Por Alan Cosme
Afonso Nogueira estava muito animado. Acreditava ter feito a descoberta da década, do século, quiçá do milênio.
Aquela noite ele estava em sua casa, sentado em uma mesa que servia como um escritório improvisado. O apartamento onde Afonso morava era pequeno, apesar de bem caro. Situada em um dos melhores bairros da cidade. Solteiro, não sentia necessidade de morar em um lar muito amplo.
Em frente ao seu computador ele tentava se decidir por uma boa abordagem para relatar sua descoberta a comunidade científica. Ele não poderia dizer os aspectos mais marcantes de seu achado, pois acreditava que nesse caso seria desacreditado. Um ceticismo que ele compreenderia. Mesmo diante das evidências ele custou a acreditar.
Afonso estava digitando quando de repente o teclado para. As teclas pressionadas ficam presas em um meio termo entre estar no fundo de sua cavidade ou toda à tona. – Quebrou? – Ele examina um pouco sua máquina, mas nada encontra de errado. Ao tirar a atenção do seu trabalho e enxergar o seu entorno Afonso percebe que talvez o problema não estivesse no aparelho.
Olhando pela janela de seu quarto Afonso percebe que as pessoas que caminhavam na rua haviam parado. Que os carros em trânsito haviam parado. Que um pássaro havia parado enquanto voava próximo a sua janela. A ave congelara no ar, sendo mantida estática sabe se lá como.
– Vocês humanos são engraçados. Possuem uma tendência tão marcante de almejar poder, uma necessidade imensa de se provar melhor que os outros. Com sete bilhões de pessoas no globo você acreditou mesmo que foi o primeiro, o único, a desmascarar um ômega?
Ômega?
Mais do que o congelamento temporal, a aparição daqueles estranhos em seu quarto o deixou desnorteado. Eram dois. Um japonês adolescente que vestia uma camisa com a logomarca do Ubuntu. Uma mulher monstro que tinha a metade direita do corpo deformado.
– Como vocês…?
– Calma, doutor. Vai ser rápido. Prometo. – Sem que Afonso conseguisse lutar, Neide toca em sua cabeça e ativa um dos seus poderes. O cérebro do psicólogo sofre um shutdown. Um reboot. Nessa brincadeira alguns pedaços de memória haviam se perdido. Afonso desmaia, quando acordar não mais irá se lembrar de coisas essenciais.
– Nakamura, é a sua vez.
O adolescente japonês se concentra, estava apagando todos os vestígios relacionados a descoberta de Afonso. O trabalho foi rápido, não demorou mais do que três minutos. Estupidamente eficiente, Nakamura não precisava usar métodos arcaicos para invadir sistemas. Não precisava de coisas ultrapassadas como hardwares. Ele só precisava de seu pensamento. Operava com a mente.
***
– Hahaha. Quer dizer que você e a certinha deram um passeio nu pela cidade?!
– Seminu.
– Já fiquei pelada na rua tantas vezes. Não tem nada demais.
– Mas você fazia isso a trabalho. Aí não conta.
Marcos tinha essa habilidade. Mesmo brigado com alguém ele conseguia facilmente reatar as pazes. E ele forçava, os amigos e namoradas que ficaram emburrados com ele tiveram um bom motivo para isso.
Soraia é uma mulher de vinte e dois anos. Morava sozinha, assim como Marcos brigou com os pais e teve que aprender a se virar cedo. Essa característica em comum fez com que o elo entre os dois se tornasse forte. Estudante de direito, Soraia custeava sua faculdade de uma maneira que muitas pessoas reprovariam. Hipocrisia. Sua decisão é muito mais comum do que a maioria das pessoas imagina ou quer acreditar.
Pouco tempo depois de terminar com Lorelei, Marcos teve um romance com Soraia. Ela é muito bonita, mas não foi isso que mexeu com Marcos. O que mais o deixou balançado foi sua garra e seu coração enorme. Uma alegria de viver que fazia muito bem a Marcos, o ajudando a encarar seus problemas com sua família e com seu estado de saúde.
O relacionamento dos dois tinha tudo para dar certo, e daria, se não fosse o trabalho de Soraia.
Marcos queria ser um homem mais mente aberta, que pudesse superar essa questão. Ele realmente queria, mas não conseguiu.
– Você não é uma aberração, Marcos.
– Fica difícil acreditar nisso depois desses últimos dias. Cara, não sei se vou aguentar não.
Soraia abraça o amigo. Um abraço sem segundas intenções, sem pensamentos libidinosos. Ele continuaria a contar seus problemas se sua voz não engasgasse e de repente ficasse difícil de falar.
***
– Estou com o resultado dos seus exames.
Marcos quase não voltou a se consultar com Afonso. Só se forçou porque sabia que se quisesse descobrir mais sobre si mesmo teria que perder o medo do que pudesse vir a desvendar.
– Seus exames estão bem. Você é um homem bem saudável.
– Sim? Só isso?
– É.
– E os resultados impressionantes?!
– De que resultados você está falando?
– Porra, você tá de sacanagem comigo! – Marcos dá um forte soco na mesa e se põe de pé. Sua falta de paciência estava deixando seu psicólogo intimidado.
– Calma, Marcos. Sente-se.
– Calma o caralho! Você diz na minha cara que definitivamente eu não era humano e depois age assim?!
– Marcos, eu nunca disse isso. Nunca diria isso a nenhum paciente meu. Seria extremamente antiético.
Marcos agride a mesa novamente. A mesa de metal cede um pouco diante da força do seu punho. Afonso não estava mais intimidado, estava começando a ficar apavorado.
– Na última consulta você falou! Você trouxe exames que provam que eu não sou um humano normal!
– Quando foi essa última consulta?
– Segunda agora.
– Esse fim de semana eu estava em um congresso, só voltei na terça.
Em um rompante Marcos agarra o psicólogo e o arremessa contra a parede. A dor foi intensa, o doutor sente alguma coisa partir.
Puto da vida, Marcos sai do consultório sem usar as mãos para abrir a porta. O vidente abre caminho a base de pontapés. A secretária da recepção fica paralisada, os outros pacientes que aguardavam sua vez de serem atendidos não sabiam o que fazer.
Marcos deixa o centro médico, sem que ele percebesse a secretária usa o telefone para pedir ajuda. Em menos de quinze minutos chega a ambulância. Enfermeiros maiores que um armário tentam o imobilizar. Foi custoso, mas conseguem injetar a agulha. A seringa tinha um tranquilizante pesado. Marcos apaga.
Ao acordar ele se vê de volta ao seu pior pesadelo.
– Sabia que mais cedo ou mais tarde você retornaria. – Vladimir entrega um comprimido para Marcos. Um comprimido daquele remédio que ele tanto odiava. Um comprimido que deixava seu cérebro lento. O vidente recua um pouco, mas o médico insiste. – Seja um bom garoto. Só queremos o seu bem.
Marcos é vencido, a pulso é obrigado a tomar sua medicação.
Vladimir é o funcionário mais antigo do lugar. Tratou vários pacientes ao longo de sua carreira, Marcos foi um dos poucos que recebeu sua maior atenção. Aquele psicólogo se sentia interessado por casos ditos como perdidos. Não demorou a sentir o desejo de “ajudar” Marcos. Sua ajuda consistia em dobrar a vontade do seu paciente até que ele aceitasse a “verdade”. A “verdade” imposta pela sociedade.
Lentamente Marcos vai se sentar em um banco do pátio. Estava muito cansado apesar de naquele dia não ter tido muitas atribulações. O remédio fazia isso com ele. Sentado no banco Marcos assistia aos outros pacientes “curtirem” suas loucuras. Dois brigavam entre si, um arreava as calças e mijava sem se importar de estar a vista de todos.
Sentindo viver um déjà-vu, Marcos esperou pela única coisa boa daquela passagem. O grupo de estudantes que trazia consigo a mulher capaz de mudar sua vida. O tempo passou, não apareceu nenhum grupo de estudantes. Ela não apareceu.
Esse é o Santa Efigênia. O lugar que sempre arranja um jeito de piorar mesmo quando você tem a convicção de já ter chegado ao fundo do poço.
Um toque gelado em seu rosto, Marcos se assusta e recua.
– Cuidado! Um fantasma! Hahahaha!
Usando um lençol como fantasia, o interno descobre um meio infalível de incitar o ódio do vidente. Ao se preparar para a pegadinha o maluco pôs suas mãos na água fria, para deixar sua interpretação mais verossímil.
Paciência. Marcos iria precisar.
– Ele tinha os exames! Ele disse na minha cara! Os exames provam que eu não sou maluco! Provam que eu tenho um dom especial!
– Claro, filho. Claro.
Marcos preferia que sua mãe o confrontasse abertamente. Era melhor do que aquela demonstração de falsa condescendência. O vidente reclamava e sua mãe fingia concordar com ele. Seu sorriso triste deixava claro o que ela pensava. Deixava claro o seu sentimento de pena.
– Tome o seu remédio. É para o seu próprio bem. – A rotina era implacável, todo dia Marcos era forçado a tomar sua medicação. Uma medicação a qual ele não precisava tomar.
– Não sou maluco! Eu tenho um dom.
– Você está doente, querido. Por isso tem essas bobagens na cabeça. – Bobagens? Marcos se sentiu ofendido com a insinuação. – Tome seu remédio, com o tempo ele irá levar essas ilusões embora.
– Não é ilusão! Não sou maluco!
A reclamação era inútil, por mais que protestasse Vladimir era intransigente. A medicação era obrigatória. Marcos era forçado a tomá-la. Era forçado a ficar letárgico. Era forçado a acreditar no que não queria.
– Chegou o grande vidente! O que me diz sobre o meu futuro?! Irei ser rico? Casarei com uma modelo da televisão? – Aquele interno era o mais chato de todos, sabe se lá o porquê ele incarnou em Marcos. Não se passava um dia sem que ele não o perturbasse. – Todo poderoso, me conte sobre a minha vida! Me deixe conversar com meu pai falecido!
– Vá procurar o que fazer, Eustáquio!
– Procurar o que fazer? Não tem nada o que fazer aqui se você não notou, ó grande iluminado! – Eustáquio fez uma reverência zombeteira. – Você não é maluco, você é um aproveitador! Tomara que apodreça aqui!
Os dias eram compridos, pareciam que nunca acabariam. Marcos tomava uma porrada no ego atrás da outra.
– Filho, desde quando você era uma criança eu te faço esse pedido. – Disse o Senhor Mignola. – Faça coisas de gente normal. Deixa essas bobagens de lado.
Bobagens? Era a segunda vez que Marcos ouvia esse insulto ao seu dom. Cada vez que se repetia mais ofensivo aquela palavra lhe parecia.
– Não é bobagem! É um dom! Não sou maluco!
– Enquanto tiver essa ideia vai ser difícil olhar para você e não ver isso. Uma pessoa com problemas de cabeça. Um lunático.
– Todos estão errados! Posso provar! Os exames! Você estava certo, pai. Fui abduzido no berço. Os alienígenas fizeram algo comigo.
Essa última foi demais. Pela primeira vez Marcos viu seu pai chorar. – Desculpe, filho. Acho que tenho uma parcela de culpa no que te aconteceu.
– Você acredita em mim então?!
– Acredito que você não está fingindo. Acredito que você acredita no que está falando. Eu já passei por algo parecido. Vai por mim, garoto. Quando se liberta dessas ideias estranhas é como tirar um peso das costas.
– Não há ideia estranha nenhuma! Há a verdade! Há os fatos! Eu não sou um humano normal! Os exames!
Aquela noite Marcos se recolheu ao seu quarto ainda mais abatido. Vendo que o tratamento não estava progredindo, Vladimir decidiu aumentar sua dosagem.
Sozinho em seu quarto Marcos se lamentava. Ninguém acreditava nele. Se sentia mais sozinho e abandonado do que nunca.
Marcos se olha no espelho e vê um rosto que não reconhecia. Um rosto abatido, triste, com fortes olheiras.
Crack! Com um soco Marcos consegue espatifar o espelho. Vários cacos caem no chão. Cacos de vidro com pontas afiadas.
Marcos pega um pedaço de vidro e começa a achá-lo atraente. O vidente olha para o caco, olha para as veias em seu pulso e começa a ter uma ideia. Uma ideia de como fugir daqueles problemas.
– Marcos, não!
O vidente larga o caco de vidro, obedecendo ao que seu amigo desencarnado lhe pedia. Alex estava ali presente. Ao menos ele acreditava no que Marcos dizia. Ao menos ele estava ao seu lado.
– Alex, você não me abandonou?!
– Claro que não! Que tipo de guia espiritual eu seria se fizesse isso?
– Está uma merda, amigo! Estou mais do que fodido. Não tem escapatória!
– Claro que tem. Sempre há escapatória. Principalmente para alguém capaz de fazer o que você faz.
– Ninguém acredita em mim. O que faço?
– Marcos, em toda sua vida você ajudou várias pessoas. Vivas, mortas ou mortas-vivas. Você acha mesmo que depois de ter feito tanto bem para tanta gente, ninguém iria lhe prestar ajuda caso você precisasse? Caso você chamasse.
– Você está sugerindo para que eu…?
– Isso! Chame eles.
– Chamar a quem?
– Todos eles.
– Todos, todos?
– Todos, sem exceção.
– Mas alguns deles se odeiam. Nunca vão se aliar só para ajudar um zé ninguém como eu.
– Por você, eles vão sim. Pode confiar. – Marcos não estava ainda muito seguro, mas mesmo assim acatou o que seu guia lhe pedia.
– Chame os bons.
Mentalmente Marcos fez um pedido, um pedido de ajuda que atravessou as barreiras do espaço e dos planos dimensionais. Um pedido de ajuda que chegou até um plano onde elfos, fadas e outras criaturas da natureza viviam em harmonia. Seu pedido se espalhou até os planos onde as pessoas mais espiritualmente elevadas encontravam seu local de descanso. Planos onde seres iluminados velavam pela proteção de seus entes queridos.
– Chame os perdidos, chame os que precisam de ajuda, chame os que não sabem o que fazer, chame os maus.
O pedido de Marcos chegou a camadas menos evoluídas. Chegou a espíritos errantes e entidades que vagavam sem proposito. Chegou a fantasmas obsessores que se alimentavam dos vícios de suas vítimas.
– Chame os piores.
O pedido de Marcos viajou até uma camada do mais baixo nível, o mundo vermelho, uma camada cheia de criaturas horrendas que inspiraram os mais temíveis pesadelos, os mais terríveis crimes. Os monstros ouviram seu chamado e aceitaram seu pedido.
***
Vinícius estava recebendo dois alunos de medicina no necrotério onde trabalhava. Era um casal, não pareciam serem irmãos, não pareciam serem namorados. Vinícius não se importava com isso. Só queria seu dinheiro. O funcionário entrega a sacola cheia de ossos para o garoto. – Esse esqueleto é de um homem adulto. Aí tem todos os ossos do qual precisa. – Aquela atividade era ilegal, Vinícius estava vendendo os esqueletos de um indigente. Um tipo de mercadoria que só estudantes de medicina conseguiam atribuir valor. O garoto tira do bolso da calça a quantia negociada e entrega a Vinícius. A transição foi bem sucedida.
Pow! Um baque metálico se faz presente. O casal criado a base de manga com leite fica assustado.
– Deixa eu ver o que está acontecendo. – Vinícius deixa os estudantes em seu escritório enquanto vai até o local das gavetas. O local refrigerado onde os cadáveres que ainda não foram liberados eram guardados.
pow! pow! pow! pow! Pow!! Pow!! Pow!! Pow!! POW!!! POW!!! POW!!! POOOWWW!!!! POOOOOW!!!! POOOOOWW!!!!
Ficava cada vez mais intenso, cada vez mais urgente. As porradas pareciam serem das gavetas. Pareciam vir de dentro. Mas como isso seria possível?
As agressões surtem efeito quando os cadeados cedem. As gavetas abrem de vez, sendo escancaradas. A impressão de Vinícius se confirmara. Realmente aqueles golpes vinham de dentro das gavetas.
As carnes necrosadas escapavam, os cadáveres se negavam a ficarem quietos e começaram a se levantar. Não demorou muito para que uma verdadeira marcha dos zumbis começasse a sair do estabelecimento e a ganhar as ruas.
No escritório o casal assistiu a tudo sem acreditar no que via. Os dois choraram, espernearam, enquanto pediam perdão por pecados que nunca chegaram a pensar em cometer.
– É, né. Acontece. – Vinícius estava tão dessensibilizado que nem mesmo tal cena foi suficiente para abalá-lo. – Garoto, ficou faltando cinquenta reais aqui.
Marchando, os zumbis foram imbuídos de uma missão. Tinham um pedido de ajuda a responder.
***
A velhinha cuidava do seu jardim com muito cuidado. Era uma distração. Uma terapia. Um meio de vida.
A vovó vivia sozinha, por isso tinha que encontrar meios para ocupar a mente. Cuidar de suas plantas foi o passatempo que melhor se encaixou a seu tipo de vida. A casa da idosa não era muito grande, mas no fundo havia uma estufa a qual ela passava a maior parte do seu tempo. Seu hobby não demorou a dar lucro. Ela começou a trabalhar vendendo as plantas que cuidava. Flores dos mais variados tipos e cores. Bonsais dos mais raros. Plantas difíceis de se achar. Seus netos cuidavam da parte burocrática do negócio, a vovó só se importava em cuidar de suas plantinhas.
Com todo cuidado do mundo ela podava as plantinhas. Com todo cuidado do mundo ela irrigava e colocava adubo nas plantinhas. Com todo cuidado do mundo ela conversava com suas plantinhas.
Naquele dia foi a primeira vez que as plantinhas responderam.
A vovó estava exercendo sua rotina quando viu o primeiro aparecer. Ele não usava roupa, era minusculo, cabia facilmente na mão, mais parecia um boneco. Em suas costas grandes asas de borboleta. A velhinha ficou maravilhada. Nunca havia visto um inseto tão belo. Só que ele não era um inseto.
Em poucos segundos mais apareceram: mini-homens, mini-mulheres, mini-crianças. Começaram tímidos, mas logo ficaram mais ousados. De início só aparecia um ou dois esporádicos. Logo seu número atingiu algumas dezenas. Logo seu número atingiu algumas centenas. Um enxame.
Um estouro daquele enxame de homenzinhos com asas de borboleta fez uma festa no jardim da vovó. A velhinha sentiu uma forte alegria. Tantos anos de trabalho valeram a pena.
Os homenzinhos alados voaram por uma abertura da estufa. Tinham trabalho a fazer. Atender a um pedido de ajuda.
***
Em um barracão os atabaques tocavam alto. Os rodantes (como são chamados aqueles que incorporam) andavam em círculos em um pequeno espaço enquanto dançavam. A maioria dançava desajeitado, pois ainda não foram incorporados por seus respectivos orixás. Cada música, cada toque, tinha uma dança diferente. Uma dança que para quem é de fora pode parecer aleatória, mas muito pelo contrário, é cheia de significado. É cheia de pequenos passos difíceis de serem aprendidos. Apesar disso não havia necessidade do rodante praticar a coreografia. Quando os orixás desciam eles guiavam o médium para que ele fizesse a dança com exatidão. O problema era que nenhum orixá estava disposto a incorporar aquele dia.
– Para! Para! – A mãe de santo pede. Os ogans, os responsáveis por tocar os atabaques, cessam o batuque.
– O que está acontecendo?! Até agora nada?! – Aquilo era atípico. Normalmente quando a sessão começava não demorava muito para que os médiuns receberem seus orixás.
Naquele dia o terreiro não iria receber suas entidades, pois elas estavam ocupadas.
Na rua, todas as entidades daquele terreiro: os caboclos, os orixás, os erês… seguiam viagem rumo a um certo manicômio. Estavam respondendo a um pedido de ajuda.
***
Heitor Sacramento estava no seu Fiat Uno azul com sua família. Pai, mãe e filho conversavam em tom de alegria quando aconteceu.
Uma cratera no meio do asfalto abriu de uma hora para outra. No último instante Heitor consegue desviar o carro, mas a atitude impensada quase o faz bater em um poste.
– Estão todos bem? – Pergunta o pai de família zeloso.
Após se assegurarem que ninguém havia se ferido, a família espiou aquele estranho buraco. Uma cratera que exalava uma luz vermelha estranha e um forte cheiro de ovo podre.
Ovo podre? Enxofre?
Uma criatura difícil de ser classificada sai de dentro daquele buraco. Uma criatura medonha. Uma criatura capaz de inspirar o pior nos homens só com sua presença.
Heitor viu aquele monstro e foi acometido com a dura verdade.
O delegado não podia mais se dar ao luxo de fingir que sua experiência foi um mero sonho. A visão daquele monstro levou à tona a verdade. O mundo vermelho era real.
A criatura dantesca caminhou pelas ruas sem dar importância a ninguém que cruzasse o seu caminho. Ela tinha um chamado a atender. Um pedido de ajuda.
Mas a criatura não estava sozinha.
Descendo como um cometa ele atinge o asfalto fazendo um grande estardalhaço. O sujeito tinha um semblante europeu. Era andrógeno, não dava para saber com certeza se era homem ou mulher. Vestia uma armadura medieval dourada e nas costas possuía longas asas com as mais belas e alvas penas.
Ele também veio atender a um pedido de ajuda.
***
Lorelei estava deitada na cama abraçada a uma almofada enquanto chorava copiosamente. Olhando desse jeito ela parecia uma adolescente com coração partido. No entanto, os problemas que a faziam chorar eram muito mais complexos do que aqueles que acometem a maioria dos mais jovens.
Naquele dia ela recebeu a notícia de que Marcos havia sido internado novamente. Ela estava brigada com ele, por isso acreditava que não o amava mais. A notícia veio provar o contrário. Saber do destino do seu ex doeu. As vezes nós só nos damos conta do quanto gostamos de alguém quando alguma tragédia acontece com essa pessoa amada.
– Filha, levanta.
Lorelei ignorou o pedido, achou que fosse só impressão sua. Não havia ninguém em casa.
– Amor, levanta.
A segunda vez não deu para ignorar. Por um instante Lorelei deixa o pranto de lado e vai conferir o que estava acontecendo. Quem estava a chamando?
Na sala, em pé perto da porta seu falecido avô a recebia com um sorriso carinhoso. Ele não era mais paraplégico. Ele não era mais surdo. Ele não era mais cego. Lorelei nunca havia visto um fantasma antes na vida, por isso o acanhamento. Não tinha medo. Sabia que seu avô, vivo ou morto, nunca faria algum mal a ela.
– Ele está precisando de você. Vem. – O velho não precisou dizer um nome, Lorelei sabia exatamente de quem ele falava.
Lorelei abre a porta de sua casa e vai até a rua. As ruas estavam lotadas com a mais heterogênea das multidões.
– Quem são esses? – Perguntou a neta ao seu avô.
– Siga-os. Eles te levarão até onde você precisa ir.
Sem perguntar mais nada Lorelei acompanha aquela procissão. A procissão mais diferente a qual se tem registro.
Se você estivesse no meio daquela gente você encontraria o Preto do Rio com seus enormes pés, sempre carregando um peixe que acabara de pescar. Você encontraria o Arlequim, acompanhado pela sua amada Columbina e pelo seu rival Pierrô, que a todo momento deseja lhe roubar a mulher. Você encontraria o João Gelado, o responsável por trazer o inverno. Você encontraria a Mãe d´Água, uma linda mulher que vela pelos pescadores e por todos aqueles que vivem do mar. Você encontraria o Rakshasa, o espírito da vingança indiano. Você encontraria o Troca-pele, um espírito nativo americano muito temido. Você encontraria um lorde empalador vindo de um distante país da Europa. Você encontraria um louco usando vários chapéus na cabeça que ficou famoso ao ajudar uma garotinha em sua aventura no país das maravilhas. Você encontraria um negrinho traquina que usava gorro vermelho e só tinha uma perna.Você encontraria um bilionário fantasiado de morcego que decidiu proteger a justiça após assistir a morte dos seus pais.
A multidão era composta por criaturas imaginárias, hipotéticas, lúdicas, lendárias, cultuadas. Dentre eles Lorelei era a única feita de carne e osso, os demais eram feitos de ideias.
Ao contrário dos outros membros daquela passeata, além de uma mediunidade recém-descoberta, Lorelei não tinha nenhuma habilidade especial.
Mesmo assim dentre todos era ela a que fazia a maior diferença.
Continua…