A Triste Bahia cantada pela Boca do Inferno

1

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante

Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!

(Triste Bahia – Gregório de Matos)

escravosO tom de lamento, dor e pesar típicos do movimento literário cunhado como “barroco” – que tendia a usar de copioso exagero em suas lamúrias e exaltações – ganha ainda mais vigor em seu pranto pelas terras brasileiras da Bahia nos versos de Gregório de Matos (o poeta sacro e satírico conhecido como “Boca do Inferno”). No poema “Triste Bahia” foi traçado, em formato de soneto, o panorama social e comercial do país em dado momento. É um registro, um recorte histórico, mas que pode muito bem vigorar e pintar em tons cinzentos o quadro atual de nosso espaço geográfico – quadro esse que faz parte da grande galeria construída durante o processo de obtenção da nossa “brasilidade”, repleta de influências e interferências estrangeiras.

“Boca do Inferno” retrata uma Bahia devastada pela exploração de seus recursos naturais, especialmente no período açucareiro, como elucidam os versos: “Deste em dar tanto açúcar excelente /Pelas drogas inúteis, que abelhuda/Simples aceitas do sagaz Brichote.” E a voz lírica, imersa em nostalgia, embargada em suspiros de entardecer por um local de outrora, assiste passível aos destroços deixados pelo sistema mercantil sanguessuga. As litorâneas terras que já toaram de berço para tantas belezas e riquezas naturais, servindo de fartura a seu povo, vive o papel de mercado em prol de manter o status quo de uns em detrimento do jugo de outros.

Todo esse cantar sofrido de pássaro extinto, apesar de restrito e específico, é tão somente o reflexo de uma realidade aterradoraescravos1 que se abateu sobre o Brasil ao longo de tantos anos de colonização. É um poema que fala sobre um lugar, Bahia, mas que poderia muito bem ganhar escala universal. E permanecem esses traços poetizados, arrastando-se em nosso encalço como uma herança maldita. Afinal, tudo isso constituiu e constitui cicatrizes da nossa construção dolorosa de identidade nacional – marcada à brasa pela vara do feitor estrangeiro.

Resta-nos apenas a esperança dos versos últimos e lacrimejantes de Gregório de Matos. Uma esperança que jaz adormecida pelos entorpecentes soníferos da nossa história, dentro de nós. Uma fé tão resplandecente e luminosa, tão abrasadora que surgirá vitoriosa junto aos primeiros raios da alvorada. Vamos, porém, além de sonhar platônica e despretensiosamente, acreditar e mover nossos devaneios de um país maior, melhor e mais justo até os árduos campos de concreto da realidade.

“Oh se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!”

Poetize!