As aventuras sobrenaturais de Marcos Mignola – Capítulo 3

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por Alan Cosme

Lorelei ouvia seu ex-namorado relatar sua experiência no mundo vermelho. Feiura, desespero, pavor, trevas, monstros… Marcos contou o quão terrível e agonizante foi passar somente meio minuto naquele lugar. Um ambiente tão carregado que impactou negativamente o vidente como nenhum outro cenário conseguiu fazer antes, mesmo sendo exposto a ele por tão pouco tempo.

Após ouvir o desabafo de Marcos, Lorelei só conseguia sentir uma coisa por ele.

Inveja.

Lorelei foi criada por um avô e um pai que eram muito ligados a crenças espiritualistas. A menina cresceu e se tornou mulher acreditando que era uma médium. Uma pessoa com alta sensibilidade ao sobrenatural. Apesar disso ela nunca viu um fantasma com os próprios olhos, a não ser na televisão, em filmes. A mediunidade de Lorelei era exercida em sessões em que ela incorporava algum espírito ou fazia alguma previsão. Dom bem discutível, as incorporações não passavam de transes que sua faculdade de psicologia não tardou a explicar. As previsões eram pouco certeiras, sendo tão precisas quanto simples palpites.

Sem querer confessar nem para os seus familiares nem para si mesma, Lorelei pôs em duvida seu dom especial. Uma duvida que iria evoluir ao ponto de afastá-la de suas crenças se Marcos não tivesse aparecido em sua vida.

Marcos Mignola era o “super-médium”. Conseguia ver desencarnados o tempo inteiro. Conseguia fazer previsões infalíveis. Conseguia descobrir a vida inteira de uma pessoa com apenas uma passada de olho. Conseguia despachar uma casa como ninguém. Conseguia sentir a energia positiva ou negativa de um ambiente com clareza. Conseguia energizar um copo de vidro ao ponto dele estourar. Conseguia invocar qualquer entidade… Era mais fácil listar o que ele não conseguia fazer. Baliza.

– Você fez uma projeção astral?

– Não! Você não me entendeu! Eu fui para o  Mundo Vermelho dentro do meu corpo. Como em um teleporte. – Marcos não conseguia falar a palavra que vinha a sua mente que melhor definia o ambiente em que estava. Como se o terror aflorasse só pela menção do nome. Por isso ele optou por usar um eufemismo.

– O que é isso, menino? Star Trek? Nunca ouvi falar de médium nenhum com esse tipo de habilidade.

– Juro por tudo que é mais sagrado, pelo amor que nós já compartilhamos um dia. É verdade.

Lorelei ainda não conseguia perdoar Marcos, mas se dissesse que não ficou mexida com aquela declaração estaria mentindo.

– Vou ter que pesquisar na literatura se já aconteceu caso igual. Eu te ligo avisando quando encontrar algo interessante.

– Obrigado.

Marcos estava abrindo a porta para deixar a sala, quando segundos antes de sair Lorelei diz:

– Marcos, não precisa mais marcar consulta. Eu posso te receber lá em casa.

O coração de Marcos comemorou. Ele tentou se conter, mas aquela comemoração subiu ao seu rosto e se expressou na forma de um sorriso.

****

– Como ele podia saber sobre tanta coisa de minha vida?!

– Facebook, orkut, google, msn…

Iolanda estava em uma delegacia conversando com um policial. A medida que o homem falava mais ela se sentia estupida. Seu ceticismo que sofrera um abalo após a consulta com o vidente estava regressando com mais força do que nunca.

– Ele tirou quanto da senhora?

– Mil reais. – Disse Iolanda enquanto seu rosto ganhava um tom avermelhado. Uma mistura de raiva por acreditar ter sido enganada e um pouco de vergonha por se considerar inteligente e mesmo assim ter caído em um truque bobo.

– Acredite, você não foi a vitima mais lesada desse canalha! Ele tem um histórico corrido. Indo de pequenos golpes até agressão física. Isso sem contar sua passagem em um manicômio. Deve ter ficado maluco de tanto enfiar droga no rabo! – O policial se empolgou no discurso, algo que se arrependeu logo em seguida. – Desculpe, senhora. É que eu simplesmente viro bicho só em pensar nesse homem solto por aí.

– E não podemos fazer nada?!

– Infelizmente por enquanto não. Mas quanto mais gente ficar a par desse embusteiro melhor.

Heitor Sacramento é delegado. Com quase cinquenta anos de idade, ele era careca e exibia no rosto um cavanhaque. Não era muito forte, mas poucos tinham coragem de encará-lo. Isso era devido a sua feição de “poucos amigos”.

Assim que Iolanda deixou a sala Heitor pôde conversar com o escrivão, que era um grande amigo seu. – Coitada, mais uma.

– E você nem sabe da última. – Comentou o escrivão. – Semana passada esse tal Marcos se envolveu com um incidente em uma casa de campo. Uma história super mal contada. Enfim, só sei que o danado conseguiu explodir a casa. Literalmente.

– Jesus! Mas esse homem é uma ameaça! E ninguém prendeu o sacana?!

– Ninguém conseguiu provar nada. Acabou que o crime ficou por isso mesmo.

– O filho da puta tem um santo forte!

O escrivão começou a mexer em seu computador quando foi acometido por uma ideia. – Heitor, você ainda tem o contato daquele bandidinho orelha suja que você liberou semana passada?

– Qual? Aquele com a boca torta?

– Esse mesmo.

– Tenho, por quê?

– A gente não pode lidar com esse charlatão do Marcos legalmente, mas bem que podíamos dar um susto nele, não?

Heitor deu um sorriso malicioso. Nada mais precisava ser dito.

****

Vinícius trabalha no necrotério. Tal proximidade com cadáveres dos mais variados estados de deformação o fez ter certa perda de sensibilidade por coisas grotescas. Seu estômago aguentava presenciar qualquer tipo de mutilação ou ferimento. O curioso era que pouco tempo atrás, antes de escolher seu emprego, ele ficava impressionado só em assistir filme de terror B.

Madrugada, Vinícius preparava alguns documentos em seu computador de trabalho. Ele gostava de trabalhar aquela hora. Gostava do silêncio. Gostava de não ter nenhum colega chato azucrinando sua paciência.

Na sala ao lado ficavam as gavetas de aço onde eram guardados os defuntos. As gavetas estavam cheias, como de costume. A maioria eram indigentes. Só dois foram reconhecidos. Um deles era o cadáver de uma mulher jovem que havia morrido em um acidente trágico e incomum. Na explosão de uma casa.

O nome da falecida era Neide, ao menos era o que constava em seus documentos.

Neide parecia ser bonita quando viva. Morta, suas feições eram de dar asco. Como resultado da explosão metade do seu corpo foi queimado.

A maioria das pessoas não conseguiria fazer piada diante de sua visão, mas como Vinícius foi dessensibilizado ele conseguia facilmente. O corpo de Neide, por algum motivo, só queimou o lado direito. Sendo que o esquerdo estava quase intacto. O mais impressionante era que a divisão entre carne conservada e queimada se fazia presente exatamente no meio. – Ela virou o Duas-Caras! – Disse Vinícius para as paredes do necrotério. Ele não ousaria fazer aquela graça com alguém por perto.

Perdido em seu trabalho Vinícius demorou a tirar o rosto da tela do micro, quando fez isso viu Neide, a defunta, em pé. Como se olhando para ele.

Susto!

Nem tanto.

Quando começou a trabalhar no necrotério os funcionários mais antigos já o advertiram que naquele ambiente era comum ter alucinação. Os céticos diziam que era resultado da mente impressionada, os religiosos acreditavam que eram os fantasmas dos mortos indo embora. Vinícius não se importava em saber qual dessas hipóteses era a correta. O primeiro fantasma que ele viu no trabalho o assustou muito. Mas aí veio o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto… Vinícius foi dessensibilizado nisso também.

Ignorando Neide, Vinícius volta a se preocupar com seu trabalho. Após desviar o olhar ele não mais a veria novamente.

****

Marcos Mignola estava saindo do consultório onde recebeu a consulta psicológica informal de sua ex-namorada, Lorelei. Como não tinha carro, só podia regressar a sua residência pegando um ônibus ou usando o metrô. O vidente sabia dirigir, mas nunca conseguiu tirar sua carteira de habilitação. Sempre perdia no psicoteste.

Após pegar dois transportes Marcos chega em seu bairro. O caminho que ia do ponto onde desceu do ônibus até sua casa passava por ruas desertas e perigosas. Porém, desde que começou a fazer suas tatuagens, o vidente nunca teve problema com assalto. A maioria dos criminosos viam os desenhos em seus braços e se sentiam intimidados e optavam deixá-lo em paz. Marcos não tinha medo e esse foi seu erro.

Três homens que sabiam de seu itinerário o esperavam de tocaia. Como predadores prontos para dar o bote.

Os três usavam máscaras tornando suas identificações impossíveis. Um era magro e alto, outro bem parrudo e o terceiro baixinho e corpulento.

Marcos não ouviu o anuncio do assalto, pois não era um assalto. Não queriam roubar nada.

O soco na boca do estômago fez o corpo de Marcos dobrar no meio. O empurrão fez com que caísse de cara no asfalto imundo da rua. Caído, começou a sessão de chutes e socos. Tantos que Marcos perdeu a conta. Para finalizar uma cusparada volumosa que lhe acertou bem o meio da cara.

– Amigo, você passou por uma guerra?

Marcos ignorou a pergunta impertinente de Alex, o fantasma que praticamente dividia a casa com ele. O vidente pegou seu jogo de búzios, queria descobrir quem foi o responsável por seu linchamento. Os búzios rolaram na mesa dando a Marcos tudo o que ele precisava, um nome. Um nome conhecido.

– Filho da puta! – Colérico, Marcos pega sua mesa por baixo e a joga para cima. Derrubando tudo o que era enfeite que estava no caminho, bagunçando toda a sala.

– Marcos?! – Alex ficou assustado. Em tantos anos de convivência nunca viu seu amigo agir daquele jeito.

****

Heitor Sacramento deu um beijo na sua esposa assim que acordou aquela manhã. Era cedo, tinha que ir trabalhar. Seu filho de cinco anos ainda dormia no quarto. Tendo cuidado para não acordar o menino ele lhe dá um cafuné. Apesar de Heitor ter quase cinquenta ele só virou pai muito tarde, aquela criança era o único filho que teve na vida. Isso o transformou em seu xodó.

Heitor sai da casa e entra em seu Fiat Uno azul. O delegado liga o seu automóvel e segue viagem até a delegacia. Isso fazia parte do seu dia a dia. No entanto, durante o trajeto algo incomum  mudou radicalmente sua rotina.

O delegado olha para o retrovisor de cima e com pavor constata a presença de um passageiro que não havia sido convidado. Um passageiro que se vestia de vermelho e usava chapéu preto. Um passageiro que ele aprendeu a odiar.

O passageiro era Marcos Mignola.

– Desgraçado! – Heitor dá um cavalo de pau e quase causa um acidente. Com o carro parado no meio da estrada o delegado tira do coldre da sua cintura uma arma. A intenção era dar um tiro na cara do vidente. Ele podia fazer isso, a lei estava ao seu lado. Bastava alegar legitima defesa. Mesmo se Marcos não representasse ameaça a legitima defesa estaria valendo. Nesse caso seria uma legitima defesa putativa. Quando o oficial da lei responde com força letal a uma ameaça que não era ameaça, mas que ele presumira ser.

Heitor mira no seu alvo, mas seu alvo não estava mais presente. O vidente tinha sumido. O delegado respira fundo. Aliviado. – Devo estar ficando maluco. – Heitor quase havia se convencido de que estava imaginando coisas quando ao olhar para a rua viu algo aterrador.

O céu estava rubro, as casas e as ruas parcialmente destruídas, como se tivessem jogado uma bomba nuclear na cidade. O mundo havia mudado ou Heitor havia ingressado em um outro mundo.

Um mundo vermelho.

****

Como psicólogo, Afonso Nogueira foi instruído a não se envolver pessoalmente com a história dos seus pacientes. Na maioria dos casos ele seguia essa regra de ouro a risca, mas havia uma exceção. Um caso que ele achava especial em comparação a todos os outros.

Seu paciente emblemático estava atrasado para sua consulta, que ocorria duas vezes por semana. Na segunda e na sexta. Afonso chegou a pensar que ele não viria. Eis que o figura aparece em sua sala.

O paciente vestia sua tipica roupa bufante, isso não surpreendeu Afonso, mas começava a fazer com que ele perdesse a paciência.

Marcos praticamente se jogou no divã e foi logo disparando os últimos acontecimentos. Não poupou nada. Falou sobre o mundo vermelho, sobre o linchamento, sobre a consulta com sua ex-namorada. A medida que ia falando mais e mais Afonso ficava assustado. Temia que seu paciente estivesse se afundando em seus delírios.

– Não, não, não! Esqueça essa outra! É péssimo para alguém receber orientação de duas pessoas com ideias diferentes.

– Se for esse o caso eu bem que podia te largar e passar a me consultar com Lorelei. Ao menos ela não me acha fingido.

– Faça isso. Se você quer pirar de vez e voltar para um manicômio a escolha é sua. Uma psicologa cheia de crendice na cabeça. Puta merda! Tenho dó de seus pacientes.

– Quer saber acho que vou fazer isso mesmo! Perdi muito tempo da minha vida achando que eu tinha algum problema quando na verdade eu tinha um dom especial.

Afonso precisou respirar fundo antes de continuar a falar. – Mas que beleza de dom especial! Por causa dele você é brigado com sua família e vive solitário.

– São provações que…

– Não comece a racionalizar! Ao se perder na imaginação a coisa mais absurda passa a ser vista como se fosse lógica.

Um minuto de silêncio constrangedor. Marcos não sabia o que dizer. Afonso também não.

– Vamos fazer uma coisa. Quero uma série de exames. Começando por uma tomografia. Vou virar seu cérebro do avesso até encontrar a causa do seu “dom”.

Querendo provar seu ponto de vista Marcos soltou uma última cartada. Contou sobre o que ele fez com o delegado Heitor. De como o lançou no mundo vermelho.

– Sonho lúcido. Você está com dificuldade em distinguir sonho de realidade.

– Não. Quer saber, eu posso provar!

Marcos tentou ativar seu dom. Tentou expandir sua sensibilidade até que sua vontade alterasse o mundo a sua volta.

Nada aconteceu.

Talvez o vidente estivesse nervoso demais com a discussão para ativar o seu poder.

Ou talvez Afonso estivesse certo.

Após a consulta, de volta a sua casa, Marcos foi tomar um banho. Nu, em frente ao espelho. Marcos examinava todas as tatuagens que ao longo de sua vida foi imprimindo em seus braços. Olhou para o sol de sorriso macabro no ombro direito. Olhou para a fênix de duas cabeças no antebraço esquerdo. Olhou para a representação de Krishna, Buda, Oxalá e de Jesus. Olhou para a estrela de Davi, para as sephiroth da Cabala e por fim para o olho dentro da estrela de quatro pontas estilizada.

Pela primeira vez sentiu a mesma reação que seu pai sentia ao ver aqueles desenhos.

Ao tomar banho Marcos começou a esfregar os braços com vontade até a pele ficar vermelha.

Por mais que esfregasse a sujeira que queria tirar não saia.

Continua…