Por Alan Cosme
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Quando um evento inesperado surge em nossas vidas e nos favorece nós temos a tendência a atribuir sua causa a ela: a sorte. Ao não estarmos a par dos elementos que propiciaram o evento positivo temos a ilusão de que ele foi aleatório. Sorte, azar. Essas coisas não existem. Quando se descobre toda a cadeia de causa e consequência que motivou o evento nós ficamos cientes de que nada é aleatório.
Marcos Mignola, por exemplo, acreditava que estava com sorte. Ele não procurava por emprego, mesmo assim aquela vaga foi até ele. Soraia ligou para seu celular em uma tarde de domingo qualquer perguntando se ele estava disposto a trabalhar em uma empresa ali perto que pagava bem. – Você fez aquele curso técnico, não é? Achei essa vaga para você.
Marcos não tinha experiência prática, por isso achava muito difícil ser selecionado. Mesmo assim ele foi para a entrevista, não custava nada a final. Duas semanas depois o pessoal do RH ligou. Marcos foi contratado.
– Que sorte! – Disse ele.
“Sorte”? Não havia sorte nenhuma ali. Marcos havia sido contratado para trabalhar como técnico de eletrônica em um emissora de televisão famosa chefiada por um descendente de alemão chamado Filipe Liebcraft.
Foi tudo armado. A disponibilização da vaga, a seleção, o chamado… Arquitetaram um verdadeiro teatrinho para fazer com que Marcos se vinculasse a empresa. Isso era parte do plano.
O novo emprego pagava tão bem que Marcos chegou a pedir exoneração do seu emprego público. Iria trocar sua estabilidade por um salário quase três vezes maior. Ponderando muito, o vidente chegou a conclusão que valia a pena arriscar.
A sede da emissora ocupava o espaço de um bairro inteiro. O complexo era gigantesco, abrigando vários edifícios que conseguiam ser enormes tanto na altura quanto no comprimento. Andar de uma área a outra era uma tarefa tão penosa que não era luxo a utilização de transporte motorizado. Nessa função era usado um tipo de minicarro que lembrava aqueles vistos em campos de golfe.
Logo na entrada, em uma posição bem visível, era ostentado a logomarca da empresa. Um U de cabeça para baixo, o símbolo do ômega.
Talvez por estar empolgado demais com a oportunidade, ou talvez por não gostar de teorias conspiratórias, Marcos não se atinou ao fato de que aquela letra grega cada vez mais se tornava importante na sua vida. Marcos não achou nem ao menos curioso ele ter sido convidado a trabalhar em uma emissora que se chamava TV Ômega.
Antigamente era mais comum as empresas receberem os novos funcionários através de um membro qualquer do RH. Hoje em dia algumas seguem uma nova tendência, a TV Ômega era uma delas. Ao invés dos novatos serem recepcionados em seu primeiro dia por um membro pé de chinelo qualquer, eles eram recebidos pelo próprio dono do lugar. Criando assim uma ilusão de importância.
Filipe Liebcraft estava impecável vestindo um terno que gritava o quanto era caro e chique. Na grande sala de recepção ele falava para um grupo de cinquenta novos colaboradores (hoje em dia é moda chamar os empregados assim, novamente para criar a ilusão de importância). Filipe era tão bom ator que não deixava transparecer que entre os novatos apenas um despertava seu interesse. Naquela sala o único que realmente importava para a TV Ômega era Marcos Mignola.
Apesar de nunca ter sido fã de televisão, Marcos não conseguiu deixar de ficar embasbacado ao notar que seria rotina cruzar com atores famosos pelos corredores. Logo no primeiro dia ele viu o galã da novela do momento andar de um lado para o outro com vários papeis na mão. Na certa estava memorizando as falas que usaria nas gravações do dia. O primeiro impulso de Marcos foi ir até ele e pedir um autografo. Mas aí ele se lembrou que idolatrar alguém de carne e osso não era algo legal e desistiu da ideia.
O primeiro serviço para valer de Marcos foi checar uma câmera que por algum motivo não estava fazendo seu trabalho direito. Inexperiente, ele demorou meia hora só para conseguir desparafusar o equipamento. Por sorte ele mexia na máquina em um lugar reservado, assim ninguém notava o quão era ruim em sua função. Ao ser contratado Marcos recebeu cinco aulinhas contendo o básico da manutenção de equipamentos de estúdio. O problema era que as aulas foram projetadas para alunos que já tinham o domínio de eletrônica. O curso técnico que Marcos fez foi há muito tempo, ele mal se lembrava dele. Resultado: Marcos não conseguia nem assimilar os ensinamentos mais básicos.
– O problema deve ser essa peça redonda aí. Deve estar queimada. É só trocar.
Marcos obedece ao conselho sem nem pensar duas vezes. Estava desesperado, não dava para ignorar uma ajuda. Ao se virar para agradecer, Marcos percebe que seu bom samaritano não era bem o que ele esperava. Não era alguém encarnado. Usando um uniforme de técnico, o fantasma aparentava ser um homem de meia idade corpulento e bonachão. A imagem alegre e despreocupada era prejudicada por um filete de sangue que escorria do canto de sua cabeça. Aquele sangue não era real, o fantasma não estava machucado (isso nem era possível já que não tinha corpo físico para machucar). O sangue era apenas a representação da causa que o levou a óbito.
Marcos achou a presença do fantasma curiosa. Era raro encontrar um desencarnado em um local como uma empresa (a não ser que ocorram muitas mortes nela). Geralmente os mortos se ligam mais as suas casas ou aos lares de entes queridos ou a templos religiosos ou a cemitérios.
O fantasma estava mais impressionado com a conversa que estavam tendo do que o vidente. – Você é a primeira pessoa que consegue me ver e ouvir! Por acaso é um médium?
Na verdade ele não era, Marcos era outra coisa como ele bem havia descoberto. No entanto explicar algo assim daria muito trabalho e geraria confusão. Ele optou por mentir, ou ao menos omitir parte da verdade. – Sim, desde sempre eu converso com morto.
– E pensar que quando vivo eu não acreditava nessas coisas. Me chamo Laerte, prazer. – O fantasma estendeu a mão para cumprimentar Marcos, o vidente acolheu o gesto, mas não foi bem sucedido. A mão dele atravessava a mão sem substância do morto.
– Aff! Odeio quando isso acontece! – Reclamou Laerte.
Com a ajuda praticamente vinda do Céu, Marcos conseguiu cumprir com suas funções e perdeu o medo de ser demitido logo no primeiro mês. – Pega aquele fio, desencapa e coloca naquele plugue. – Com a assessoria astral Marcos começou a se destacar. O problema era que ali, como em qualquer empresa, não dava para se destacar muito sem atrair a inveja e o despeito de alguns.
– Deus é mais! Esse aí só faltou tatuar o olho! – Enquanto Marcos se ocupava consertando um aparelho quebrado, dois outros técnicos de manutenção que não tinham o que fazer conversavam sobre ele.
– Também não fico muito confortável trabalhando perto desse aí.
– Sabe, eu estou pensando em uma coisa aqui que…
No final daquela semana Marcos teve a oportunidade de presenciar a gravação de uma cena de novela. Por não assistir muita tevê, o vidente não fazia a mínima ideia de quem eram os personagens ou qual o proposito da cena. Tanto faz, isso não tornava a experiência menos impactante. Participar da produção de uma novela famosa, mesmo em um papel tão pequeno como faz-tudo, deixava Marcos orgulhoso de si mesmo.
O cenário emulava uma casa do século XV, os atores usavam roupas de época. A cenografia era boa, mas nem tanto. A emissora não conseguia captar a realidade de uma família de seis séculos atrás. Alguns móveis mostrados em cena não existiam naquele tempo, isso sem contar que os personagens falavam um linguajar moderno demais. Isso pouco importava, o público-alvo daquela produção, em sua maioria, não estava interessado em uma representação realística, mas sim em uma história açucarada e uma visão de mundo romantizada. A história de amor incondicional entre o galã e a mocinha da trama era muito inverossímil de se encontrar naquele período histórico. No século XV uma mulher era vista quase que como um bem, um objeto, uma propriedade.
Marcos assistia a cena em um canto do estúdio, bem atrás das câmeras para não ser captado, quando…
– Porra é essa! – O diretor ficou puto. Marcos estava tão fisgado pela magia da televisão que nem notara quando a câmera principal começou a fumaçar no momento em que havia sido ligada.
– Não! Não! Não! Essa câmera custou o olho do c*! Ela é a única da emissora capaz de captar duzentos e oitenta frames por segundo! AAAAHHH!! Quem foi o último a mexer nela?!
Marcos engoliu em seco. – Fui eu.
– Mas que porra você fez?! Conserta essa merda ou tá na rua!
– Que azar! – Pensava Marcos.
Reiterando, sorte e azar não existem. Quando ficamos a par das causas e consequências que propiciaram o evento essa ilusão de aleatoriedade some. No caso de Marcos, por exemplo, seu “azar” foi construído por dois colegas invejosos que deram um jeito de sabotar a manutenção da câmera assim que Marcos tinha terminado ela.
Em uma sala reservada, o vidente abre a câmera importada e pede ajuda ao seu conselheiro fantasma. – Cara, essas peças aqui parecem que foram amassadas de algum modo. Só trocando.
– Pelo amor de todos os deuses não me diga uma coisa dessas! – A emissora não tinha peça de reposição para aquela câmera. Seria necessário pedir pelo exterior, o que causaria um enorme prejuízo. Não tanto pelo valor das peças, mas sim pelo tempo ocioso da máquina. As principais cenas da novela Paixão Épica eram filmadas somente com essa câmera. Parar as filmagens por um dia que seja representava uma perda na audiência que custaria alguns milhões.
Com a cabeça baixa, Marcos foi até o diretor contar a tragédia. O diretor ficou colérico. Dizendo inclusive três palavrões que mesmo alguém experiente como Marcos nunca tinha ouvido antes na vida.
O dia de trabalho continuou, Marcos esperava por consequências daquele incidente. No final do expediente um estagiário avisou a ele que o chefe da empresa queria vê-lo. O vidente tremeu na base. Durante o percurso que levava até o escritório do ilustríssimo senhor Filipe Liebcraft, Marcos ficou imaginando que tipos de desgraças teria que enfrentar. Acreditava que demissão seria o menor dos seus problemas. Pior seria se o valor do equipamento lhe fosse cobrado. A câmera era mais cara do que uma casa popular, o vidente levaria uma vida inteira para saldar aquela divida.
Na sala de espera ligada ao escritório onde Filipe trabalhava, Marcos aguardou ser chamado sentado em um sofá de couro tão confortável que chegava a incomodar. A secretária era uma moça bonita que parecia estar atraída pelo jeito rebelde do vidente. Porém, Marcos estava tão preocupado que não percebeu ou não ligou para a mulher que se insinuava a ele.
– Senhor Mignola, o senhor já pode entrar.
– Obrigado.
Antes de entrar no escritório o vidente esperava ver um zilionário mesquinho com o rosto enfezado. Ao invés disso, foi recebido por um homem receptivo, com um sorriso aberto. Antes que Filipe pudesse falar qualquer coisa Marcos foi logo tentando se desculpar.
– Que câmera?! Não te chamei por causa de nenhum aparelho quebrado.
– Ah não?! – Marcos respirou aliviado. Tanto que chegou a sorrir, achando graça de seu temor que agora começava a parecer ridículo.
– Você é um ótimo funcionário. Não tenho motivo para puni-lo por um problema que não foi de sua responsabilidade.
– Que bom! – O sorriso de Marcos começava a ficar meio abobalhado de tão exagerado.
– Chamei-o aqui para fazer uma proposta. Penso que você é importante demais para ser apenas um técnico.
De repente o sorriso morreu. Seu conhecimento da vida o fez ser muito desconfiado. Aquela promoção surgida do nada poderia fazer a alegria de alguém mais ingenuo. O problema era que Marcos não era ingenuo. Ele sabia que algumas boas ações vinham cheias de segundas intenções.
– Você nunca se imaginou tendo um trabalho maior na televisão?
A conversa ia para um caminho que Marcos não gostava. Ele até preferia ter sido demitido de uma vez. Como já conviveu com pessoas que trabalhavam no show business, Soraia sendo uma delas, Marcos estava ciente de que muitos rostinhos bonitos que aparecem na TV e em filmes só conseguiram seus papeis depois de fazerem um teste. O teste do sofá.
– Sou muito tímido, não dou para ator.
– Bobagem. Grande parte dos artistas são verdadeiros introspectivos no cotidiano.
Filipe a medida que falava ia se aproximando de Marcos, esse por sua vez tentava discretamente se afastar. Todo aquele fingimento do primeiro dia de trabalho havia caído por terra. O interesse que Filipe nutria pelo vidente agora se tornava evidente. O que Marcos não estava entendendo era que o interesse de Filipe para com ele não tinha nada a ver com sexo.
– Não estava pensando só em papeis dramatúrgicos. Acredito que você tem potencial para participar da gerência. Para ter em mãos os cargos mais altos. Isso é o mínimo que posso oferecer a um…
Marcos não era homofóbico, mas isso não o impedia de se sentir incomodado ao ser paquerado por alguém do mesmo sexo. Principalmente nessa situação, onde havia uma relação de poder implícita. O vidente não gostava de ser grosso, mas naquele instante Filipe o deixava sem outra alternativa.
– Escuta aqui, doutor! Se você pensa que pode me comprar eu…
– Nunca passou pela minha cabeça algo assim, senhor. Sou só um criado. – Liebcraft se curvou mostrando uma reverência que não combinava com alguém de seu nível social ou até mesmo de nossa época.
– Que fetiche maluco é esse?!
– Não brinque comigo, mestre. Você sabe muito bem o porquê de estar aqui.
Marcos cada vez mais ficava assustado. Seus olhos estavam tão esbugalhados que pareciam quererem soltar de suas órbitas. Mas isso ainda não era tudo, o vidente teria motivos para ficar ainda mais impressionado.
– Não me chame de mestre! É muito… Estranho.
– E que palavra devo utilizar para me referir a alguém como você? Um ômega!
Marcos iria responder outra coisa quando de repente a última palavra proferida pelo alemão internalizou e ele compreendeu o que sua presença ali significava. – Ai meu Deus!
Liebcraft aproximou-se da porta do seu escritório, fechando a entrada com chave. – O que está fazendo? – Perguntou o vidente. Ignorando o questionamento, o alemão voltou a por a chave na fechadura reabrindo a porta. No entanto, algo aconteceu. A porta não mais ligava à sala de recepção onde Marcos aguardou ser atendido. Ao abrir aquela entrada Filipe revelou um corredor branco que parecia não ter fim lotado com infinitas portas verdes idênticas entre si.
– O que diabos é isso?!
– Você não é um ômega?! Não me diga que você nunca entrou nos Bastidores!
Marcos sentiu vergonha da própria ignorância. Quanto mais vivia mais tinha a compreensão de que seu conhecimento do mundo era incrivelmente limitado. Pior, quanto mais vivia mais ele compreendia que as “pessoas normais” sabiam menos do que nada.
Liebcraft entrou nos Bastidores. Com a porta para o seu escritório ainda aberta ele fez sinal para que Marcos o acompanhasse. O vidente ficou receoso de início, mas não tardou para seguir o alemão nessa nova empreitada. Quando Marcos entrou no corredor branco, Liebcraft tomou a liberdade de voltar a trancar a porta do seu escritório a chave.
– Não sabia que a TV Ômega tinha um bastidor tão… Único.
Liebcraft riu do comentário do vidente, fazendo com que ele se sentisse ainda mais ignorante. – Nós não estamos nos bastidores da emissora, seu bobo. Aqui são os bastidores do mundo. Uma parte da realidade escondida atrás do véu.
– Ah tá.
A dupla caminhou por cerca de três minutos naquele corredor até que Liebcraft parou em frente a uma porta especifica entre as cetenas de milhares. Marcos acreditava que a escolha do alemão era aleatória, já que todas as portas eram iguais. Ao pensar nisso o vidente se perguntou como fariam para retornar. Ali não havia nenhum ponto de referência, tornando a tarefa de se guiar bem penosa. Ao menos para quem não estava acostumado com aquele ambiente, o que não era o caso de Liebcraft.
– Onde você está me levando?
– Quero que conheça o dono da TV Ômega.
– Mas essa pessoa não é você?
Liebcraft o ignorou mais uma vez.
Aquela porta aberta provocava um efeito no mínimo curioso. O lado de dentro, em relação ao corredor, lembrava uma porta de escritório comum, pintada em um tom verde discreto. Já no outro lado ela parecia ser feita de madeira pouco trabalhada, como um móvel rústico, sem pintura alguma. Sua aparência externa combinava com o cenário a qual fazia parte. O lugar onde Marcos foi convidado a entrar mais parecia uma cabana de filme de terror B. Ao olhar para uma das janelas o vidente notara que do lado de fora só havia mato. Uma cabana no meio da floresta. Mais filme de Terror B impossível. – Que lugar é esse?
Marcos vacilou. Não conseguiu impedir Filipe de fechar a porta atrás dele. O alemão havia trancado a porta usando sua chave especial. Sendo que ele estava ainda no corredor. Resultado: Marcos se viu sozinho naquele cenário inóspito.
– Hei! Volta aqui! – Marcos tentou seguir o empresário, mas quando foi abrir a porta da cabana ela não ligava mais aos Bastidores do mundo. Era apenas uma porta comum que servia de entrada e saída da casa. – Desgraça! – Protestou Marcos. A raiva de ter sido enganado conseguia superar seu medo.
A cabana era pequena, só tendo um cômodo. Não havia nem banheiro, qualquer necessidade fisiológica tinha que ser feita no mato, o que não faltava nas redondezas. No canto da cabana havia um fogão a lenha e alguns armários que serviam de dispensa. As paredes pareciam ter sido brancas algum dia, mas agora estavam quase cinzas de tão imundas. No meio da cabana havia um tapete redondo muito desfiado, além de dois sofás bem desgastados. A iluminação não era elétrica, sendo fornecida por uma lampião a gás. Marcos torcia para que houvesse combustível o suficiente para o lampião se manter funcionando ao menos até amanhecer.
Preocupação desnecessária, aquele lampião nunca pararia de funcionar.
O problema era que ali o amanhecer nunca chegava.
Marcos estava pensando como poderia sair daquele problema quando seu raciocínio é interrompido por um som de batida forte. Alguém, ou alguma coisa, estava do lado de fora da cabana golpeando a porta desesperadamente. Marcos se aproximou da entrada com cautela, já que o visitante podia ser hostil. Seu sexto sentido, que era muito bom por sinal, dizia que Marcos devia atender a porta. Ele assim o faz. Um casal que não devia ter mais do que vinte e cinco anos entra na cabana sem ligar para bons modos. Estavam assustados. Os dois vestiam tênis, bermudas e camisas leves, uma roupa comum para quem fazia trilha. Porém, nenhum deles carregava mochila. Provavelmente as deixaram para trás durante a fuga de seja lá o que fosse.
– Pelo amor de Deus não abre essa porta! – Protestou o rapaz, tentando controlar o tom de voz para não ser ouvido por seu perseguidor.
– O que foi?! – Perguntou Marcos temendo a resposta.
O casal não respondeu, estavam nervosos demais para se preocuparem com isso. Os dois apenas se encolheram na frente de um dos sofás, sentados no chão, um abraçando o outro. Torciam para que tudo aquilo acabasse logo. O problema era que “aquilo” nunca acabava.
Marcos ouve um som de motor e imagina se tratar de um carro que passava pela área. Ele fez menção de abrir a porta para ver quem era, mas desistiu diante o protesto desesperado do casal.
Os amantes originalmente eram morenos, mas estavam tão apavorados que a cor deles havia fugido, fazendo com que ficassem mais brancos do que Marcos. O som do motor estava se aproximando. A medida que ficava mais perto mais pálido o casal ficava.
Marcos olha para a janela, como sua visão era muito boa em ambientes escuros ele conseguiu ver ao longe um homem magricela que vestia roupas surradas e escondia o rosto com uma máscara improvisada feita com o que parecia ser um saco de batatas. O mais aterrador naquela imagem era o fato do figura carregar uma motosserra. O som vinha da arma e não de um suposto carro. Como o motor que fazia funcionar aquela ferramenta de cortar árvore era o mesmo usado em alguns modelos de moto, era comum fazer essa confusão.
Em uma floresta escura um ponto de iluminação proporcionado por uma cabana, mesmo que frágil, chamava atenção. Marcos iria apagar o lampião, mas já era tarde demais. O psicopata havia percebido a luz e começava a se sentir atraído por ela.
O som da motosserra tão próximo fez com que o casal esquecesse a prudência e gritasse a plenos pulmões. Se o psicopata tinha alguma dúvida de que a cabana estava sendo ocupada ela havia morrido naquele instante.
A porta da cabana estava trancada, Marcos tratou logo de por alguns móveis como barricada. Não que isso fizesse diferença. Usando sua motosserra, o psicopata providencia uma abertura através de uma das janelas.
Para piorar a janela era baixa, o psicopata não encontrou dificuldade em passar as pernas por ela e entrar. Mesmo carregando aquela arma pesada. O monstro parecia ignorar o vidente, só se preocupando com o casal desesperado. Marcos não deixou de perceber isso e de achar interessante.
O casal encolhido no sofá não conseguia fazer nada a não ser abraçar um ao outro e esperar o inevitável. O psicopata erguia sua motosserra e já se preparava para descer com tudo e serrar o corpo dos enamorados ao meio. Ele conseguiria se algo não parasse o caminho de sua arma.
Ignorando toda a lógica, Marcos se deixou guiar por seu sexto sentido. Ele lhe dizia que aquilo que queria fazer era possível.
A motosserra não conseguiu tocar na carne do casal, pois foi interrompida pelo vidente, que agarrou a lâmina da arma com suas mãos nuas. A motosserra estava operando, mas não conseguia fazer frente a força de vontade de nosso herói. Durante a peleja, as tatuagens de seus braços brilhavam em um tom dourado. Marcos se sentia invencível, e talvez até o fosse. Quando os dentes da motosserra passavam pelas mãos do vidente eram eles que perdiam. A medida que eles friccionavam naquele agarrão, eram os dentes que ficavam cegos. Em menos de um minuto aquela motosserra ficou inutilizada. Para deixar a cena ainda mais absurda, Marcos toma a arma da mão do psicopata e a quebra ao meio, usando apenas a força dos seus punhos.
Como todo psicopata, o homem da motosserra só conseguia ser valente quando estava em posição de vantagem confrontando uma vítima indefesa. De súbito o monstro ficou com mais medo de Marcos do que o casal tinha medo dele.
Marcos Mignola arremessa a motosserra para longe e em seguida dá um soco tão forte no psicopata que ele sai voando e some de vista, inclusive atravessando a parede da cabana, que não era fina.
– Caralho!
O rapaz iria agradecer Marcos, mas o vidente não prestou atenção nele porque a porta da cabana havia sido aberta. Era Liebcraft que chegava usando sua chave especial. Graças a isso aquele cenário de filme B voltou a ser ligado ao corredor que correspondia aos Bastidores do mundo.
Puto da vida Marcos corre em direção a Liebcraft, fechando a porta atrás de si. O vidente pega o empresário pelo colarinho, ele tinha perdido todo o respeito por aquele homem. Era difícil continuar gostando de alguém que você acreditava ter tentado te matar.
– Sinto muito, porta errada!
Marcos esbravejou vários desaforos, mas a expressão submissa daquele homem tão poderoso o fez cortar seu ódio. – Espera aê. Não precisa tanto.
– Senhor, rogo pelo seu perdão! – Liebcraft se ajoelha em uma demonstração patética de devoção. Isso deixou Marcos sentindo uma forte vergonha alheia.
– Anda, levanta. Deixa de putaria.
Marcos força o empresário a ficar de pé o puxando pelo braço. – O caminho certo é esse. Mil perdões! – Mais uma vez Liebcraft usa sua chave para abrir uma das portas. Agora dando acesso a um cenário menos tenebroso. Marcos tentou fazer com que o alemão entrasse na frente, mas o homem insistiu para que o vidente fosse sozinho. Marcos foi vencido, mas tinha receio de acabar se encontrando em outra armadilha.
A sala por onde Marcos entrou não parecia ser perigosa. Não havia janelas e toda parede era coberta por incontáveis monitores, não deixando espaço livre. No meio daquela sala um homem estava sentado em uma poltrona. O sujeito parecia velho demais para ser perigoso. Só vestia branco: os sapatos, a calça formal e o terno de grife. O cabelo do coroa era exótico, não combinando nem com sua idade nem com as roupas que usava. Juntando todas aquelas características, o homem mais parecia um personagem de ficção. Marcos não sabia como, mas assim que pôs os olhos nele teve a certeza de que era um igual. Assim como Marcos aquele velho era um ômega.
Todos aqueles monitores mostravam uma cena diferente. Mesmo parecendo impossível, o velho conseguia assistir a toda aquela programação simultaneamente, sabendo exatamente o que cada tela transmitia. Além de conseguir assistir cem canais diferentes ao mesmo tempo, ele conseguia também conversar enquanto assistia a tudo aquilo. Sua percepção era perfeita.
– Muito impressionante o que fez. É difícil conjurar tantos seres imaginários, principalmente na sua idade. É difícil também aprender a mudar de frequência vibracional sozinho. Falando nisso, você me causou um problemão enviando aquele delegado ao (como você chama mesmo?) Mundo Vermelho. Por favor, nunca mais faça isso.
O fato daquele homem demonstrar conhecimento de tanto detalhe de sua vida deixou Marcos preocupado. – Quem é você?
– Qualquer um que tenha vivido tanto quanto eu acumula uma série de nomes. Eu gosto de ser chamado de Ayreon, mas se achar esse nome difícil de ser pronunciado, ou até mesmo de alguma forma inapropriado, se sinta a vontade de me chamar por outro.
– Tudo bem, Ayreon está bom pra mim.
– Ótimo.
– Já disse que não quero ir a esse tal de Ponto Ômega. Por que vocês insistem?
– Você não está me entendendo, eu não sou parceiro de Neide e sua trupe. Quero lhe fazer outra proposta. Se gosta tanto desse século, tudo bem, pode ficar nele. Eu o chamei, pois o escolhi para ser meu aprendiz. Como qualquer ser vivo, meu tempo de vida está no fim. Preciso ensinar alguém tudo o que sei para deixar um legado.
– Para alguém com oitenta anos você está muito bem.
– “Oitenta anos”? Eu sou muito mais velho do que isso.
De repente Marcos se lembrou de uma frase dita por Neide se referindo a Lorelei: “Nós temos todo o tempo do mundo, ela não”.
– Por acaso os ômegas são imortais?
– Assim como os humanos nós nascemos, envelhecemos e morremos. Só que com alguns milhões de anos de diferença.
– O quê?! Eu posso viver tudo isso?!
– Tecnicamente sim. Se bem que mais de setenta por cento dos ômegas acabam morrendo antes de completarem o primeiro milênio por se envolverem em confusão.
Marcos ficou chocado. Descobrir que tinha uma expectativa de vida tão longa o assustou um pouco.
– A TV Ômega é transmitida à setecentas e doze dimensões diferentes. O poder de influenciar tantos planos de existência não é pouca coisa até mesmo para um ômega. Sinta-se honrado com essa oportunidade que estou lhe oferecendo.
– Sem ofensas, passar séculos sozinho assistindo várias tevês ao mesmo tempo não é bem o que eu almejo para minha vida.
– Entendo, você ainda raciocina como um humano. Raciocina como se tivesse pouco tempo de vida a aproveitar.
Marcos tenta abrir a porta da exótica sala de videomonitoramento, mas ela se encontrava trancada. – Quero sair daqui!
– Calma, antes que saia quero ter certeza de uma coisa. Você realmente está decidido a declinar de minha proposta?
– Sim!
– Tem certeza mesmo?
– Sim, caralho!
Ayreon mantinha sempre a expressão constante, Marcos não conseguia decifrar se o ômega milenar estava irritado com a recusa ou se realmente permanecia emocionalmente indiferente.
– O caminho por qual quer trilhar não tem volta. – Ao Ayreon terminar de falar essas palavras a porta responde e sede as tentativas do vidente, abrindo. Porém a porta não estava ligando mais ao corredor branco dos Bastidores do mundo. Do outro lado da porta o cenário mostrado parecia uma ilha tropical. Ao contrario da área da cabana, o sol estava a pino, não era noite. Marcos nota que aquele não era o caminho certo para sair de toda aquela loucura e voltar ao seu lar, por isso tenta fincar seus pés no chão se mantendo imóvel. Apesar dos seus esforços foi inevitável, uma força invisível o empurra e o bane para aquela floresta. Marcos cai de cara no chão, chegando ao ponto de engolir um pouco de areia.
Antevendo o que veria a seguir, o vidente se levantou o mais rápido que conseguia e tentou voltar à sala de videomonitoramento. Tarde demais, a porta atrás dele havia sido fechada. Quando ele tenta reabri-la, a porta não mais era uma passagem mística, mas sim uma simples porta de madeira que ligava ao interior de um chalé.
Os temores de Marcos Mignola se confirmaram. Ele ficou preso em outra dimensão.
Mas que azar!
Continua…