[Conto] O enigma das sete cabeças – capítulo 3

0

A terrível decisão

rosapor Carlos Henrique

Várias horas se passam e os olhos de Andressa se abrem lentamente. O ar do quarto está pesado e gelado, fazendo com que ela respire com certa dificuldade. A jovem olha na direção da janela e percebe que não há pontos de luz nos pequenos buracos que existem ali, e isso a faz entender que já deve ser noite, caso contrário, ela deveria ver notáveis feixes de luz adentrando o quarto através daqueles pequenos buracos.

Andressa gira seu corpo para um lado e para o outro, tentando buscar uma posição mais confortável e que possa amenizar a latente dor de cabeça que está vindo. Lucas está ao seu lado, deitado com a barriga para baixo. Ela o percebe, e evita encostar-se a ele, para não acorda-lo abruptamente. Então, ela fica imóvel por alguns instantes, meditando em tudo o que está acontecendo, enquanto seus olhos, aos poucos, se habituam à escuridão do quarto.

Totalmente acordada, Andressa desfruta de um pequeno momento de paz, que a faz meditar em sua vida, pensar em sua infância e em sua família. Inevitavelmente, ela se lembra dos dias que antecederam o seu casamento com Lucas, e de como a vida dos dois era feliz até o momento em que seus problemas começaram. Andressa começa a imaginar a possibilidade de que tudo aquilo que está acontecendo a ela realmente possa ser algo apenas em sua mente, – as alucinações, as vozes e até aos estranhos eventos que ocorreram na madrugada daquele mesmo dia – e que ela deveria ceder aos tratamentos médicos que seu marido tanto insiste que ela faça. Mas a terrível e perturbadora imagem dos estranhos eventos ainda está viva em sua mente.

Todos os problemas começaram em uma madrugada de sexta feira para sábado, há cerca de quatro meses. Na ocasião, Andressa acordou pensando estar escutando barulhos oriundos do banheiro, e ao perceber que Lucas não estava no quarto, ela se levantou para ir ver o que estava acontecendo. Quando ela chegou à porta do banheiro, que estava aberta, Andressa pode ver que Lucas estava ajoelhado em frente ao vazo sanitário, com sua cabeça totalmente inserida dentro do vazo. Lucas estava na ocasião, literalmente, comendo restos de fezes que estavam dentro vazo sanitário. Andressa imediatamente tentou socorre-lo, mas logo em seguida, ele se levantou e a jovem percebeu que ele estava com os olhos leitosos, como os olhos de um velho padecendo de catarata. Ele passou a falar coisas estranhas, com uma voz grossa e horrivelmente desconhecida. Porém, no dia seguinte, Lucas disse à ela que, na verdade, ele se levantou de madrugada após ver que ela estava queimando de febre, e que ele foi até o banheiro buscar uma toalha molhada para aliviar a alta temperatura do corpo dela. E, chegando ao banheiro, ele viu Andressa caminhando em direção à ele, falando palavras estranhas e caindo em convulsões em seguida. Desde então, problemas dessa natureza passaram a ser frequentes na vida do casal.

Andressa continua meditando, procurando respostas para seus transtornos, até que ela escuta nítidos passos ao lado de fora do quarto, como se alguém estivesse perambulando pela casa. O Cobertor está posto sob seu corpo até a altura do seu umbigo, mas em razão do som dos passos ela logo o puxa até a altura de sua cabeça. Os passos são notórios, como se alguém estivesse subindo lentamente as escadas. A jovem entra em uma luta mental contra si mesma, tentando controlar seus pensamentos. Ela tampa os seus dois ouvidos e tenta acreditar que aquilo tudo não é real, mas os passos estão cada vez mais nítidos e próximos. Andressa olha para o lado e vê Lucas, imóvel, como se não estivesse respirando. No entanto, acorda-lo não será uma boa ideia, pensa ela. Já que em outras ocasiões semelhantes ele apenas a ignorou, dizendo que ele nada estava escutando. Mas o som dos passos está cada vez mais alto, evidenciando a sua localização, – nas escadas. Andressa cobre a cabeça até a altura dos olhos e pensa repetidas vezes, – isso não é real – mas não adianta em nada. O som dos passos está agora no corredor onde fica o seu quarto, e vai se aproximando cada vez mais da porta, que fazendo um sonoro ranger de madeira, se abre lentamente. O som claro da porta se abrindo faz com que Andressa cubra toda a sua cabeça, e mais uma vez ela morde os próprios dentes e cerra seus olhos, pensando fortemente as mesmas palavras, – isso não é real – mas ela escuta nitidamente, vinda da porta do quarto, a voz de Lucas.

– Amor, desculpa eu te acordar, mas eu já terminei o jantar. Quando você quiser, pode descer. Vou estar lá na cozinha. – Lucas bate a porta e desce as escadas, fazendo o mesmo som dos passos que Andressa estava escutando segundos atrás.

A mente de Andressa fica confusa. Ela está sem reação e não tem ideia do que fazer. Ela simplesmente permanece com a cabeça totalmente coberta e pensa consigo mesma:

– Como pode Lucas estar aqui ao meu lado e, ao mesmo tempo, aparecer na porta do quarto me chamando para ir jantar? – Então, com um gesto involuntário, ela toca a perna de Lucas com a ponta do seu pé direito, na altura da panturrilha dele, mas ela sente que o que ela acaba de tocar em nada se parece com a perna de Lucas. Ela toca uma perna grossa e peluda. Os pelos grossos espetam o pequeno pé de Andressa, que com um salto, se retira da cama desesperada para acender a luz do quarto. Ao acender a luz, Andressa olha para a cama e vê que na verdade não era Lucas quem estava ali o tempo todo ao seu lado. Mas sim, a mesma mulher de aspecto horrível que Andressa havia visto na madrugada daquele dia. Trata-se de uma mulher loira de pele clara, quase branca. Os olhos da mulher são bem redondos e possuem cor de chumbo. Seus lábios são finos e tem uma coloração avermelhada. Ela ostenta um leve sorriso, que deixa a mostra os seus dentes brancos. A mulher está com o corpo totalmente coberto pelo cobertor e apenas seu rosto pálido fica à mostra. Andressa apenas a observa por uns instantes, enquanto que a mulher fica imóvel, como uma estátua de cera, encarando a jovem nos olhos, desafiando-a. Quando a Andressa, desesperada, tenta abrir a porta, a mulher que aparentemente estava imóvel se levanta da cama, e quando o cobertor sai de cima dela, o seu corpo é revelado: da cintura para cima ela é uma mulher normal, mas logo abaixo do tronco, há duas pernas semelhantes a duas patas de cavalo. Patas traseiras. A criatura caminha trotando na direção de Andressa, que novamente fica imóvel tentando buscar forças para controlar sua mente. A loira é tão pesada, que à medida que ela vai trotando na direção de Andressa, as paredes do quarto estremecem, e o som de seus dois cascos pisando no chão é como o som de golpes de uma grande marreta sendo aplicados sobre uma tora de madeira.

A criatura fica parada na frente de Andressa, que está com os olhos fechados, repetindo vigorosamente – isso não é real – até que a criatura, dessa vez, decide se pronunciar:

– Eu estive ao seu lado durante todo esse tempo Andressa, mas hoje é o dia em que levarei sua cabeça para satanás! – A voz da criatura é semelhante à própria voz de Andressa. A jovem continua com os olhos fechados, repetindo sua frase como se fosse um talismã, que fosse fazer aquela alucinação se dissipar como uma estrela cadente morrendo no céu em meio às estrelas. Mas quando Andressa abre seus olhos, ela contempla de perto a coisa, que com a boca aberta ostenta uma longa língua bifurcada.

– Eu estive ao seu lado durante todo esse tempo Andressa, mas hoje é o dia em que eu arrancarei a sua cabeça e a levarei para satanás! – Andressa, após escutar o que a criatura acabara de dizer, sai do quarto correndo, gritando pelo nome de Lucas. Ela, novamente, perde a luta contra sua mente e se rende para o desespero. Exatamente como fez nas demais vezes. Andressa desce as escadas, desesperada, e corre em direção à cozinha, onde Lucas disse que estaria esperando por ela. Ao chegar à cozinha, realmente Lucas estava sentado à mesa jantando, no entanto o que estava posto sobre à mesa não era um cardápio normal; o cadáver do cachorro encontrado na madrugada do dia estava posto sobre a mesa. As mesmas velas estavam acesas ao redor dele, enquanto Lucas enfiava sua mão na barriga aberta do cão e devorava suas entranhas, com uma fome voraz. Como se não se alimentasse há dias. Andressa fica petrificada ao ver a situação. Lucas levanta a cabeça e encara Andressa nos olhos, – novamente leitosos como os olhos de quem sofre de catarata – e conversa com ela, com uma voz que parece ter saído do fundo de um poço.

– Coma Andressa, venha comer essa deliciosa carne podre aqui, antes que o demônio que está no nosso quarto desça para comer a sua! – Disse Lucas, soltando uma leve gargalhada. A pressão arterial de Andressa sobe a níveis altíssimos. Ela sente uma forte dor aguda em sua cabeça e novamente despenca no chão da cozinha, parecendo um pé de milho verde sendo ceifado por um facão afiado. Seus olhos se reviram dentro das cavidades oculares e seus membros se enrijecem, ficando duros tanto quanto madeira de Lei. Lucas, por outro lado, levanta-se desesperado da mesa e ergue o corpo de sua mulher, como ele sempre fez em situações semelhantes. Ele abraça sua esposa com dificuldade, em razão dos fortes espasmos, ocasionados pela convulsão, e chora um choro de lamento, enquanto tenta conter a convulsão de Andressa, protegendo principalmente sua cabeça. O casal fica por mais três ou quatro minutos no chão da cozinha, até o momento em que a convulsão de Andressa cessa e ela apenas desfalece inconsciente. Lucas a conduz ao quarto para que ela possa repousar. Ele Fecha a porta do quarto e desce as escadas.

Chegando à sala, Lucas chora.

Ele está devastado. Seu coração queima como um ferro em brasa, ferindo e corroendo seu peito, enquanto diversos pensamentos invadem sua cabeça como uma tempestade. Ele sabe que o quadro de Andressa é critico, e teme passar o resto dos seus dias vendo seu amor sofrer, definhando e piorando a cada dia, chegando ao ponto em que ela não conseguirá distingui-lo em meio a outras pessoas. Essa terrível enxurrada de previsões atinge sua cabeça. Ele imagina seus familiares tendo que auxiliar sua esposa durante o banho, bem como, ele a ajudando nas refeições, para ter certeza de que ela não se engasgará com o garfo. Não há mais esperança – pensa ele.

Sozinho na sala e em meio a todos esses pensamentos e reflexões, Lucas está inconsolável. Totalmente sem perspectiva de um futuro feliz ao lado de sua esposa e sem esperança de que alguma coisa possa ser feita, pois nem mesmo os remédios e os tratamentos que o Doutor Olavo proporciona a ela, surtem efeito.

Da antiga estante da sala, moldada em madeira cor de tabaco, ele apanha uma garrafa de Martini. Gole após gole, ele acaba por exterminar o velho líquido branco que jazia dentro da garrafa, o que concede a ele a coragem necessária para tomar a decisão que, nesse momento, sobrevoa sua cabeça como urubus sobrevoando uma carniça, – matar Andressa e se matar em seguida.

Ele atira a garrafa vazia de Martini na estante, quebrando o vidro da pequena porta. Passa as duas mãos no rosto e se levanta do sofá, decidido. Sim, ele matará sua esposa e irá se matar em seguida. Lucas passa a andar pela casa, de forma totalmente desnorteada, procurando uma maneira indolor de cometer o ato insano, enquanto Andressa dorme e descansa os músculos de seu corpo, extremamente castigados após as câimbras e luxações provocadas pela convulsão. Ele sabe que trará paz para sua esposa, e age incentivado como se estivesse fazendo um ato heroico, – se ninguém pode fazer nada por ela, farei eu. Irei acabar com esse sofrimento! – pensa ele.

Ele se lembra dos pedaços do vidro da porta da estante, que se estraçalhou com o golpe seco da garrafa de Martini. Então, ele abaixa-se ao chão, perto dos fragmentos, e seleciona um belo pedaço de vidro quebrado, extremamente afiado. Tão afiado que seria capaz de cortar a retina daquele que encarasse seu fio cortante. Tão cortante como um bisturi. Ao retirar o pedaço de vidro do chão, Lucas vê, por um segundo, sua imagem mal refletida no objeto: será o reflexo de um assassino, ou o reflexo de um homem apaixonado, querendo livrar seu grande amor do sofrimento?

Lucas sobe as escadas em direção ao quarto, como se estivesse indo ao gólgota. Um caminho sofrível. Mas ele chega ao quarto, o adentra e fecha a porta. A casa fica silenciosa. Dentro do quarto, sobre a cama, está Andressa. Praticamente do mesmo jeito que ele a deixou. Sem acender a luz ele se aproxima dela, segurando sua arma improvisada. Andressa dorme respirando fundo, e de longe ele observa o pescoço de sua amada, que imediatamente o faz decidir que ali será aplicado o golpe fatal. Ele exista por alguns segundos, mas percebe que isso apenas tornará o ato ainda mais sofrível para ele. Então, decidido como um juiz julgando uma causa, utilizando-se de provas infalíveis, ele parte na direção do pescoço de Andressa e desfere um forte golpe com a lâmina do vidro no pescoço da jovem. A sensação é como a de enfiar uma faca em um pote de manteiga. A lâmina escorrega de forma macia. Silenciosa, mais eficiente naquilo que propõe. Andressa, por outro lado, parece nem ter sentido. Apenas foi desligada, como se um botão fosse apertado em seu peito, interrompendo imediatamente sua respiração. O sangue arterial foi expulso do corte, saltando em seis rápidos jatos, que pintam uma macabra arte abstrata na parede do quarto. Lucas não viu nada. Ele desferiu o golpe virando o rosto rapidamente, assim como fez Perseu: golpeando o pescoço da Medusa sem encara-la nos olhos.

Agora, Andressa jaz morta na cama, enquanto Lucas retira seus sapatos, com a intenção de deitar-se com ela.

Deitado sobre a cama, ao lado do corpo degolado de Andressa, ele encosta o seu rosto quente ao rosto já morno do cadáver de sua esposa, enquanto sussurra para o vento – Desculpe-me amor! – Após dizer essas palavras, ele desliza a lâmina do vidro, com força, em seu pulso esquerdo. Rapidamente, troca o objeto de mãos e desfere outro golpe, só que agora no pulso direito. Um golpe tão forte dessa vez que a lâmina transparente chegou a cortar o osso, produzindo o mesmo som que um garfo faz ao raspar restos de comida em um prato. Com os dois pulsos gravemente feridos, ele abraça o corpo de Andressa, fecha os olhos e espera a morte chegar, enquanto seu sangue venoso escorre dos pulsos, como dois canos estourados. A morte vem para Lucas assim como o sono vem para um trabalhador, após um longo dia na labuta.

Lucas morre. A casa agora está totalmente silenciosa, e são vinte e duas horas e vinte e dois minutos.

Continua…