Conto: As aventuras sobrenaturais de Marcos Mignola – Capítulo 4

2

mundo hippiePor Alan Cosme

Leia o capítulo 3 – As aventuras sobrenaturais de Marcos Mignola

Leia o capítulo 2 – As aventuras sobrenaturais de Marcos Mignola

Leia o capítulo 1 – As aventuras sobrenaturais de Marcos Mignola

Independente de sua vontade, a cabeça de Marcos Mignola se acomodava dentro de um buraco feito de plástico e outros materiais sintéticos. A luz dentro da abertura onde estava confinado foi acesa, era sinal de que o exame estava em prosseguimento. O vidente foi advertido por seus examinadores a ficar o mais imóvel possível. Que evitasse inclusive mexer muito os seus glóbulos oculares. O exame durou apenas cinco minutos, mas o nervosismo fez com que a percepção do tempo se expandisse e desse a impressão de que ao menos trinta minutos haviam se passado.

– Maybe mythical creatures was how the ancient people comprehended the alien beings.

Após a bateria de exames que lhe custou boa parte daquela quinta-feira, Marcos gastou seu tempo assistindo televisão. No sofá de sua sala ele assistia a um documentário apresentado por um homem com o cabelo bem desgrenhado. Tal documentário tinha a premissa de ser científico, mas as hipóteses que apresentava seriam refutadas por qualquer cientista visto com seriedade pelos meios acadêmicos. Apesar de passar no canal de história, não dava para considerá-lo mais do que ficção, fantasia. Ao menos a maioria das pessoas pensava assim.

Jogado de qualquer jeito no sofá, olhando para a tevê com um olhar caído, desinteressado, Marcos era a personificação do desânimo. Mas isso não durou muito. O telefone tocou, assim que atendeu sua expressão mudou. A pessoa do outro lado da linha tinha esse poder de influência sobre ele. Essa pessoa era Lorelei.

Lorelei ligou para avisar que fez descobertas em um livro que podiam dar uma luz sobre o que poderia ser o tal teleporte ao mundo vermelho. Os ouvidos de Marcos não deram muita importância para aquilo, o que mais o deixou alerta foi ouvir o convite para passar na casa dela.

A mesma casinha amarela de sempre. Lorelei continuava tendo o mesmo estilo de vida de dez anos antes. Com algumas diferenças. Agora ela morava sozinha, seu avô há um bom tempo falecera. Não estava namorando nem mesmo tinha um candidato a vista. Como quem não quer nada Marcos fez questão de sondar aquele assunto. Se Lorelei percebeu o interesse velado de seu ex ela não deixou transparecer.

Os dois sentaram no sofá da sala. Era o mesmo sofá onde dez anos antes tiveram a primeira conversa significativa, onde Marcos teve sua primeira experiência de amor. Aquele sofá velho com pontos de espuma a florescer de frestas abertas era muito importante para a história do casal. Naquele dia ele iria ser importante mais uma vez.

Lorelei pegou um livro e o mostrou para Marcos. Os dois conversavam bem juntinhos um do outro. Marcos olhava para a boca da mulher, mas não se interessava pelas palavras que de lá saiam. Seu interesse era os lábios vermelhos chamativos.

– Está me ouvindo?

– Sim, claro. Continue.

O livro de capa floral se chamava Olhando Através do Véu. Tinha a presunção de se achar cientifico, mas estava bem longe disso. Era muito ligado a crenças exotéricas. Fazia um verdadeiro mash-up de várias religiões. Na orelha da obra era exibido o extenso currículo do autor. Um homem de sessenta anos sorridente e em forma que se chamava Ezequiel Barbosa.

– Ezequiel é um homem fascinante. Nesse livro ele destrincha sobre sua teoria, o véu da realidade.

– “Véu da realidade”?

– Nossa percepção do mundo nos é dada através dos nossos sentidos. Os olhos nos dão a visão, os ouvidos a audição, a pele o tato… Porém nossos sentidos não são absolutos, há muita coisa interessante a nossa volta que nossos sentidos simplesmente ignoram. Porém, há pessoas com sentidos diferentes que conseguem captar tais coisas. Você é uma dessas pessoas, Marcos.

Aquela teoria não era novidade para Marcos, como ganhava a vida trabalhando com vários tipos de crenças ele já ouviu sobre aquela ideia muitas vezes. Muitas religiões e ideologias compartilhavam essa visão de mundo. Só faziam questão de rotulá-la com nomes diferentes. Véu de Maya, Véu da Realidade, Mediunidade, Dom divino, Profetização… Nomes diferentes para ideias similares. Como muitos disputavam para mostrar que suas crenças eram superiores a dos outros, escolhiam nomes diferentes para características comuns a todos para não se igualarem.

– Segundo o autor há um véu cobrindo o mundo que nos impede de ver sua real aparência. Um véu que em certos lugares é mais fraco e permite a pessoas especiais, como você, terem um vislumbre das outras camadas.

Lorelei até o momento não falou nada que Marcos já não conhecesse. Essa ideia de que há outros planos de existência é muito antiga. Outras dimensões, universos paralelos, planos espirituais, realidades alternativas. Vários mundos dividindo o mesmo espaço separados por frequências vibracionais diferentes. Marcos chegou a conclusão que esse tal Barbosa não trazia nada de novo em seu pomposo livro. Só fez uma mistureba de conceitos religiosos e de física quântica. Uma confusão que exotéricos adoram fazer. Física quântica, em sua essência, não tem nada a ver com espiritualidade.

Se deixasse, Lorelei continuaria com o blábláblá esquizotérico a noite inteira. Mas Marcos não aguentou mais. A proximidade e o tesão reprimido falaram mais alto. Sem perder tempo nem em dar uma cantada primeiro o vidente invadiu o espaço da ex aplicando um beijo forçado em sua boca. A moça reclamou, com uma indignação fingida. – Hei! – Sem dar oportunidade para ela protestar direito, Marcos tapa a boca da moça usando a sua própria boca. No segundo beijo não houve mais necessidade de usar a força, já que a vontade era reciproca.

As mãos do casal pouco a pouco iam invadindo lugares mais ousados. Os dois foram íntimos por sete anos, um conhecia bem o que o outro gostava.

Peças de roupa caíam ao chão enquanto começava o vai e vem. Alguns casais apaixonados falam sobre encontrar o paraíso durante o vai e vem. Marcos e Lorelei eram um dos poucos que podiam dizer isso se referindo a algo próximo de ser ao pé da letra.

O mundo ao redor do casal mudou. O sofá desgastado virou uma cama digna do melhor palácio de contos de fadas. As paredes amarelas sem graça da casa ganharam um tom vivo digno da realeza, perdendo inclusive os pontos de tinta descascada. O ar estava mais puro, com um aroma diferente e gostoso de se respirar. Uma flora bela nascera de vasos que antes continham plantas que estavam quase murchas.

Tudo isso graças ao vai e vem.

Agindo como um afrodisíaco o novo cenário fez com que Marcos e Lorelei tivessem ainda mais vontade. O vai e vem continuou, demorando muito mais do que seria considerado normal. Demorando muito mais do que seria considerado humanamente possível.

Seus ditos poderes místicos ao longo de sua vida trouxeram muitos problemas. Naquela noite Marcos não conseguiu lembrar de nenhum deles.

Estava tudo muito bom. Porém, por melhor que fosse o vai e vem certas coisas não davam para serem ignoradas. Lorelei olhou ao seu redor e achou estranho esse novo ambiente a qual estava inserida. Hipóteses começaram a ser formuladas em sua cabeça até que ela teve uma revelação. Uma revelação falsa, mas ainda assim uma revelação.

Marcos havia acabado um ato, estava se preparando para recomeçar uma quarta vez, quando é surpreendido por um soco de direita inesperado. Apesar de sua aparência feminina e delicada Lorelei era muito boa de briga. Marcos cai para trás. Seu lábio superior partido.

– Ficou maluca, mulher?!

– Você me drogou! Só pode ser isso!

Marcos olhou ao seu redor. A visão daquele quarto paradisíaco, bom demais para ser real, o fez entender o porquê da desconfiança de sua ex.

– Se você estivesse chapada não iria conseguir raciocinar direito e muito menos chegar a essa conclusão. Pensei que alguém que se diz psicologa saberia de algo tão básico. Algo que até eu, um ignorante sem diploma, tem conhecimento.

Dito isso todo o clima propicio ao vai e vem foi para o espaço. A agressão que Marcos infligiu em Lorelei foi muito mais forte do que um soco. Um soco só consegue atingir o físico. Marcos com a palavra certa conseguiu atingir o ego. Há poucas coisas que doem mais do que um ego machucado.

– Como você explica isso, então?

– Acho que nós nos teleportamos. – Marcos se sentia ridículo dizendo aquilo, mas disse assim mesmo. – Por sorte não fomos parar no mundo vermelho. – A última coisa que alguém pensaria ao estar naquele estado vibracional seria o horror. Prazer era a palavra que mais vinha a mente.

– Tudo bem, super psíquico. Depois a gente discute isso com mais calma. Só me leve de volta para casa. – Uma parte de Lorelei queria desbravar esse novo universo. Outra tinha medo de ficar presa ali e nunca mais poder voltar. Algo que, pensando bem, não seria assim tão ruim.

Marcos pegou a mão de sua ex e se concentrou. Fechou os olhos, não que isso fizesse diferença. Fez força, mas nada. Tentou umas cinco vezes mas sua vontade não foi suficiente para devolvê-los ao plano terreno. A preocupação de Lorelei começava a se afirmar. Estariam eles presos àquele universo paralelo?

– Acho que você me deixou cansado. – Apesar daquela hipótese não ter sido feita em tom de piada, ele e Lorelei acharam graça e deram um risinho. – Vou tentar depois, talvez eu só precise de um bom descanso. – Naquele instante a birra dos dois se dissipou. Dormirem juntos, de preferência de conchinha, não parecia uma ideia assim tão ruim.

O clima propicio ao vai e vem havia se reestabelecido, mas foi substituído pelo medo. O casal descobriu que até mesmo naquele paraíso era possível sentir aquela sensação.

A porta dupla de madeira grossa que servia de entrada para aquele quarto palaciano começara a ser agredida por fortes batidas vindas do lado de fora. – Quem está aí?! – Gritava alguém em tom imperioso. Marcos chegou a conclusão de que sem querer havia invadido a casa de alguém.

Falando baixo para não ser ouvido Marcos declara com urgência. – Sujou! Vamos dar o fora daqui! Rápido! Rápido! – O casal começou a procurar por suas roupas pelo quarto, por mais que vasculhassem não as encontravam. Provavelmente as deixaram no plano terreno.

Que mancada!

Marcos estava pulando a janela do jeito que estava, como veio ao mundo. Lorelei foi logo em seguida, mas não sem antes pegar as primeiras roupas que viu dentro do armário. As roupas eram as mais bufantes e estranhas possíveis, mas qualquer coisa era melhor do que ficar em público de bunda de fora.

Quando saíram do plano terreno era noite, ali ainda era dia. Universos paralelos teriam fuso horários diferentes? Provável.

O casal fugiu pela janela. Tiveram que ter cuidado, pois estavam no equivalente a um terceiro andar. Fugiam pelo parapeito da casa que mais parecia um pequeno castelo. Todo cuidado era pouco. Em um passo em falso quase que Lorelei despenca de lá de cima. Marcos consegue segurá-la a tempo. Mas a muda de roupa não teve a mesma sorte e vai parar lá embaixo.

Descer não foi difícil, apesar das construções serem muito dispersas, a parede daquele mini-castelo tinha muitos pontos de apoio. Foi fácil para Marcos descer e chegar ao chão. Lorelei teve um pouco de dificuldade, mas com a ajuda do seu talvez-não-ex conseguiu pisar no solo também.

O lugar era bucólico, parecendo uma vila perdida no tempo, que ainda estava na época medieval. Não uma idade média real, mas sim a idealizada pelos contos e mitos de fantasia épica. As casas tinham formatos bem únicos, sendo bem diferentes entre si. Havia muita vegetação em volta, o contato com a natureza quase total. As poucas estradas que eram visíveis foram feitas com tijolos. Asfalto ou qualquer tecnologia mais moderna não tinha vez ali. Haviam algumas pessoas trafegando pelas estradas ou circulando as casas. O casal envergonhado se escondeu atrás de árvores e de moitas. Mesmo assim ainda estavam muito expostos. Porém parecia que não haviam sido percebidos já que ninguém se alarmou.

As pessoas vestiam roupas simples de algodão. Pareciam humanas, mas tinham um quê de estranheza. Seus corpos eram delgados demais ou seus pés muito grandes e peludos ou tinham orelhas pontudas.

O casal demoraria contemplando o lugar se não se lembrassem da própria nudez e se Lorelei não tivesse visto as roupas que tirara do armário jogadas no chão. Elas estavam perto, o problema era que para alcançá-las eles teriam que abandonar a proteção da vegetação. Lorelei respira fundo e com um belo impulso sai correndo em direção às roupas. Marcos, sem saber muito bem o que fazer, vai atrás. Assim que as mãos da moça agarram o vestuário uma voz forte se fez presente. A mesma voz que momentos antes batia na porta perguntando quem estava invadindo sua propriedade.

– Larga isso aí!

O homem era idoso, magro, seus cabelos prateados eram compridos assim como sua barba que ia até embaixo da cintura. Ele vestia uma roupa diferente, que mais parecia um vestido ou um camisolão antigo de dormir. O velhinho olhava para o casal sem se importar com o fato de estarem pelados. O que o incomodou foi terem roubado algo seu, as roupas. Marcos prestou atenção no que o velho segurava na mão direita. Um cachimbo fino e comprido que exalava um cheiro bem característico e que Marcos conhecia bem.

Lorelei ficou desesperada tentando esconder suas vergonhas, mas Marcos não. Assim que ele viu o cachimbo na mão do velho ele entendeu o porquê de ninguém do lugar parecer se alarmar com a nudez deles.

Aquele mundo precisava ser batizado. O primeiro mundo alternativo que visitara Marcos batizou de mundo vermelho, pois aquele tom era o predominante lá. Aquele novo mundo não era reduzido a apenas uma coloração. Pelo contrário, era colorido demais. Inclusive tendo várias tonalidades que não existiam no plano terreno. Marcos decidiu por batizar aquela realidade usando outro conceito. Usando uma ideia que parecia sintetizar bem o modo de vida daquelas pessoas. As criaturas semelhantes as encontradas na cultura celta ou em obras tolkenianas, o clima de paz e amor, a natureza em excesso, o exagero de cores que lembrava uma viagem psicodélica. E por fim o cachimbo. Não dava para batizar o lugar com outra alcunha se não aquela escolhida.

Marcos Mignola passou a chamar o lugar de Mundo Hippie.

Algum tempo depois, Marcos e Lorelei caminhavam por uma estrada de tijolos amarelos sem saber ao certo para onde estavam indo. Há cerca de duas horas o casal havia abandonado aquele lúdico vilarejo medieval, tiveram que sair correndo. Para a vergonha de Lorelei não deu para evitar serem vistos pelos moradores. Marcos não se sentiu acanhado, já que parecia que ninguém daquele mundo se importava com pudores em se mostrar o próprio corpo. Uma forma de ver a vida que Lorelei não conseguia compreender, pois estava muito arraigada a sua criação judaico-cristã-ocidental-tradicional.

O casal estava vestido, tinham conseguido levar as roupas que Lorelei havia retirado do armário. Marcos usava uma calça comprida verde cana de tecido leve, Lorelei usava uma espécie de camisolão azul estrelado, uma roupa similar ao que o sósia do Merlin vestia. Não deu para pegar nenhuma roupa de baixo, Lorelei se lamentava por isso, não estava acostumada a tanto “frescor ao ar livre”. A lamentação dela é interrompida quando chega a conclusão de que usar as ceroulas de um velho de oitenta anos não deveria ser assim tão agradável.

Marcos tinha um sorriso abobalhado estampado na cara. Lorelei não entendia o motivo da graça, se sentindo incomodada e – Passei a vida inteira na duvida, sem saber se era louco ou se era de fato um vidente. Hoje a duvida acabou. Meu psicologo foi tão cético quanto ao fato de eu poder me teleportar entre os mundos que até eu fui contaminado por sua descrença. Agora não há espaço para duvida. Tenho uma testemunha: você. A prova que precisava de que não sou louco! Enfim tenho total convicção, sou de fato um vidente!

– Sinceramente, eu duvido.

– Como assim? Não foi prova suficiente que…

– Marcos, ver o que os outros não conseguem ver é uma coisa. Isso aqui é… Simplesmente demais. Extrapola qualquer… Marcos, duvido muito que você seja um vidente, um médium, um profeta ou qualquer coisa do tipo. Duvido muito que você seja sequer humano.

A sinceridade atingiu Marcos como uma facada no peito. O sorriso em seu rosto morreu, dando lugar a um semblante sério. Diante essa nova hipótese, Marcos preferia acreditar que era apenas mais um maluco.

– Então? Já consegue nos levar para casa?

– Não! – Marcos foi seco, curto e grosso. Estava irritado demais para ser polido.

Durante o caminho o casal passou por uma lagoa, até aí nada demais. Eles passariam batido se não notassem pessoas (mulheres, homens e crianças com orelhinhas pontudas) tomando banho, até aí nada demais também. O problema era que ninguém usava roupa de banho, todos vestiam vento. Marcos percebeu isso e continuou não vendo nada demais. Já Lorelei ficou horrorizada. Na cabeça dela estava presenciando uma orgia. Marcos notou isso e não gostou do que viu em sua talvez-não-ex.

– Que foi?

– Você não está vendo?! Que putaria!

– Lorelei, vai me desculpando. Mas o que percebo é que a “putaria” está nos olhos de quem vê.

– Como?!

– Sério, você tem que desvincular nudez de sexo. Vendo assim esse povo parece extremamente liberal, mas quer apostar quanto que se for tirar uma média há mais casais fiéis e monogâmicos aqui do que lá em nosso mundo?

Lorelei não pareceu muito convencida. – Onde você tirou essas ideias?

– Já tive experiência com sociedades alternativas. – Lorelei arregalou os olhos ao ouvir aquilo, essa ela não sabia. – Depois eu conto. Vamos tratar de sair desse mundo primeiro.

O lago foi deixado para trás, o casal continuou no caminho de tijolos, pois simplesmente não havia caminho visível melhor a se trafegar. Caminhar por aquela estrada poderia ser muito bem um trabalho inútil. Nenhum dos dois sabia como voltar para casa, a melhor opção ainda era Marcos. Talvez só esperar fosse a melhor solução. Talvez após algum tempo o vidente recobrasse seu dom de teletransporte. Ninguém sabia como aquele poder operava ou qual fonte de energia usava.

Frutos da vida urbana, o casal não conseguia calcular as horas sem depender de celulares ou relógios. Parecia que um bom tempo havia se passado, pois começava a anoitecer. No entanto a noite no Mundo Hippie era diferente da nossa. A noite não era escura, assumia um tom púrpura. Um tom que denotava magia.

Após muito caminhar o casal encontra a primeira pessoa após terem passado pelo bando de elfos naturistas.

A caruagem estava parada próxima a estrada. Os cavalos brancos que a puxavam estavam soltos e pastavam ao redor.

A carruagem era alva, com um design simples. Era perfeita demais para ser real. Qualquer carruagem do plano terreno que fosse acostumada a longas viagens teria ao menos pequenas imperfeições que somadas fariam grande diferença. Aquela carruagem não. Era perfeita.

Uma mulher idosa de cabelos arrepiados comia um pedaço de carne sentada em um banquinho de madeira. Marcos não identificou o que era, mas o cheiro da comida o fez lembrar que há um bom tempo sua barriga estava vazia. Só o aroma exalado por aquele prato já era a coisa mais saborosa que Marcos já tinha provado. Como já percebido antes, os prazeres, seja lá quais forem, no Mundo Hippie eram sempre mais gostosos.

– Vamos perguntar a ela. – Disse Marcos cutucando sua talvez-não-ex.

– Por mim tudo bem. Pior do que tá não fica.

– Minha senhora, dá para nos dizer como… – Marcos queria perguntar como se fazia para viajar de um mundo a outro. Mas de súbito foi acometido com a consciência de que se aquilo era tido como fantasioso no plano terreno talvez também o fosse ali.

 – Quer um mapa? Eu vendo um baratinho.

Um mapa era melhor do que nada. Marcos disse que queria. Logo antes de se lembrar que não possuía dinheiro.

A idosa entregou o mapa. Um mapa sem cores, feito com um papel antigo que mais parecia pergaminho. Marcos se surpreendeu ao se perceber conseguindo decifrar o que ele dizia. Em seu topo havia um nome: Paradísia. Marcos fez cara feia. Achava o nome que havia escolhido para aquele lugar bem melhor que esse. – Sinto muito, senhora. Mas não tenho como pagar.

Lorelei observava a conversa dos dois com uma cara intrigada, olhos esbugalhados. Parecia alguém que estava presenciando algo muito absurdo. Marcos não entendeu o que era. Achou por bem ignorar.

– Claro que tem, todos tem como pagar. Principalmente alguém jovem como você.

A conversa da velha estava começando a ficar esquisita. Com urgência Marcos tratou logo de devolver aquele pedaço de papel a ela.

– Meu preço é o nome do seu primeiro filho.

Alivio.

Marcos achou graça, achou que aquela vovó também era chegada no mesmo tipo de cachimbo que o barbudo fumava. Sem se importar ele solta um nome. Era como se o nome escapasse de sua boca sem que ele fosse senhor de sua própria voz. – George.

Marcos e Lorelei voltaram a trafegar pela estrada de tijolos amarelos. Marcos agora estava munido com um mapa e esperava encontrar uma saída daquela dimensão naquele papel. Durante o caminho sua mente foi cutucada por um detalhe que antes lhe passara despercebido.

– Engraçado, né? – Comentou Marcos a Lorelei em um tom que pretendia ser casual. – Aqui todo mundo fala português. Estamos em outro universo, mesmo assim todos falam nosso idioma.

– Quem você ouviu falar português aqui?!

– Como assim?! O barbudo, a velha que me vendeu o mapa.

– Não vi nenhum português sendo dito, só enquanto conversamos. Inclusive fiquei besta de ver você conseguindo falar esse palavreado estranho cheio de fonemas impossíveis.

Um poder novo.

Marcos Acabara de perceber que estava um pouco mais distante da humanidade.

Tentando não pensar muito naquilo Marcos resolveu gastar suas energias na leitura do mapa. Os desenhos e nomes apareciam de forma não convencional. Pareciam se mover, mudavam de acordo o caminhar do seu dono. Respondiam ao que ele queria encontrar.

O mapa mostrou um ponto que despertou o interesse do vidente.

Um ponto que indicava um local onde o Véu da Realidade era mais fraco.

Duas horas de caminhada depois enfim chegaram. – É aqui.

Sem a aparição conveniente da velhinha nunca teriam encontrado a saída. Pensando bem tiveram até sorte. Muita sorte. Sorte até demais. Sorte a ponto de deixar qualquer um que não estivesse desesperado desconfiado. Eles estavam desesperados. Ao menos quase. Por um momento Lorelei começou a achar estranha a aparição daquela solução mágica. O estranhamento logo fora vencido. O mundo que visitavam parecia bem mágico. Talvez ali esse tipo de coisa fosse normal.

Perto de uma cachoeira Marcos segurou as mãos de Lorelei e se concentrou. Dessa vez teve exito. Estavam de volta ao seu mundo. Ao plano terreno. Mas não tinham muito o que comemorar.

O casal se viu em uma rua movimentada. De repente ficaram cientes do que estavam vestindo. O camisolão. A calça de tecido leve. A ausência de roupa de baixo. O caminhar até a casa de Lorelei durou uma hora e meia. A uma hora e meia mais longa possível. A dupla atraia olhos indignados, olhos debochados, olhos gulosos. Naquele instante eles perceberam que a sensação de nudez dependia muito mais das pessoas a sua volta do que com a quantidade de roupa que usavam. Marcos, por exemplo, não se incomodava de ficar nu em Paradísia. Mas ficar seminu no plano terreno era um martírio.

Finalmente eles chegaram na casa de Lorelei.

Mas cadê as chaves?

Lorelei precisou pedir ajuda a um vizinho. Após mais vinte minutos a porta fora aberta. Vinte minutos tendo que aturar um sorriso malicioso cheio de prejulgamentos podia parecer mais demorado do que vinte horas.

Enfim, a porta aberta, o casal entrou. Puseram as roupas. Finalmente estavam vestidos.

Marcos suspirou aliviado. Lorelei não sentia qualquer menção de alivio.

Marcos tentou fazer uma brincadeira bem humorada. Não conseguiu nada além de uma porta batida na cara.

Talvez-não-ex?

Não.

Ex.

Continua…