[Conto] Lendas do dragão do céu: A sombra do ranger – FINAL

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Com as próprias mãos

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por Gabriel Mendes

Guilherme chegou ao acampamento, ofegante devido à corrida. Percebeu que Ley estava parado na mesma posição desde que o deixara. O Sol se erguera um pouco mais, iluminando a parte superior do rosto de Ley: os olhos e a testa. Sua pele pálida fora tingida de vermelho pela luz, um Amanhecer Vermelho.

– Uns dizem que o Amanhecer Vermelho é o presságio de uma grande batalha… – Disse Ley, olhando para o nada. Guilherme voltou-se para ele – Outros que ele vem depois… – Ley virou o rosto para o Ranger – Ambos estão corretos.

Guilherme foi até o outro lado da estrada. Não refletia sobre o que Ley dissera, mas a Sombra o fazia. A entidade o obrigava a observar Ley, analisá-lo, tentar descobrir que mensagem ele quis passar. Guilherme percebeu que Ley estava parado, olhando sempre para o mesmo ponto: o Sol.

O Sol: o maior inimigo de toda pessoa de Angband. Além de queimar a pele, causar doenças misteriosas e fatais para os de pele pálida e inibir o frio, o astro reduzia o poder das Trevas. Aquela Luz toda enfraquecia os seres das Trevas, e isso incluía todas as pessoas de Angband. Ley era, de longe, o mais fraco do grupo durante o dia ou à plena Luz, mas, era o mais poderoso no escuro. A própria Wanda, acostumada a viver em Angband e nas Ilhas do Norte, odiava aquele Sol. Aquele que ressecava sua pele, a fazia suar, tirava-lhe seu frio. É possível filosofar, meditar e/ou falar do Sol, o Frio, de Angband, das Ilhas do Norte e muitos outros assuntos, mas é melhor continuar a história.

Enquanto o conflito entre Ley e Rei dos Astros, Deus dos Desertos e tantos outros títulos ocorria, a Sombra de Guilherme não chegou a nenhuma conclusão. O resto do grupo acordou cerca de uma hora após o retorno de Guilherme, menos Jed, que dormiu mais meia-hora.

Jed fingira estar dormindo na noite anterior, enquanto Ley e Wanda conversavam. Decidiu contar a Lily e Gustaff o que estava acontecendo. Os três logo ficaram contra Ley, pensando que era tudo uma conspiração dele e com razão de pensar; porém, pensando errado. Estavam tramando salvar Guilherme da corrupção através de uma magia de Gustaff. Lily dominaria Ley e Wanda enquanto Jed imobilizava Guilherme. Aproveitariam o fato de, na Luz, os nortistas serem mais fracos. Ley não podia ouvi-los, o Sol não permitia. Wanda nem desconfiava que o grupo pudesse estar pensando algo assim e Guilherme (a Sombra, na verdade) tramava uma forma de abandonar aquele grupo.

O grupo seguiu viagem pela estrada durante a manhã, parando ao meio-dia para almoçar, e chegou à cidade destino às 13 horas. A cidade à qual era Coppah, a cidade mais rica de Harud, famosa por exportar metais preciosos, ídolos religiosos e matéria prima para estudos científicos (no passado para estudos mágicos). Foram parados fora dos muros por um sentinela.

– Quem vem lá? – Perguntou o arqueiro no topo da muralha, apoiando-se no parapeito.

– Meu nome é Gustaff! – Respondeu o mago, tomando a dianteira – Sou do Colégio dos Magos da Cidade da Magia. Este pequeno grupo está sobre meu comando. – Aquela mentira, apesar de ser contra a vontade de Ley, sempre funcionava. Sempre variavam seus disfarces, pois a missão deles era secreta e eles não podiam ser descobertos pela Aliança Elementar (Vocês descobrirão o que é isso qualquer dia [Risos]).

– Qual é sua intenção aqui, Mago? – Perguntou o sentinela.

– Vim comprar itens e matérias-primas para meus estudos. – Respondeu Gustaff.

– E por que veio com um grupo tão grande? – O sentinela iria insistir no interrogatório.

– Esta aqui é minha colega. – Disse Gustaff, apontando para Wanda – Eles são nossos guarda-costas. – Apontou para Guilherme, Lily e Jed – E nós encontramos este homem na estrada, precisando de ajuda. – Apontou para Ley.

O arqueiro, vulgo sentinela, analisou o grupo por vários minutos. Gustaff, o mago, parecia realmente ser o líder do grupo; ele havia tomado a dianteira após pararem nos portões, sinal de que era importante; a história era muito bem justificável e condizia com as aparências do grupo. Wanda mais parecia uma acompanhante do que uma iniciada, pois não vestia robes como os de Gustaff; sua roupa era uma camiseta e uma pequena bermuda; afora um colar incomum no pescoço, era impossível identificá-la como estudante de magia; mas Valle era um lugar misterioso e a Cidade da Magia era um lugar lendário; qualquer coisa poderia vir de lá. Lily tinha aparência de guerreira e olhar perspicaz; analisava tudo à sua vista e deixava isso claro; o longo sabre na cintura era, certamente, sua arma; com certeza rápida, ágil e mortal. Jed vestia armadura leve; levava uma lança às costas e alguns dardos no corpo; a lança era estranha, feita em duas partes de madeira e metal para ser ajustável e os dardos eram pequenos e pesados. Guilherme era misterioso; suas roupas o identificavam como um Ranger, mas era incomum ver Rangers arqueiros naquela região de Beleriand, pois a maioria usava roupas de outra cor, num estilo diferente e carregava outras armas; seu porte físico era o que justificava a posição de guarda-costas. Já Ley era um caso a parte; encontrado na estrada, usando uma capa negra com capuz que cobria o corpo e o rosto; parecia não carregar armas, mas era um sujeito muito suspeito para adentrar a cidade sem uma revista e um interrogatório mais forte.

– Vocês podem entrar, mas o forasteiro que trouxeram será interrogado. – Disse, por fim, o sentinela, vulgo arqueiro.

– Muito bem. – Disse Gustaff. Ley sempre se virava nessas situações; não que Gustaff quisesse que ele se virasse – Abra os portões, por favor.

– Abram os portões! – Gritou o arqueiro, vulgo… (Chega dessa piada), para seus colegas. Os porteiros puxaram as cordas presas ao portal duplo, fazendo-o se abrir.

O grupo entrou na cidade, recebeu instruções de um guia e rumou para uma estalagem; levando o cavalo que Ley usara. Ley ficou parado em frente ao portão, esperando o grupo de sentinelas vir interrogá-lo. Odiava isso, pois odiava mentir. Seis sentinelas vieram armados e o cercaram enquanto os porteiros fechavam o portão. O arqueiro no topo da muralha continuou o interrogatório.

– Qual é a sua intenção aqui, forasteiro? – Perguntou.

– Vim à cidade investigar uma atividade estranha.

– Que atividade?

– Uma guilda vem atuando nessa cidade, vim limpá-la daqui.

– E que guilda seria essa?

– A Guilda dos Ladrões.

O sentinela coçou o queixo. Era sabido que a Guilda dos Ladrões atuava no mundo inteiro por trás de negócios legais, mas praticando ilegalidades.

– E o que veio investigar, forasteiro? – O arqueiro não confiava em Ley – As atividades dessa guilda. Meu contratante suspeita que ela está atuando junto com a Guilda dos Boticários e que duas guildas estão cometendo o crime de usar Magia Proibida.

– E quem é seu contratante?

– Uma pessoa influente da Cidade Universal. Seus negócios e interesses afetam o mundo inteiro. Ela é, inclusive, mais poderosa que o califa de Harud.

– Parece coerente, forasteiro, mas não lhe deixaremos entrar.

– Por que não?

– Porque, apesar de sua estória ser coerente, você é muito misterioso. Por que se esconde nessa capa e não mostra o rosto? Além disso, investigar a Guilda dos Boticários é assunto interno do nosso reino e da nossa cidade. Passar bem e boa viagem de volta.

Ley tirou o capuz e encarou o arqueiro – Esse é o motivo de eu me esconder.

O sentinela olhou para Ley, surpreso. A pele pálida, quase transparente. O Sol o mataria caso se expusesse.

– Pode esconder o rosto, nórdico. – Anunciou o arqueiro – Deixem-no entrar.

Os portões se abriram mais uma vez. Ley cobriu-se com o capuz. Aqueles poucos segundos de exposição ao Sol já o fizeram sentir um leve mal-estar. Os guardas o escoltaram para dentro da cidade e o guiaram à sua base, próxima à muralha. O arqueiro descera de onde estava e os encontrou à porta da base.

– Entremos. – Disse ele – Vamos conversar em um lugar onde eu possa ter mais confiança em você.

Ley seguiu o arqueiro até uma sala onde poderiam conversar em particular. Lá havia uma mesa de centro baixa com várias almofadas em volta e dois copos e uma grande jarra com água em cima dela. Ley e o arqueiro sentaram-se de frente.

– Meu nome é Farid, capitão da guarda da cidade e responsável pela entrada e saída de visitantes e habitantes. – Apresentou-se o arqueiro.

– Eu sou Ley. – Disse, cumprimentando Farid – Sou funcionário de uma influente mulher da Cidade Universal.

– Quais são seu serviços? – Perguntou Farid após beber um gole d’água.

– Variados. – Respondeu Ley, que conseguira não mentir – Trabalho para ela há quase dois anos e estou viajando para vários lugares investigando atividades proibidas, como o uso de magia negra.

– Entendo… Mas como você, ou sua contratante, descobriu essas atividades aqui? Há alguma prova ou indício disso?

– Não. – Ley tomou um longo gole d’água – Ela me dá as informações necessárias e me manda fazer o serviço.

– E isso incluiu serviços sujos?

– Sim.

– Você pretende fazer algum aqui na cidade? – Farid queria expulsá-lo de Coppah.

– Não. Somente investigar e coletar as provas. Caso eu precise, me defenderei sozinho.

– Você me permite revistá-lo?

– Não será necessário. – Respondeu Ley. Levantou-se, tirou a capa e colocou todas as suas armas sobre a mesa. Farid analisou-as por alguns minutos, tirando-as de suas bainhas. Devolveu-as a Ley e olhou para seu pingente por um instante. “Só um colar escondido dentro da camisa. Provavelmente para se identificar com algum contato na cidade”, pensou Farid.

– Você está liberado. Mas é bom não cometer nenhum crime, pois estaremos de olho. Infelizmente, terei que informar à guarda sobre você.

– Não há problema, Capitão Farid. – Disse Ley com um sorriso amigável – Não precisarão se preocupar.

– Mas o faremos, ainda assim. – Retrucou Farid.

Ley saiu da base da guarda da cidade e seguiu pela avenida principal. As casas seguiam o padrão dos desertos de Beleriand, pintadas de branco, com janelas grandes e arredondadas, sem muito requinte. Os habitantes daquela região do deserto costumavam guardar suas riquezas dentro delas ao invés de ostentar, como no Sul de Beleriand ou no Norte do Arquipélago Leste. Próximo ao centro, numa praça com um grande chafariz, um tumulto acontecia. Pessoas corriam do lugar aos montes, gritando muito alto. Ley conseguiu, com muito esforço, abrir caminhou em meio à multidão e chegar à praça. Viu que seu grupo inteiro estava desacordado, exceto Guilherme, que espancava alguns guardas com as mãos nuas. Guilherme terminou o que estava fazendo em poucos segundos e saiu correndo pela avenida gritando e socando todas as pessoas em seu caminho. Ley se esforçava para correr contra a multidão, sendo retardado pelo Sol e pelo calor. Conseguiu, a muito custo, subir em um telhado e avistar Guilherme. O Ranger invadia uma casa, gritando enquanto arrombava a porta. Ley correu o mais rápido que conseguiu e pulou em cima de Guilherme, acertando-o com um chute voador enquanto o Ranger arrombava a porta. Os três, a porta, Guilherme e Ley, caíram no chão um por cima do outro, fazendo muito barulho. Uma garotinha gritou quando isso aconteceu, aterrorizada pela vista do pai sendo esmagado por todo aquele peso.

Ley rolou para o lado, levantando-se. Guilherme estava desacordado. Rolou o Ranger para tirá-lo de cima da porta e, em seguida, tirou a porta de cima do homem que a segurava antes de ser arrombada. Olhou o cadáver completamente esmagado, exceto a cabeça e o pescoço. Olhou para a criança, que tinha uns cinco anos, e andou rapidamente até ela para abraçá-la. Com a garotinha envolvida em seus braços, Ley começou a murmurar palavras na língua de Angband no ouvido dela, fazendo uma magia. Magia essa que consolou a menina durante algumas horas, impedindo de lembrar que o pai morrera esmagado por uma porta e dois homens enquanto tentava protegê-la de um brutamontes ensandecido que tentava entrar na casa para matar ambos durante algumas horas. A menina adormeceu nos braços de Ley ao término da magia e foi colocada no chão com cuidado.

Ley voltou-se para Guilherme. Que diabos acontecera? Por que ele estava correndo e espancando todos em seu caminho? Maldita fosse a Sombra! Ley iria arrancá-la do corpo de Guilherme e extingui-la em Fogo Negro. Mas antes teria que lidar com Guilherme. Aproveitou a redução de brilho e calor para fazer outra magia, que lhe permitiria carregar Guilherme com mais facilidade. Com a força aumentada pela magia, Ley levantou Guilherme passando o braço do Ranger por trás do pescoço. Começou a andar carregando o amigo, que arrastava os pés no chão, e viu que vários guardas vinham de todos os lados, cercando-o.

– Eu sou inocente. Só estou carregando o culpado nas costas. – Disse Ley.

– Você vem conosco. – Disse um guarda, que foi empurrado para o lado logo em seguida.

Quem chegava era Farid. O capitão da guarda passou por Ley ignorando-o completamente e parou frente à entrada da casa da qual Ley saíra. Olhou para frente e viu sua sobrinha deitada no chão, desacordada. Olhou para baixo e viu o que restara de seu irmão: A cabeça, ainda presa ao pescoço, e o resto do corpo completamente esmagado; uma mistura de sangue, órgãos e tripas achatados e prensados. Levou a mão à boca, contendo as lágrimas e a vontade de vomitar. Voltou-se para Ley e foi correndo até ele com a espada curva na mão. Ley, que tinha se virado quando Farid passou por ele, viu o movimento e jogou Guilherme no chão atrás de si enquanto puxava uma das facas para bloquear o golpe de Farid. A espada de ferro de Farid quebrou-se em múltiplos pedaços quando se chocou com Deströyer. A força do golpe foi imensa, mas Ley ainda estava sobre o efeito de sua magia, e conseguiu bloquear sem problemas.

– Você e seu grupo estão presos! – Disse Farid, com a voz rouca, quase um rosnado.

– Farid, a criança está viva. – Disse Ley.

– Dane-se! – Gritou Farid – Vocês vêm à minha cidade, matam meu irmão, deixam minha sobrinha órfã e acham que eu vou perdoá-los? Se fosse qualquer outro cidadão eu me sentiria mal, pois que tipo de capitão da guarda deixa que arruaceiros entrem na nossa cidade. Mas não! Vocês me golpearam da forma que mais dói: no amor. E eu me vingarei de vocês! Todos morrerão pelas minhas mão e eu usarei suas cabeças como troféus.

– Farid, você está fora de si. – Ley tentava tranquilizá-lo.

– Você é o culpado por isso. Vai ter que enfrentar as consequências! – Farid partiu para o ataque, puxando uma adaga pequena e atacando Ley, que se defendeu com Deströyer e destruiu a segunda arma de Farid.

– Você ainda tem uma chance de parar com isso e se acalmar.

– Eu quero que você morra, nórdico. Cortarei essa sua roupa e deixarei que o Sol acabe com você! – Farid tirou uma faca de arremesso da bota e avançou brandindo-a como uma espada. Deu três golpes no ar e ouviu um som, um acorde calmo e sereno, e desmaiou repentinamente. O mesmo ocorreu com os outros guardas.

– Pegue esse escroto e vamos embora. – Era Wanda.

Ley colocou Guilherme nas costas como um saco de batatas; o Ranger ficou a alguns centímetros de tocar no chão com os pés ou a cabeça. Correram quão rápido puderam até a estalagem onde o grupo alugara quartos. Chegando lá, entraram e foram direto a um dos quartos alugados por eles. Ley deitou Guilherme na cama de casal e sentou-se em uma cadeira; Wanda trancou a porta.

– Que diabos aconteceu? – Perguntou Ley.

– Eu não sei! – Respondeu Wanda – Nós entramos na cidade e seguimos a avenida até esta estalagem, entramos, alugamos três quartos e eu decidi ficar aqui tocando para conseguir dinheiro enquanto os outros iam explorar a cidade e esperar você na praça principal. Algum tempo depois, um homem entrou correndo aqui dizendo que um louco estava espancando pessoas na praça. Corri até lá para investigar e encontrei Gustaff, Jed e Lily desmaiados em meio a outras vítimas do “louco”. Segui o rastro dele até encontrar você e ele cercados por guardas. Eu que pergunto “que diabos aconteceu”!

– Muito bem. – Ley apoiou os dois cotovelos na mesa e segurou o queixo com as mãos – Então vocês vieram até aqui, Guilherme surtou por algum motivo e agora a guarda da cidade quer nossas cabeças.

– Parece que sim.

Uma hora antes…

Gustaff, Wanda, Lily, Jed e Guilherme entraram na cidade deixando Ley para trás. Os portões se fecharam atrás deles. Seguiram cavalgando a passadas lentas pela avenida principal da cidade, que tinha duas pistas exclusivas para cavalos, até encontrar uma estalagem chamativa.

O prédio da estalagem tinha três andares acima do chão e um porão. Era branco, pintado com cal, tinha janelas altas, em forma de pétala, com cortinas finas de seda. Acima de cada uma havia um mecanismo de proteção contra tempestades, uma capa de couro de camelo que podia ser presa em vários pontos ao longo da janela pelo lado de dentro. Os quartos eram amplos, com móveis baixos, várias almofadas grandes e fofas eram espalhadas por todos os aposentos. Todos os tecidos eram coloridos e cada quarto tinha uma cor base. As paredes internas eram pintadas de marrom, beje ou verde na maioria dos quartos, com algumas poucas exceções. Gustaff deixou os cavalos no estábulo sob a responsabilidade de um jovem tratador. O grupo entrou na grande estalagem e ficou maravilhado com a visão das pedras preciosas, comuns naquela região, mas bonitas; ídolos religiosos de vários deuses de variadas religiões da região decoravam todas as paredes e mesas do grande salão, onde os hóspedes almoçavam; um jovem baixo e gordo com vestes brancas e azuis os recebeu com um largo sorriso no rosto.

– Bem-vindos viajantes! – Disse o anfitrião – Meu nome é Azir Ibn Kalut. O que desejam, mestres viajantes?

– Primeiramente boa tarde, Mestre Kalut – Saudou Gustaff – Nós cinco viemos de Haggem e desejamos passar alguns dias da cidade.

– Vieram ao melhor lugar possível! – Disse Azir – Somos a melhor estalagem de Coppah. Temos refeições seis vezes ao dia, mas cobramos apenas as consumidas. Nossos quartos ficam nos andares superiores e têm a melhor ventilação e vistas. A comida da casa é reconhecida como uma das melhores da cidade. – E acrescentou: – E nossas concubinas estão dispostas a servir os senhores conforme desejarem.

– Bom saber. – Disse Gustaff – Nós estamos em cinco, mas um amigo nosso ainda deve chegar. Foi atrasado devido à política de segurança da cidade.

– Ele tem aparência ruim? – Perguntou o anfitrião.

– Sim. – Respondeu Gustaff – Além de muito feio, ele é nórdico. O excesso de roupa e o rosto escondido o tornam suspeito.

– Entendo… – Disse Azir. Sorriu mais uma vez e bateu as palmas das mãos – Muito bem! Vou levá-los aos quartos. Infelizmente não temos quartos muito grandes disponíveis, mas temos três quartos para casais livres. Todos são vizinhos de porta. Venham comigo!

Azir levou-os aos quartos e os acomodou. Depois disso, voltou para o salão principal para receber mais viajantes.

Wanda reservou um quarto para si e para Ley. Gustaff dividiu um quarto com Lily; vale acrescentar que era primariamente vermelho, característica dos quartos de amor. Guilherme e Jed ficaram no mesmo quarto. Após deixarem suas bagagens nos quartos, todos desceram para almoçar. A comida era ótima, típica da cidade. Carne e leite de camelo eram especialidade da casa, que também fazia deliciosos cozidos e pratos picantes. As especiarias eram obrigatórias em todos os pratos. Após apreciar um bom almoço, o grupo se dirigiu à praça principal para conhecer a cidade, mas Wanda ficou na estalagem tocando seu violão – com autorização prévia de Azir – para conseguir algum dinheiro.

Chegando à praça, Gustaff resolveu pôr seu plano em prática. O lugar era abarrotado de pessoas. Em meio à confusão de carrocinhas e barracas, crianças brincavam, animais circulavam entre as pessoas à procura de comida, ladrões batiam carteiras, homens faziam comércio, mulheres conversavam… Vários bancos eram dispostos ao longo de um caminho demarcado com ladrilhos de cor azul-escura, que se destacavam do laranja desbotado do chão. Algumas fontes e chafarizes pontilhavam a praça, demarcando “parquinhos” – como eram chamadas as áreas em volta deles, onde as crianças brincavam e jogavam moedas para pedir desejos.

– Guilherme, sente-se aqui. – Disse Gustaff – Precisamos conversar.

– Sobre o quê? – Perguntou Guilherme, sentando-se. A Sombra estava curiosa para saber o que era, mas permanecia cautelosa.

Quando Guilherme sentou-se no banco Lily e Jed tentaram imobilizá-lo pelos braços. O Ranger se debateu tentando se libertar enquanto Gustaff preparava a magia. Percebendo o que ia acontecer a Sombra tomou controle total sobre Guilherme e partiu para a agressão. Jogou Lily para cima sacudindo o braço que ela agarrava e cabeceou a testa de Jed, nocauteando-o na hora. Lily caiu de costas do chão, acertando o banquinho com o flanco. Gustaff tentou paralisar Guilherme com outra magia, mas o Ranger chutou-o no meio das pernas, levantando-o no ar, e socou sua barriga, arremessando-o à distância de sete metros. Algumas pessoas foram atingidas pelo mago-projétil e derrubadas pelo mesmo. Lily se levantava grunhindo quando tomou um cascudo de Guilherme que a fez desmaiar. Gustaff gemia no chão de ladrilhos cercado por várias pessoas enquanto Guilherme avançava. Um senhor de quase cinquenta anos tentou impedir o avanço de Guilherme ao ver suas intenções; sendo levantado pela cabeça com apenas uma mão e jogado para o lado com facilidade. Guilherme suspendeu Gustaff pela gola e deu-lhe um soco na cara.

– Vai aprender a não mexer comigo, filho de puta – Rosnou Guilherme. Preparava um segundo soco quando um guarda o deu voz de prisão. Largou o corpo desacordado de Gustaff e espancou o guarda. Vários outros foram chamados para contê-lo, mas o Ranger possuído acabou com todos, desarmado. Em meio ao combate, não pode deixar de se conter. Um espírito assassino tomou conta do corpo de Guilherme conforme a Sombra rogava por mais sangue. Começou a bater em tudo que viu pela frente, avançou em meio à multidão e correu girando os punhos fechados e acertando várias pessoas. Correu reto pela avenida até bater a cara em uma porta recém-fechada. O dono da casa vira Guilherme correndo até lá e bateu a porta de madeira sólida. Guilherme tentou arrombar a porta com o ombro. A primeira pancada fez o homem que a segurava gemer, a segunda fez as fechaduras ameaçarem ceder e na terceira, Guilherme desmaiou sendo atingido por uma dupla voadora de pés no pescoço.

Azir entrou no quarto. Wanda voltou-se para ele no exato momento. Ley olhou-o de lado, debruçado sobre a mesa.

– Senhorita Wanda, a guarda da cidade quer falar com a senhora. – Disse o anfitrião.

– Eu falarei com eles quando o capitão Farid se acalmar. – Retrucou Ley. Azir olhou para Ley de repente, pasmo. Não havia notado a presença dele.

– Deixe-nos por um momento, Azir. Diga à guarda que sairemos daqui a duas horas. – Disse Wanda.

Azir saiu do quarto e fechou a porta. Estava assustadíssimo. Apesar de não ser muito intimidador fisicamente, o nórdico que vira tinha uma aura de trevas em volta de si. Sua intimidação era psicológica, vinha de dentro, e paralisadora; tal como medo de cobras.

O anfitrião foi até a porta de entrada da estalagem e falou com os guardas. Apesar de suas palavras, muitos não ficaram convencidos e três guardas entraram com a missão de apreender os dois hóspedes. Os homens bateram na porta do quarto com espadas em mão. Wanda abriu a porta com uma expressão de pena. Um dos guardas deu voz de prisão aos nórdicos e eles entraram no quarto; dois prenderam Wanda e o outro encostou a espada curva no pescoço de Ley. Enquanto isso, Ley olhou os guardas da mesma forma que ohou Azir, voltou para sua posição original e suspirou. Três cabeças rolaram pelo chão.

Ley desceu as escadas até a porta da estalagem assustando todos por quem passava. Algumas pessoas correram da estalagem – outras correram para seus quartos e trancaram a porta – e Azir ficou paralisado pela visão. Ley abriu a porta da estalagem e deixou os guardas chocados. Os homens que cercavam a estalagem esperavam seus colegas retornarem em poucos minutos com os prisioneiros. Ao invés disso, o “prisioneiro” voltou a eles segurando as cabeças dos guardas pelos cabelos. Ley viu Farid em meio aos guardas e jogou as três cabeças para ele. A fúria podia ser vista nos olhos e na face de Farid conforme ele assistia as cabeças voando e caindo a seus pés.

– Eu saio ao pôr do Sol. – Disse Ley.

– Você sai agora! – Gritou um dos guardas, correndo para cima do nórdico e brandindo sua espada.

Ley encarou o guarda em ataque com o canto dos olhos. Quando esse entrou em alcance; Ley desviou do golpe, tomou a espada do guarda, cortou a cabeça dele com espada roubada, chutou ela ainda no ar na direção de Farid, empurrou o corpo para fora da estalagem e fechou a porta. Voltou para o quarto.

Uma hora depois, Ley e Wanda desceram para o salão principal para uma refeição. As criadas responsáveis pelas refeições, todas maiores de cinquenta, os atenderam prontamente. Todos ficavam apreensivos na presença dos nórdicos, o que fazia todos tratá-los como reis. Estavam comendo alguns pães da região, pães escuros, com azeite e mel quando Guilherme apareceu no salão com uma expressão sombria. Ley se levantou.

– Saiam todos daqui. – Ordenou a todos no recinto – Eu e meu amigo vamos ter uma conversa séria.

Algumas pessoas mantiveram a calma durante a saída, outras correram para fora da estalagem derrubando tudo pelo caminho. Guilherme foi até a mesa, Wanda se afastou dela e Ley permaneceu onde estava encarando o Ranger. Esse agarrou Ley pelo pescoço, suspendendo-o no ar e pressionando-o contra a parede. Apesar de estar apertando com força, Guilherme não sentia o pescoço de Ley ceder e seu adversário não demonstrava medo. Apenas olhava para ele com seu sorriso desdenhoso. A Sombra se enfurecia por isso e, tendo controle total de Guilherme, apertava com cada vez mais força. Apesar disso, Ley não parecia desfalecer e seu pescoço parecia duro como pedra.

– Não é tão forte quanto pensou, não é? – Desdenhou Ley – Como se sente sabendo que eu posso vencer você desarmado?

Guilherme apertou com mais força, nenhuma mudança. Ley encostou em seus braços, sentiu-os em chamas. Largou o ex-amigo no chão e se afastou tentando apagar as chamas que não existiam.

Ley estava de costas para a parede. Encarava Guilherme, que estava a alguns metros de distância, ambos desarmados. Viu o Ranger abrir os braços e dobrar os cotovelos, apontando os punhos fechados para ele. Guilherme correu em direção a ele, a cabeça estava inclinada a fim de agira como aríete. Esse tridente humano avançou na direção de Ley, impedindo-o de fugir. Ley esperou o Ranger chegar perto, pulou agarrando o pescoço dele, girou o corpo para passar por cima dele e chutou-o nas costas. O novo impulso que o empurrou o impediu de parar e Guilherme bateu com a cabeça na parede com a força dos dois golpes. A parede ficou com um rombo no lugar onde o Ranger a atingiu.

Guilherme tentou se levantar, ainda desnorteado pela pancada. Sentiu um forte soco do lado direito do rosto, depois outro no esquerdo, foi arrastado alguns centímetros e algo se enrolou em seu pescoço. O que quer que fosse apertava com muita força. Guilherme respirou uma última vez e se levantou. Girou em torno de si mesmo e se jogou de costas no chão.

Ley se sentiu esmagado pelo peso de Guilherme. Todo o ar saiu de seus pulmões e ele sentiu ser levantado no ar pelo tronco. Voou pela sala atingindo a parede com a cabeça. Guilherme era apenas uma grande sombra em sua visão. Foi levantado mais uma vez. Chutou o Ranger entre as pernas, por sorte. Caiu junto com ele mais uma vez. Sua visão começava a clarear.

Guilherme sentiu uma dor enorme entre as pernas e se encolheu, levando as mãos ao saco. Um pequeno pé chutou sua boca, quebrando os dentes da frente. O mesmo pé pisou na cabeça dele mais uma vez, fazendo-o cuspir sangue. Uma pequena mão apertou seu pescoço, ele viu o teto preto e desmaiou sem ar.

Ley viu a sombra sair de dentro de Guilherme e preparou-se para interceptá-la com magia. Mas a Sombra que ele esperava que fugisse materializou-se em espectro, pois havia chegado a um nível de poder muito maior que o de uma sombra normal. O espectro tomou forma humanoide, uma materialização de Trevas.

– Você é meu, Ley. – Disse ele com sua voz estridente, fina e cortante. O espectro envolveu Ley em um globo de Trevas. Wanda gritou de desespero ao ver a situação do amigo, pois pensava que ele seria desintegrado. O globo começou a se reduzir até que todas aquelas Trevas haviam entrado em Ley.

Wanda viu os olhos do amigo escurecerem completamente. Ele deu um passo em sua direção e parou com um espasmo. A sombra começou a sair dele pelos orifícios da cabeça e se acumular em volta da mão. Materializou-se como espectro mais uma vez. Ley voltou-se para o inimigo.

– I shaw bwrn u wyfh Därkh Fiere! – Disse, envolvendo seus braços em Fogo Negro.

Os dois correram para cima um do outro e começaram a se espancar, rolar pelo chão tentando se imobilizar e teletransportar de um canto para outro. Após uma série de “briga de cães”, os dois ficaram frente a frente, encarando-se para prever seus respectivos movimentos; tão próximos que suas faces estavam a meio metro uma da outra. Ley acertou o espectro com um soco, incendiando-o. Durante o desespero do inimigo, Ley o agarrou pelo pescoço e o levantou no ar. Sua espada se materializou em sua outra mão.

Ley empalou o espectro com sua espada que absorvia almas. O mesmo foi absorvido pela espada, junto com todo seu poder e memórias, entre as quais estava a de Guilherme. Ley suspirou aliviado, Wanda fez o mesmo. Ela correu de sua antiga proteção – atrás de uma mesa – e foi abraçar o amigo. Os dois comemoraram o triunfo sobre a Sombra.

– E agora? – Perguntou Wanda. Ela estava preocupada com Guilherme.

– Agora eu só preciso achar as memórias dele e transferi-las de volta. – Ley respondeu como se isso fosse a coisa mais simples do mundo – Vamos voltar para o quarto com ele, descansar e resolver isso. Tenho que cumprir a promessa que fiz a Farid.

– Quem é Farid? – Wanda arregalou os olhos – E que promessa é essa?

– Vou sair daqui ao pôr do Sol e resolver os problemas com ele.

Wanda assentiu. Uma lágrima escorria de seu rosto, mas ela não saberia dizer ao certo por que. Ela pegou seu violão e fez uma magia para que Guilherme flutuasse no ar atrás dela.

Os três foram até o quarto, Wanda se deitou na cama ao lado de Guilherme e Ley encostou-se à parede e fechou os olhos. Ainda teria muito trabalho a fazer, mas descansaria por enquanto. Após uma hora de cochilo, Ley acordou e começou a vasculhar as almas absorvidas pela espada. Conseguiu achar a alma de Guilherme em meio àquela confusão de almas e a canalizou na ponta da espada, separada das demais. Levantou-se, foi até o amigo, tirou as roupas que cobriam seu peito e introduziu a ponta da espada próxima ao coração. Devolveu a alma dele, tirou a lâmina e curou o pequeno ferimento com magia. Guardou a espada e andou até a janela, ainda tinha duas horas. Acordou Wanda com um cafuné.

– Devolvi a alma de Guilherme ao corpo dele. – Disse – Ele vai acordar amanhã como se nada tivesse acontecido.

– Você tem certeza? – Perguntou ela, começando a sair da cama.

– Não. – Ele a abraçou – Ele pode se lembrar dos momentos em que esteve consciente.

– Obrigado por tudo. – Wanda deu aquele abraço em Ley. Ficaram agarrados por alguns minutos e ela sentiu uma pequena pressão na barriga.

– Quer “repetir a dose”? – Perguntou Ley.

– Uma última vez. – Ela sorriu – Você merece.

E foram de mãos dadas ao quarto de Gustaff e Lily, repetiram a dose várias vezes e, quando se cansaram, vestiram suas roupas mais uma vez. Era a hora, Ley tinha que ir. Despediram-se com um último beijo e com aquele abraço. A vida deles viraria um inferno nas semanas seguintes…

 

Fim do arco da Sombra do Ranger

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Continua