Pasárgadas Musicais

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Acredito que quando escreveu “Vou-me embora pra Pasárgada”, expressando a vontade de se exilar no local onde é “amigo do rei”, Manuel Bandeira (1886-1968) não fazia ideia da influência que sua terra idealizada teria ao longo das décadas seguintes.

Desde a sua publicação o poema já serviu como inspiração para uma série de paródias e das mais distintas abordagens. Da criação de um lugar com a mesma idealização, como faz o poeta Marciano Lopes em “Vou-me embora para Gaya”, até metáforas para a situação que o país passava em tempos de ditadura, como faz Millôr Fernandes em “Vou-me embora de Passárgada”.

Para além da literatura:

Sim, a obra de Bandeira influencia outros poetas. Nada de novo até aqui, você pode dizer. Mas o meu objetivo é demonstrar que a abrangência do poema não se restringe à poesia como forma literária. E como prova disso trago dois exemplos de artistas da nova música brasileira que levaram algo do poema para a sua produção musical.

Criolo e a Pasárgada da contravenção:

Em 2011, Kleber Cavalcante Gomes, conhecido artisticamente como Criolo, lançou seu segundo disco “Nó na Orelha”. O CD, rotulado por algumas pessoas como um álbum de rap devido a todo o histórico do cantor no movimento, vai bem além das definições de gênero musical. Vencedor do Prêmio da Música Brasileira no ano posterior ao seu lançamento, um dos destaques fundamentais do disco é a acidez poética de suas letras.

É na música que abre o álbum “Bogotá” que nos deparamos com a referência ao poema de Bandeira. A letra começa com um alerta (como uma voz em off) antes de entrar na sua versão de “terra perfeita”: Fique atento, quando uma pessoa lhe oferece um caminho mais curto.” numa referência ao tráfico que muitas vezes recruta crianças (os chamados aviõezinhos ou vapores) para auxiliar em seu serviço. Depois disso o compositor assume como eu lírico um traficante de cocaína que vende a imagem desta como a “Pasárgada” que tem a oferecer. Vale lembrar que “Bogotá”, capital da Colômbia, é um lugar conhecido pelo tráfico de drogas.

Durante a música, o eu lírico sugere que seu interlocutor parta com ele para o local título, uma partida metafórica que faz alusão ao efeito da droga. Ele chega a afirmar que “a viagem” vai ser melhor do que a do local criado por Bandeira. Na propaganda que faz do “produto”, chega a destacar o que supostamente tem a oferecer: “Se você quer amor, chegue aqui/ Se quer esquecer a dor, venha pra cá/ Pois a ilusão é doce como o mel/ E cada um sabe o preço do papel que tem e de onde vem(…)”. Explorando Pasárgada não necessariamente como um lugar físico, mas também como um destino sensorial.

O compositor utiliza conhecimentos vindos de sua criação na periferia para desenvolver uma reflexão sobre um problema social, usando para isso a voz de um traficante e suas artimanhas na conquista dos “clientes”. Tudo isso partindo de uma proposta pouco comum da idealizada Pasárgada. .

Uma tal Filarmônica

No início desse ano um nome curioso me chamou a atenção durante o acesso cotidiano a alguns blogs musicais: “Filarmônica de Pasárgada”.  Apesar de o título aparentar um trabalho excessivamente pomposo, ao ouvir o disco da banda “O Hábito da força” fica claro que a sonoridade não tem nada de prepotente. As letras variam de uma poética amorosa ou filosófica,  passam por citações divertidas a nomes célebres e podem chegar até a possíveis canções prontas para musicais de teatro.

A referência ao poema de Bandeira é explícita. E, apesar de nenhuma das músicas citarem diretamente o que o nome da banda deixa claro, o clima da poesia consegue permear todo o álbum seja pela melancolia de algumas músicas ou pelo grau de loucura de outras. Num disco que vale a pena ser degustado.

E pra que Pasárgada eu vou?

PASARGADA 01

Manuel Bandeira e sua Pasárgada fazem parte da cultura brasileira desde o momento de sua publicação. E acredito que nunca deixarão de fazer. O que, para nós leitores, é algo positivo. Isso porque uma das características mais fascinantes da literatura é a sua permissão para que diferentes interpretações sobre o mesmo texto estejam corretas. Por isso eu digo: que venham novas Pasárgadas!