Crônicas do Mundo Branco – Capítulo 2

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gelo-pessoapor Danton Brasil

Os olhos doloridos abrem. Uma breve amnésia me conta que a noite passada foi épica. Estou deitado no chão, rodeado de latas de cerveja e garrafas de vodka e whisky vazias e claro: cigarros em cinzas e cocaína. Surpreendentemente, estou vestido e algumas garotas aqui perto não estão. Sério cara, devo ter sido atropelado por um caminhão. Levanto-me, coloco meu coturno e as correntes na calça. Tomo mais um gole de absinto (pra firmar a mão), acendo outro cigarro e, observo contente as garotas espalhadas pela casa. Pacotes de salgadinho e biscoito pelo chão. Saio do quarto e desço até a sala, tranquilamente, e vejo o resto da banda desmaiada. Esta banda, a minha, chama-se Freak Beat, uma alusão ao meu apelido e a de outro integrante. Alcançamos certo sucesso, digo de passagem, porém nunca lançamos nenhum CD. Mesmo assim, o dinheiro do estúdio que nos patrocina proporciona festas como essa. Eu sou Michael Fanning, ou Mike Beat, ou Beat. Escolha você. Os outros integrantes, chapados no chão da cozinha, eram o George Klaus (ou Mamute), baixista, Aaron Former, (ou Dedão), o guitarrista. Lancer, (ou Freak, conheço ele desde a infância) e Amanda Palest, vocalista e namorada (alguns diriam “séria” ) de Freak a incríveis 3 meses. Eu sou o baterista, o desgraçado mais injustiçado da banda (alguns diriam da história do rock) e mais mal pago, obviamente. Olho meu celular e vejo: Caraca doido, como é tarde. Precisamos voltar para a emissora. Esse fim de semana nos foi permitido, como parte do acordo para tocarmos ao vivo, daqui a 3 dias num festival, abrindo o show de um grande grupo. Apenas 3 músicas, muito dinheiro, festa, mulheres, bebida e algumas drogas. Nada que eu nunca tivesse feito.

– Freak seu saco de merda – chutei suas costelas, e ele, claro, acorda

– Beat? Me deixe em paz cara, quero dormir. Minha cabeça irá explodir se eu levantar

– Deveria eu deixar a KNX te acordar? Não vejo problemas, eles podem passar com a van por cima da gente quando chegarmos lá atrasados, ou pior, faltarmos a passagem de som.

– mande Maicon comprar algo para comer e café. Amanda. – ela se vira e tampa a boca dele com a mão, falando:

– Lave sua boca, esgoto que fala.

A propósito, Maicon era uma espécie de faz tudo, era o DJ da banda, o motorista e o contra-regra. Nesse exato momento. Senhor Maicon estava deitado no banheiro, enrolado com a cortina, com a roupa vomitada e as sobrancelhas cheias de cinzas de cigarro. Já lá em cima, Eu, chupo e seguro a fumaça do meu cigarro, e assopro no nariz dele.

– Cof cof cof cof cof – ele tosse – ei! Levaram minha Vodka cara!

– Você é um maldito ladrão – Apago o cigarro na cortina – tão ladrão que roubou aquela vaga.

– e eu roubei isso aonde? Que loucura

– No útero de sua mãe

– Vá se fuder

– ha ha ha ha ha ha – Ajudo ele a se levantar – vá comprar uns donuts e uns cafés para nós. Tome 100.

– e o troco? É meu?

– pode ficar, quem sabe se você ajeita essa sua cara feia.

Ele levanta e vomita no chão.

– De novo cara? Seu estômago é infinito?

– O outro vômito não é meu. É de alguma garota que veio. Tava muito chapado e.. Pera ai: ela levou minha vodka!

– Muito legal cara. Agora vá comprar – Descemos e todos já estavam de pé e dividiam aspirinas e antiácidos.  O nosso estoque pessoal desses dois ingredientes criados por deus era tanto, que poderíamos vender em atacado e comprar um ônibus. Uma meia hora depois Maicon volta, comemos nossos doces e fomos o mais rápido permitido pela física à KNX. Um frio digno de inverno, tão logo saímos da van dividimos um gole do meu absinto, e a fada verde deixou  nossos fígados quentes. Eu já me encaminhava para o status “alcoolizado” outra vez, e nem eram 2 da tarde. Entramos no estúdio e ficamos esperando pelo chefe.

– Freak Beat. Um nome falado… pelo menos VOCÊS não me deram dor de cabeça. Um de nossos apresentadores do tempo ficou doente logo agora, com esse frio doido. Tive de colocar um dos doutores figurões que não sabem nem falar em público. – Era o chefe. Falastrão e geralmente bem humorado, quando sabia que o dinheiro estava entrando. Ele se senta e olha para nossa cara – festa interessante, deixaram as 4 paredes de pé daquela casa?

– Sim, e que fase ruim chefão. O que temos para hoje? – Mamute fala pro todos.

– Escolham e toquem 3 músicas suas para o festival – ele boceja – gravem promocionais e deixem ai que sábado vai estar no ar. Agora eu vou comer.

– Cê que manda – Dedão pega o baixo

– Agora o metal irá infectar – Corro para a minha bateria e faço o que eu sei fazer de melhor. Já no meio da terceira música, (chamada “A dose excedente” ) tudo se apaga.

– Putz, logo no meu solo! Isso vai dar merda – Freak grita.

– Vamos ver o que está pegando – Amanda sai do estúdio. Nos corredores, estava o maior caos. Redatores e repórteres, estagiários e chefões de terno corriam por todo lado, papéis voavam e ordens em gritos eram dadas. O operador do estúdio sai da sala dele e diz:

– Pessoal, a rede elétrica deve ter caído. Voltem amanhã mais cedo, que nós gravamos tudo outra vez.

– Valeu John. Ficamos te devendo essa – Dedão aperta a mão dele.

No estacionamento, nevava lentamente.

– que porra é essa? – Mamute falou alto e assustou a todos- não estamos no verão?

– e isso importa? Vamos embora cara – me viro na direção dele – vamos logo cara..

Fiquei sem reação. Não acreditei, por uns 5 segundos, no que vi. Detrás dele, no meio da rua, um bloco de gelo do tamanho de um carro caiu, explodindo e atingindo pedestres e carros.

– Caralho! – gritei, e todos nós estávamos em choque.

– vamos vazar daqui cara, vamos logo – gritou Freak – onde está maicon? Maicon seu inútil

A van veio numa velocidade monstruosa e parou derrubando uma fileira de motos.

– entra ai porra! – Maicon sangrava muito por detrás do pescoço – um maldito gelo me acertou na rua

– Meu deus! Maicon, você está bem? – Amanda toca nele – como foi isso?

– estava na rua e esse iceberg, ou qualquer coisa do tipo me acertou. Fui pro chão de cara, tá doendo até agora, estou sangrando como um porco. – e a van ia a toda velocidade, cortando outros carros e por vezes indo por cima da calçada. Muito tumulto e correria

– Devem ser granizos cara – Dedão olhava pela janela – Chuva congelada.

– Daquele tamanho? Só a chuva do ano inteiro de uma única vez – Mamute ri – nunca vi granizo tão grande em toda minha vida. E Olhe que eu já fui à Rússia.  E no inverno.

– Isso vai passar. Se fosse um terremoto ou Tsunami seria muito pior. – Amanda passa a mão pela testa suada e amarra os cabelos – vamos para casa e tudo ficará bem.

– é

– verdade

– pisa fundo Maicon.

Várias ruas depois, num canto já meio desértico da cidade, dobramos uma esquina e vimos vários homens parados no meio da rua. Ao nos ver, gritaram e apontaram algo preto para a van. Eram armas. Atiraram e acertaram a van, derrapamos e batemos com a lateral no prédio do outro lado da rua, ficando marcas de pneu no asfalto.

– Saiam do carro – um homem armado nos tira de dentro – vou matar vocês! Saiam!

Indefesos, obedecemos. Só ao sair percebi: Maicon tinha tomado um tiro em cheio na garganta., Dedão e Mamute o seguravam enquanto os homens (deviam Haver uns 10) subiam na van. Foi quando Freak tira um revólver do cós da calça e atira:

– Malditos! – ele erra. Os homens revidam. E o acertam na virilha e na coxa. A van vai embora.

– NÃAAO – gritei, e o amparamos antes que caísse. O Tiro o impossibilitava de andar. Como se não bastasse Maicon engasga e para de respirar

-Alguém faça alguma coisa! – Amanda estava desesperada, andava de um para o outro, chorando. E Freak… esse me olhava. Profundamente.

– Vamos andando – Eu disse, disfarçando todo o terror e a insegurança. Minhas mãos tremiam, me denunciando. – Deixem ele ai. – As lagrimas desciam pelo meu rosto, muito longe do meu controle.

– desculpa cara. – falei para o corpo de Maicon. Ainda indecisos, fomos, apoiando Freak como poderíamos, e este, sangrava profusamente.  Chegamos a uma grande avenida, apinhada de pessoas, quando o frio ficou mais forte, quase tangível. Saía um vapor das nossas bocas. A caminhada era lenta, mas mesmo assim, estávamos a alguns quarteirões de casa.

– vamos conseguir – Amanda grita, e há pouco tentava ligar o celular, que misteriosamente não funcionava mais. Ela dá uma última olhada nele quando um carro a acerta e joga ela a metros de distância, indo depois bater num poste. Outro granizo explode na rua, enquanto eu vou no carro e chuto sua janela, sem esta nem trincar. Corro pra onde Amanda estava, e esta estava banhada em sangue, com um braço numa posição não natural. E não respirava. Meus olhos não acreditavam mais. Será que é um sonho? Será que vai passar? Será que ainda estou chapado? É isso… devo estar chapado. Eu saí do devaneio quando o carro deu ré e fugiu a toda velocidade.

– COVARDE! VOLTE SEU COVARDE! – berrei e corri até cair no chão, coberto de pequenos pedaços de gelo, me arranhando. Arfando, voltei para junto de Mamute e Dedão, pálidos, em estado de choque e Freak, este desfalecido. Meu corpo tremia, meus olhos saíam e entravam em foco, porém, de alguma maneira deixei isso de lado por alguns instantes, e auxiliei-os, ajudando a ficar de pé. Tão logo fomos à frente, ouvi outros granizos explodirem ao nosso redor.

– Freak! Acorde! – eu estava fazendo um esforço monumental para falar, minha garganta estava seca – não durma! – Olhei para Mamute e, no futuro eu saberei, que foi um grande erro. Vi, quase que em câmera lente, um desse malditos icebergs o atingir na cabeça e explodi-la sobre mim. Banhar cada fio da minha barba de vermelho. Deixar essa imagem para sempre na minha memória, e adicionar a coleção que estava sendo criada essa noite. Ao olhar para trás, outro pedaço de gelo explode nas costas de Dedão, arrebentando o dique de sangue que todos temos no corpo e deixando que ele lave o asfalto. Freak jazia no chão, desacordado, pálido e inerte. Aquele cara, eu conheci quando era criança. Montamos uma banda juntos, bebemos, brigamos e por ai vai. Tudo juntos. E agora já era. Tudo já era. Porque só eu sobrevivi? Não era justo. A morte seria justa… sim.. morrermos todos seria o ideal. Me levanto e corro. Corro sem rumo, sem olhar para onde. Foi quando uma Picape me acerte e juntos entramos numa casa, destruindo tudo, arrebentando a todos. Me lembro de estar deitado de barriga pra cima, não sentir mais o braço esquerdo e de olhar para o céu. E eu juro a vocês: eu o vi brilhar. Um brilho verde. Brilho bonito. Horas depois, ou me pareceram horas, ouvi tiros. Ouvi gritos, vi mais gelo cair do céu e estourar mais cabeças. Ouvi e vi tudo, de onde estava: Deitado em cima de algum chão frio de alguma casa. Até apagar. E este “apagar” foi diferente de todos os outros. Este durou para sempre. Isso até alguém me acordar.