Crônicas do Mundo Branco – Capítulo 1

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diferentes-estados-no-ciclo-da-agua-04por: Danton Brasil

Uma coisa eu aprendi com isto tudo: No primeiro momento de dificuldade, o monstro que habita cada um é liberado. Quando começou a esfriar, eu, no meu laptop com monitoração do clima, percebi o que viria e tentei avisar a todos. Só eu. Claro que outros pensavam que era uma simples frente fria. O problema era que não foi. O mar petrificou, rios viraram gelo, tornando-se lindas pedreiras translúcidas. A temperatura caiu o suficiente para tornar o mundo inteiro numa bola branca de sinuca. Tanta cor branca dói nos olhos, porem, quase nunca o sol brilha. Como tudo começou? eu me lembro claramente, como se fosse a minha última memória sã.

Era verão, mas nunca foi tão frio. Flocos de neve começaram a cair de madrugada e já era meio-dia. Acordei com raiva da vida que levava, desejando que todos no mundo decidissem num desejo frenético (e utópico) não sair de casa para trabalhar hoje, e que, numa descoberta regojizante eu fosse obrigado a voltar para casa e dormir, porque não existiria notícia a ser dada nem ninguém pra assistir. Meu devaneio sai com água gelada, como sempre. Odiava meu nome, esse extraordinariamente comum: Robert Fishman, ou Doutor Fishman, ou ainda paciente, sendo que este último apenas é usado pelo meu psiquiatra. Segundo os gloriosos estudos dele, eu possuo misantropia, ou seja, a incrível capacidade de ver o ser humano como ele é (e de me trancar em casa por meses e até ter alucinações), na minha opinião de merda, eu acho que ele deve estudar mais, pois, se eu tivesse o diploma dele venderia cachorro – quente.
Após um café da manhã surpreendente composto por bolachas e o liquido sagrado dos deuses (café), tomo meu remédio (que torna tudo interessante e me dá a capacidade de sorrir) e anoto mentalmente que preciso comprar mais (pois acabei de tomar a penúltima dessas maravilhas comprimidas). Dirijo até os estúdios da KNX (a emissora/produtora e sei lá mais o que), situado estrategicamente no pior lugar possível para se estacionar. Um lugar ruim até para alguém como o Vin Diesel (vide Velozes e furiosos). Nunca tive emprego melhor, admito, ao longo dos meus 34 anos de vida. Sou pago justamente e gasto indevidamente comprando comida e objetos variados para estoque. Eu gosto, me sinto seguro dessa maneira, caso aconteça um terremoto, furacão, explosão terrorista ou ataque de reclusão. Não possuo família, meus pais morreram quando eu era adolescente e possuo tios que nunca conheci. Paro meu carro na cancela e o porteiro me cumprimenta e pergunta:

– E este tempo ruim doutor?

– É uma frente fria Martin. Isso passa, deve vir do Canadá ou da Rússia.

– É por isso que está esse cheio tao forte de comunistas no ar. (Ele ri e tosse, lembra demais uma tuberculose) – finjo um riso e prossigo. Maldito veterano esse Wilson Martin. O pobre coitado viveu intensamente o período da guerra fria e provavelmente não se lembra da morte de Stalin ou algo do tipo.

Já no meu cubículo na sala da redação, observo meu modelo 3D do planeta no notebook, e aquela linda mancha branca mutante gigante me preocupa.

– Fishman. – meu chefe aparece – está pronto para ir ao ar mais tarde?

-Claro que sim. – Droga. Tinha esquecido completamente disso. – Como vai o Rice?

– Gripado demais. Deixei ele de folga por hoje, não quero ele infectando outros na redação.

– E quanto a parte escrita? É minha também?

– Já foi feita, pedi para o Andread do Setor de Revisão para redigi-lo. Ele sabe o que faz. Agora tenho que ir, tem uma banda me esperando no estúdio de gravação. – e vai embora.

Realmente, recapitulando meu pensamento, essa frente fria está densa demais, quase sólida, se expandindo depressa. Se move como se fosse viva. Estranhíssimo. Entro na internet e procuro por imagens de locais afetados: México, Brasil, África do Sul, Congo. Nunca havia nevado desse jeito (ou de qualquer jeito) nesses países. Essa preocupação me enche de maneira deliciosa a mente, e me recordo dos anos de universidade: Geografia, e depois uma especialização em Climatologia (além de ter abandonado na metade o curso de jornalismo) e é, bem lembrado, isso que me  garantiu essa vaga de presidente dos idiotas da KNX.

A Noite chega, e com ela o grande momento da minha vida (sim, já fiz isso umas outras milhões de vezes). Substituirei Bartô Rice, o homem do tempo preferido da KNX (leia: dono da) na parte do Mapa temporal. A propósito, sou lindo nas noites de segunda.

– Todos prontos? – O chefe fala por trás dos Câmeras – Quando Cristine pronunciar seu nome, conte até três e fale em alto e bom tom.

– Entendido general – então o áudio do pavilhão ao lado é tocado neste:

” – … como podemos ver nesse canil aqui, fura-bolos é muito inteligente e sabe procurar seu osso em meio ao de todos os outros, apenas pelo olfato. Cristine, é com você. “

” – Obrigada Walter, agora, veremos o porquê de tanto frio fora de época como nosso especialista, o Doutor Robert Fishman”

“1” contei mentalmente

” – Fishman, é com você. “

“2”

“3”

– Olá Cristine – uso da minha melhor voz fingida – esse frio veio para ficar. Temos Relatos de neve, isso mesmo neve, na América do Sul e África! e neve digna de países polares, digo. Algo muito anormal para uma época que deveria ser quente e seca aqui e chuvosa lá.

“- Doutor, nos diga, isso irá ter consequências graves para a nossa sociedade? “

– Meus estudos nos dizem que, por enquanto não.

” – E a sua opinião pessoal? “

– A minha? – bem, vou chutar o pau da barraca – acho que se for longa demais, veremos o declínio da espécie humana. Como poderá ver.. – Um barulho eletrônico e de vento foi maior do que todos os outros sons. A energia caiu. O estúdio emergido em um silêncio com uma tensão alta e trocamos olhares assustados

– Foi no estado todo, só pode ter sido, estamos ligados a rede central – gritou um dos Câmeras.

– Mais que bela merda Fishman. Espero que essa sua brincadeira ridícula não cause nenhum tumulto. Vá pra casa, não tem nada que possa fazer aqui. – Meu chefe sempre foi um cara solidário.

Já no meu carro (que demorou muito para ligar, estranhamente.) ,no meio da avenida, percebi um certo pandemônio nas ruas, e comecei a me indagar se eu havia realmente causado um rebuliço com minha brincadeira. Pensei seriamente nisso até um granizo do tamanho de uma cabeça humana atingir meu para-brisa. O choque foi tão grande que congelei no volante e acabei atropelando em cheio um jovem de cabelos loiros longos, que ficou seriamente ferido, antes de acertar o poste. Minhas mãos tremiam, pequenos outros granizos metralhavam a rua, atingindo pessoas, carros, e casas. O suor gelado desceu pelas minhas costas e percebi que era mais um ataque de reclusão (como gosto de chamar). Não socorri quem atropelei e sinto muito por isso, mas na hora eu não conseguiria. Dirigi a uma velocidade desgraçada o resto do meu carro e entrei na garagem com tudo, sem abrir o portão, destruindo tudo pela frente e corri para juntar o que eu podia, antes que fosse o pior. Juntei toda a comida e cheguei no meu santuário máximo: o Porão. Reforçado de aço, capaz de resistir a uma míssil. Abri as 20 fechaduras, 5 delas Biométricas e joguei tudo dentro, vasculhei a casa outra vez e colhi todos os meus notebooks. Por fim, girei o quadro da sala e abri o cofre da casa. Dentro, tinham 6 pistolas de mão, 8 granadas e duas maletas contendo peças de rifes de assalto, todos com munição abundante. Retirei tudo, joguei tudo no porão e me tranquei por dentro.

Durante uma semana inteira, fiquei observando apenas o meu modelo em 3D do planeta e a sua mancha branca, agora espalhada por um lado inteiro dele. Quase não comi, todo esse tempo de internação. Fazia um completo silêncio, já que me certifiquei do porão ter isolamento acústico. Apenas no final de semana me lembrei de um único item: o meu remédio. Porcaria…. o meu remédio. E se foi outra crise infundada? e se foram novamente as alucinações que tanto me atormentaram? e se foi tudo fruto da minha ”maldição” ? isso já havia acontecido… então, a mancha branca, o granizo, o medo podiam ser irreais. Rindo, tomei a última das capsulas e esperei seu efeito. Já rindo, abri o alçapão e sai para o mundo. A neve que caia torrencialmente, os corpos congelados e a casa destruída me afirmaram que tudo o que ocorreu antes era verdade, Porém, fiquei feliz pelas últimas 12 horas da minha vida.