha feminina monótona e irritante tão comum em sistemas eletrônicos.

Seguindo religiosamente o caminho que aos poucos o mapa ia revelando Alex chegou a um prédio empresarial no centro da cidade. Em seguida, o mapa lhe mostrou que ele deveria atravessar uma porta que continha os dizeres “Em Obras”. Após passar pela porta, o fantasma se deparou com uma sala vazia que não tinha nada além de um elevador. O mapa indicou que era preciso usar aquele elevador e subir até o décimo terceiro andar. Ele assim o fez. Alex apertou o botão de subir que inesperadamente cedeu ao seu toque. Menos de um minuto depois o fantasma se deparou com um décimo terceiro andar secreto. – Interessante! – Pensou o morto, que quando vivo adorava histórias de sociedades secretas.

A informação que invadia os olhos do fantasma era contraditória, por isso Alex demorou de entendê-la. O homem usava um terno elegante e muito caro, seu porte físico era altivo e ele parecia muito bem conservado para alguém de sua idade. Esses dados informavam que aquele era um homem rico. Porém, o granfino estava varrendo o chão da empresa e apanhando o lixo com um apanhador. Esses dados não condiziam com a informação anterior.

Quando voltou a si Alex olhou no seu mapa mais uma vez, esperando ver qual seria a próxima dica. O passo seguinte era um tanto inusitado. O papel cartográfico místico estava sugerindo que o fantasma pegasse uma chave que estava no bolso do paletó do homem. Alex até tentou, mas sua mão imaterial não conseguiu segurar o objeto.

– Merda! – Por um breve instante o fantasma teve um abalo em sua confiança. Esse abalo cede quando sua mente é invadida por uma ideia. Algo que ele nunca havia tentado antes, mas que podia dar certo.

Alex entra no corpo daquele empresário se apoderando de suas principais funções motoras e do seu cérebro. O espírito era de Alex, um jovem de vinte e poucos anos morto na década passada em um acidente de carro. O corpo físico era de Filipe Liebcraft, um empresário que adquiriu fama e sucesso após fazer um pacto com uma criatura milenar chamada Ayreon. O alemão ainda estava lá dentro, mas era como se estivesse dormindo. Não tinha consciência do que estava acontecendo.

Através dos olhos de Liebcraft, Alex olha para o mapa em sua mão. Se adaptando a nova condição do seu portador, o papel cartográfico deixou de ser um objeto espectral e ganhou substância, podendo agora ser segurado por mãos encarnadas.

O mapa dizia para usar a chave em qualquer porta, não importava qual. O resultado seria o mesmo independente da escolha. Mesmo sem entender bem essa lógica o fantasma obedeceu.

A chave que tinha em mãos se moldava a qualquer fechadura em que fosse encaixada. Alex a utilizou para abrir uma porta que levava ao banheiro. Ao escancará-la não foi vaso sanitário nem pia que viu. Liebcraft possuído por Alex ficou diante do corredor branco cheio de portas verdes dos Bastidores do mundo.

******

Os dois haviam retornado ao início, ao local onde entraram naquele mundo. Na praia havia um chalé sem mobiliá. Sua única função era proporcionar uma porta que poderia servir para entrar ou sair daquele minusculo planetinha.

Com sua varinha tecnológica, Nakamura fazia uma analise minuciosa naquela porta. Uma analise a nível molecular. O resultado foi o mesmo das trinta analises anteriores que fez, o proposito daquela especifica era só convencer Marcos de que nada podia ser feito. Ao menos não daquele lado. – É uma porta normal, não tem nada de transcendental nela. – Quando Nakamura usava sua varinha ela acendia uma luzinha verde em sua ponta e fazia um barulhinho de chiado engraçado, que não chegava a ser incomodo.

– Como assim?! Essa porta nos enviou de uma dimensão a outra. Como pode ser normal?!

– Talvez a mágica estivesse em quem ou o quê a usou naquele momento.

– Você está me dizendo que sair daqui é impossível?

– Não, mais cedo ou mais tarde iremos conseguir sair daqui. A probabilidade pequena sempre se torna significativa quando o período de tempo analisado é muito longo. Não devemos continuar presos por mais do que um século ou dois.

– O quê?!

Para o alivio de Marcos, a previsão de Nakamura se mostrou incorreta. A saída abriria bem antes daquele prazo. O vidente mal havia terminado de expressar sua frustração quando a porta abriu. Do lado de dentro, não havia mais o interior de um chalé vagabundo, mas sim o corredor branco dos Bastidores do mundo. Quem abriu a bendita porta foi Filipe Liebcraft usando sua chave especial.

Marcos queria socar aquele alemão metido a besta na cara, mas como ele estava ajudando o vidente achou por bem se vingar depois. Antes que algum imprevisto maluco acontecesse ele tratou logo de aproveitar aquela brecha. Assim que a porta abriu ele correu para passar por ela. Nakamura, foi em seguida.

– Meu amigo, que alivio te encontrar! – Filipe tentou abraçar Marcos, mas esse recusou o gesto com um empurrão. – O que foi, cara? Não está me reconhecendo? – O vidente olhou atentamente para o rosto do alemão. O olhar fixo revelou que quem operava aquele cérebro era outra pessoa, um amigo de longa data, um guia espiritual.

– Alex?!

– É.

Revelado a situação, dessa vez foi Marcos que puxou o abraço. Um abraço que só amigos muito apegados podiam compartilhar. Com direito inclusive a tapinhas nas costas.

– Muito tocante. – Disse Nakamura com uma voz monótona e desinteressada. – Mas acho melhor a gente sair daqui primeiro. Depois vocês namoram em paz.

Marcos iria dar uma resposta a Nakamura, mas foi cortado por Alex que tinha uma novidade a contar.

– Cara, esse seu mapa parece um presente dos deuses! E olha que sou ateu. – Apesar de parecer uma ideia paradoxal, se você abrir um pouco a mente para conceitos novos, dá para continuar duvidando da existência de divindades mesmo depois de morto. A final, a existência de vida após a morte não significa necessariamente que exista uma mente superior paternalista se preocupando com todos os probleminhas mundanos da humanidade. – Encontrei ele lá no seu quartinho dos fundos. Só consegui te encontrar graças a isso.

Marcos sentiu felicidade de início, mas ela não demorou para ser substituída por uma discreta preocupação. O vidente ficou preocupado ao se lembrar do preço que teve que pagar para comprar aquele mapa. Um preço a qual ele ainda não entendeu direito o que significava. “Meu preço é o nome do seu primeiro filho”, disse a bruxa velha. Naquele instante Marcos pensou apenas uma coisa: – Ainda bem que não tenho filhos.

O trio passou por o que pareciam ser centenas de portas. Alex ia na frente, pois era ele que guiava o grupo, já que tinha a posse do mapa. – Quantas portas tem nesse lugar? – Perguntou Marcos. Quando ouviu a resposta da boca de Nakamura, ele se arrependeu de ter feito a pergunta.

– Beira ao infinito. Cada uma dessas portas é capaz de se ligar com uma porta qualquer na Criação. Trilhares de trilhões é um percentual que nem representa  um por cento da quantidade de portas aqui disponíveis. O número total de portas aqui é tão grande que seu idioma nem consegue representá-lo em palavras.

– Porra! Como vamos conseguir encontrar nosso caminho para casa assim?!

– Achei!

– Achou o quê, Alex?

– O mapa está indicando que essa porta aqui serve.

– Ótimo! Abre ela logo! – Objetou Marcos cheio de expectativa.

– Espera um momento. Enquanto operava o mapa você estava pensando em voltar ao planeta Terra de forma geral ou pensou em um local mais especifico? – A pergunta de Nakamura foi ignorada. Ninguém queria se preocupar com isso, queriam apenas voltar para casa.

Quando aquela porta foi aberta o trio se deparou com uma cozinha grande que parecia ser de restaurante. Eles entraram sem pensar duas vezes.

– Aqui é a Terra? A nossa Terra? – Perguntou Marcos.

– Com certeza, mas acho que a gente deveria… – Nakamura iria comentar uma preocupação, mas seu comentário morreu diante da euforia do vidente.

– Excelente! Alex, tranca logo essa merda! Não quero ter que ver esse maldito corredor branco tão cedo. – Alex obedeceu seu protegido. Em seguida entregou a chave e o mapa maravilhoso a ele.

– Marcos, vou ter que liberar esse corpo. Já estou o usando por tempo demais, não quero causar algum mal a esse hospedeiro. – Marcos quase responde que dane-se esse hospedeiro. Que seu cérebro virasse papa, não importava. Só que aí sua consciência reclamou e ele apenas concordou com o seu guia.

Quando liberado, Filipe Liebcraft quase caiu no chão. Só não se estatelou porque Nakamura o pegou pelo braço. Por Marcos ele podia muito bem meter a cara no piso que tudo bem.

– Que tontura! – O adolescente japonês (que era adolescente só na aparência, sendo bem mais velho do que sua fisionomia sugeria) coloca Filipe sentado em uma cadeira qualquer que estava por ali. Depois disso toma o cuidado de entregar um copo com água ao alemão para ajudar em sua recuperação. A água era da torneira. A preocupação do japonês tinha limite.

De repente dois nipônicos com roupas brancas de cozinheiro entraram na cozinha. Eles ficaram putos ao encontrar estranhos se intrometendo em seu trabalho. O quarteto foi expulso quase que a base de pontapés. Do lado de fora Marcos e sua trupe se deparou com um beco sujo e escuro, mas que chamava atenção por ter várias placas com ideogramas japoneses. – Fomos parar na Liberdade? – Perguntou Marcos.

– Não. – Respondeu Nakamura. – Acho que fomos parar um pouco mais distante. É isso que estou tentando falar para vocês.

Ao saírem do beco o quarteto se viu em uma rua larga cheia de casas modernas que dividiam espaço com construções tradicionais do tempo do feudalismo. As estradas por onde os carros trafegavam eram incrivelmente lisas e niveladas, algo que brasileiro nenhum estava acostumado a encontrar. A população que andava de um lado para o outro era constituída basicamente por indivíduos de olhinhos puxados. Um ou outro com fenótipo mais diferenciado que aparecia era imigrante ou filho de estrangeiro.

– Por favor, digam que o bairro da Liberdade foi ampliado! – Implorou Marcos.

– Bem vindo a Tóquio. – Respondeu Nakamura, com um sorriso no rosto que naquele instante conseguia ser bem irritante.

– O que estou fazendo aqui?! – Recuperado de seu mal estar, finalmente Filipe Liebcraft percebia a situação em que haviam lhe jogado. Instintivamente o alemão procurou por sua chave em seu bolso, o desespero o abateu quando seus dedos não encontraram nada. – Fizeram o quê comigo? Isso é um sequestro?! Polícia, socorro!

Marcos pega o empresário pelo colarinho de seu terno e mostra a ele seu olhar mais intimidador. – Escuta aqui, capacho. Por causa de você eu fui atacado por um maluco com uma motosserra e fiquei preso em uma dimensão paralela. É bom você não atrapalhar mais meu caminho ou eu mando as assombrações mais sinistras do astral transformarem sua vida em um inferno!

Liebcraft chegou a tremer o queixo, por um momento o vidente pensou que ele iria chorar. – Mas e minha chave?

– Perdeu. Agora é minha. Nem reclame.

Alex olhou para uma loja especializada em vender roupas fetichistas de gothic lolita. Não estava interessado no vestuário, só na porta. – Eu sou um fantasma, para mim distância física não é relevante, mas para vocês… Sei lá, a gente podia voltar para aquele corredor branco e escolher uma porta mais próxima a nossa casa.

– Não! Por Deus não! O quanto eu puder evitar aquele lugar eu evitarei! – Disse Marcos.

– Relaxem, essa chave mística não se faz necessária. – Respondeu Nakamura. – Existe avião para isso.

– Eu não tenho passaporte e na minha carteira só tem reais, que aqui não valem nada. – Falou Marcos.

– Sou um tecnomante, lembra? A magia sobre a tecnologia serve para esse tipo de coisa.

A viagem no trem bala demorou meia hora, não houve necessidade de comprar ticket, com sua varinha tecnológica Nakamura induziu o sistema do trem à pensar que o quarteto tinha suas passagens. O mesmo truque foi aplicado no aeroporto. Porém a magia sobre a tecnologia tinha seus limites, Nakamura podia influenciar qualquer máquina, sistema de informação ou ferramenta. Porém seu dom era inútil na manipulação de humanos. Ao menos não de humanos daquele século, já que seus cérebros ainda não eram aperfeiçoados por dispositivos cibernéticos. Para contornar esse problema Alex se mostrou uma mão na roda. Bastou que o fantasma possuísse alguns funcionários e pronto. Ao quarteto foi permitido pegar um avião com destino ao Brasil.

– Preparem a bunda, vocês vão ficar sentados por um bom tempo. – Disse Nakamura. – O voo leva vinte e cinco horas, sendo que faz escala na Califórnia.

Liebcraft e Nakamura foram sentados perto da janela, já Marcos e Alex próximo ao corredor. Até mesmo para o fantasma registraram uma passagem. Não que ele precisasse, só pela comodidade dele poder acompanhá-los e ter um lugar para se sentar sem ter ninguém azucrinando.

A viagem foi tranquila e monótona (ao menos de início) já que os quatro não conversavam entre si. Tirando Alex e Marcos, esse grupo não era formado por amigos.

Liebcraft se distraia assistindo a algum programa bizarro de competições da TV japonesa. Nas costas das cadeiras haviam televisões onde os passageiros podiam assistir qualquer coisa, para isso bastava usar os fones de ouvido. Nakamura estava de olhos fechados e com a cabeça recostada. Seus companheiros pensavam que ele estava dormindo, mas na verdade o japonês estava acessando a internet. Para isso servia seu modem ultra avançado implantado em seu cérebro.

Marcos lia uma revista de curiosidades que o avião disponibilizava. Graças ao fato de ser oniglota (falar e entender todos os idiomas), o vidente conseguia ler as matérias mesmo elas sendo escritas com ideogramas em um idioma que nunca aprendeu. Uma coisa é você compreender o idioma de um país, outra é compreender sua cultura. A revista era cheia de piadas a quais Marcos não conseguia captar, já que pensava como brasileiro.

Durante as várias horas de voo Alex não fez absolutamente nada. Devido a sua percepção de tempo diferenciada, ele não sentiu a passagem das horas. Estava quase em uma suspensão de existência. O fantasma só despertou, por assim dizer, quando um problema surgiu durante o trajeto.

Cinco passageiros ficaram em pé encarando o grupo. Mesmo assim eles só perceberam que algo estava errado quando o quinteto começou a falar em uníssono. Cinco bocas expelindo uma única voz. Uma voz de um ômega milenar rancoroso.

– Eu estava disposto a dar um mundo para vocês! Poder e influencia, o que poderia ser mais importante do que isso?!

Alex, Marcos, Nakamura e Liebcraft se entreolharam. Não precisaram de comunicação verbal para chegarem a conclusão de que estavam encrencados, bastou a troca de olhares.

– Agora é tarde! Não irei voltar atrás na minha decisão! Só quero que saibam o preço que se tem a pagar aqueles que me viram as costas.

O restante dos passageiros, que não estavam envolvidos na confusão, pareciam estar alheios ao que acontecia. Eles continuavam ocupados com seus afazeres ignorando o embate que se sucedeu. Um homem gordo tentou bater em Mignola, mas esse conseguiu nocauteá-lo sem dificuldade. Os quatro que restaram partiram para cima do vidente. Não importava se atacavam individualmente ou em grupo, no final todos foram nocauteados. Ao ver o estrago que fez Marcos sentiu uma pontada de remorso. Afinal aqueles pobres coitados não eram responsáveis por seus atos. Nenhum deles ficou gravemente ferido, mesmo assim iriam sentir uma boa dor de cabeça no mínimo.

De repente o avião começou a inclinar de maneira não usual. O bico do avião estava apontado para baixo em uma descida vertiginosa. – Meu Deus! E agora?! – Perguntou Marcos. Ele e seus colegas foram para frente. No entanto a porta que ligava à cabine do piloto estava trancada.

– Calma gente, deixem comigo. – Usando sua varinha tecnológica Nakamura conseguiu fazer com que a porta abrisse sem esforço. Na cabine o quarteto viu o piloto e o copiloto olharem para eles de maneira meio maniaca.

O piloto e o copiloto atacaram. Mas eram homens comuns, pais de família de meia idade e fora de forma. Marcos não teve dificuldade em colocá-los para dormir. Seu maior dilema era ter que lidar com o fato de que estava se vendo obrigado a agredir pessoas inocentes.

O avião estava quase em pé de tão inclinado. O chão começava a se aproximar de maneira muito ameaçadora. Nakamura usa sua varinha mais uma vez, apontando-a na direção do painel de controle. O avião começou a estabilizar, em poucos minutos voltando ao seu curso normal.

– Ufa! Pulamos uma fogueira. – Comentou Alex, fingindo uma sensação de alivio. Para começo de conversa nem nervoso ele estava. Já havia morrido mesmo. Que diferença faria uma queda de avião?

Ao pisarem em solo brasileiro cada membro do quarteto foi para um canto diferente. As experiências que passaram durante aquela crise os mudou de alguma forma. O único que não sofreu mudança em seu pensamento foi Alex, pois como era desencarnado ele não conseguia evoluir, estando sempre na mesma.

Liebcraft começou a se indagar se sua subserviência ao mestre Ayreon ainda valia a pena. Já que o ômega não parecia nem ter pensado duas vezes em por seu protegido em risco para alcançar seus objetivos.

O tempo que se viu preso em um mundo-ilha deserto sem nenhum tipo de sinal eletrônico ou digital fez com que Nakamura percebesse que se desconectar um pouco, nem que fosse só para ficar sozinho com seus pensamentos, não era algo assim tão ruim.

Já Marcos foi o que mais mudou.

Assim que chegou em casa Marcos foi recebido por sua esposa com um abraço e um beijo caloroso. Em seguida ganhou de presente um tapa na cara daqueles bem dados. – Nunca mais faça isso! Quer me matar do coração?!

Marcos não explicou onde estava nesses últimos quatro dias. Lorelei não se preocupou em descobrir a verdade quanto a isso. Ela sabia que seu marido havia se envolvido em mais um problema envolvendo seu dom. Ou seja, nada mais precisava ser dito.

Naquela noite, o casal se reconciliou com um pouco de vai-e-vem. Após o amor, aproveitando que Marcos estava relaxado, Lorelei achou que era um bom momento para contar a novidade.

A psicologa tirou de uma gaveta uma folha de papel e a entregou ao seu marido. – O que é isso? – Ele perguntou. Lorelei não respondeu, queria que Marcos lesse. O documento vinha com um texto enorme, porém só havia necessidade de se ler duas partes. No topo, o título vinha com a frase: “Teste de Gravidez”. No rodapé, o resultado: “Positivo”.

Continua…