Velas

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floresta-manifestoHavia faltado luz naquela noite e, quase como num passe de mágica, a família se reunia ao redor de sua lareira para contar algumas histórias. O problema era que, sem contar os problemas dos filhos no colégio ou o que havia ocorrido na vizinhança, os assuntos se esgotavam muito rápido na casa dos Santana. Para piorar, a família ia bem nos negócios. Ninguém passava dificuldades e os velhos conselhos de Nelinho não poderiam ser admirados ao calor do fogo. Sem televisão, as discussões entusiasmadas sobre o mais novo atentado em solo internacional não era discutido com um ou outro argumento relevante por falta de informações novas. As crianças eram as mais animadas para ouvir o pai contando sobre quando serviu no exército, apesar de não ter enfrentado nada de muito significante, ou suas opiniões sobre os políticos que marcaram sua época. Elas adoram essas coisas, pensava Nelinho. Naquela hora, porém, os pequenos reivindicavam alguma história de terror.

– Nos surpreenda, papai. As histórias do colégio são as mesmas de sempre. Temos a loira, o compasso, a menina do corredor. Queremos nos assustar. Novidade, pai. Sem aquelas que você ouviu no seu tempo.

– Hum – pensava Nelinho – uma história de horror? Já não tenho mais tantas no meu arsenal. A não ser que queiram ouvir a vez que quase perdi a sua mãe. Aquilo, sim, foi terrível e assustador.

Aquilo foi o bastante para Carolina sorrir do outro lado e também fazer coro às crianças:

– Conte a elas aquela história de seu amigo, Ne.

– Ah, eu não sei se passou tempo o bastante para um dessas. Além disso, eu nem vou me lembrar dela com tantos detalhes.

– Conta essa, pai.

– Sim, conta.

– Está bem. Mas nada de fugir para nossa cama mais tarde com medo dos trovões ou algo do tipo, hein?!

– Prometo.

– Eu também.

– Certo.

– Acho que deveria começar com “Era uma vez”, já que, como o escritor John Connolly sentenciou uma vez, todas as histórias deveriam começar assim. Portanto:

“Era uma vez um homem por volta de seus quinze anos que decidiu fazer uma das piores coisas que poderíamos inventar nessa idade: apaixonar-se. Chamava-se Felipe. Seus pais haviam se separado já havia cinco anos e ele era obrigado a comparecer judicialmente uma vez a cada quinze dias na residência do pai, que morava em uma residência afastada em São Miguel. Naquela época, as coisas não eram tão desenvolvidas quanto agora e as casas eram um pouco mais precárias: os muros eram quase nulos, a maioria delas era de madeira, quando alguém chegava era possível ouvir os passos ao redor da casa, pois não era bem um jardim, mas um acumulado de britas que formava a entrada. Felipe odiava o local. Não gostava de ir para lá e sempre via coisas estranhas quando acordava no meio da noite. Certa vez, quando seu pai e madrasta viajaram, viu um grande vulto na sala. O vento era outro que mexia com a mente do rapaz. Não tinha amigos no local até a chegada de Roberta, uma garota que se mudara também há pouco. Era óbvia a atração dos dois, principalmente, por tratar-se de duas figuras deslocadas no meio em que viviam. As idas para São Miguel não afetavam mais tanto Felipe e ele até esperava moderadamente as visitas, apenas para conversar com Roberta. No alto de seus dezessete, os dois foram para a cama pela primeira vez e ela comunicou algumas semanas depois que estava grávida. A gravidez apavorou Felipe, que pensou em fugir das responsabilidades, mas assumiu todas as funções que se esperavam dele.

Nem chegaram a completar três meses e Roberta perdeu o bebê. Mas os pais de Felipe eram abonados e a paixão quase louca da garota fez com que mentisse e insistisse que ainda estava grávida. O rapaz, naturalmente, descobriu semanas mais tarde e nunca mais olhou para ela. A moça enlouqueceu. Não quis viver sequer um só dia longe de seu amado. Naquela noite, Roberta se dirigiu pela primeira vez a um centro satânico que descobriu na cidade de São Miguel. O local havia um cheiro meio estranho, enjoativo, várias raízes de plantas podiam ser vistas à volta dos frequentadores e havia o som constante de uma clarineta que daria calafrios em qualquer um. Ela nunca mais tentou nada com Felipe, mas nunca o esqueceu. Foram se encontrar anos mais tarde, quando os dois estavam fazendo a mesma faculdade.

Eu era amigo dele na época e de sua namorada. Ele era um pouco reservado quanto à história de Roberta e nunca fui bem informado do que havia acontecido para ele não visitar mais o pai. Eu me lembro detalhadamente da primeira noite que a vi. Estava chovendo e nos divertíamos no bar perto da faculdade, onde reuníamos nossa turma. Felipe, então, do nada, ficou branco. Como uma parede que ainda estava sem acabamento. Até havia algumas manchas, ali no meio, que lembravam um rosto, mas a branquidão desviava a atenção do resto. Ela veio nos cumprimentar naquela noite. Meu amigo havia ficado sem voz para poder fazer os devidos procedimentos de apresentação, mas isso não pareceu incomodar Roberta que logo estendeu a mão para Juliana, namorada de Felipe. Ela foi tão simpática que me lembro de não ter entendido a razão da irracionalidade de meu amigo naquela hora. Conversava alegremente com todos da nossa mesa, contava suas experiências na faculdade e sua saída da antiga casa. Ainda elogiava muito Juliana, principalmente, a textura e cor do seu cabelo, alisando-o. Minha amiga recebeu um telefonema naquela noite. Só se ouvia a respiração pesada no outro lado da linha. No outro dia, Roberta ligou para ela e sentenciou que era melhor ela ficar longe de Felipe enquanto era tempo. Juliana perguntava para ele o que estava acontecendo, mas ele sempre desconversava.

Começou a ter pesadelos de madrugada. Nos sonhos, ela sempre era perseguida por Roberta que era vista com um grande amuleto proferindo maldições contra Juliana e indo embora com Felipe. Nunca irá ficar com ele, era o que ela nos dizia ouvir. Os gritos agudos e sonoros de Roberta dentro dos sonhos passaram a atormentar Ju. Ela entrou em depressão, não dormia mais do que uma hora ou duas com medo de seus sonhos, e não saiu mais conosco. Só fui descobrir depois porque nossas festas não contavam mais com a presença dos dois. Nas semanas seguintes, os pesadelos foram se intensificando: espécies raras de anfíbios e outros bichos peçonhentos foram sendo inseridos aos sonhos de Juliana, que nessa altura já andava com olhos vermelhos pela falta de sono. Às vezes, encontrava-se em um grande ninho de cobras, algumas saindo de sua boca e seus olhos – momento em que acordava; outras delas, pensava estar acordada e via Felipe a observando com suas pálpebras minimamente levantadas; que dava uma sensação de desconforto. Acordava quando via Roberta parada na porta. A tia de Felipe também era mística e chegou a ligar para os dois perguntando se tudo estava conforme os conformes. Disse que alguma força de magia negra estava sendo usada contra ambos e que ela tentava inverter o feitiço. Sentenciou que, até o final do ano, caso obtivesse êxito, tudo voltaria ao normal. Perguntou se alguém não havia levado algum objeto pessoal de minha amiga para poder usar de vingança. Juliana sempre foi cética, mas não sabia mais no que acreditar e lembrou-se do episódio com as mexas de cabelo no dia que conheceu Roberta. Nunca havia visualizado Felipe tão inquieto. Eu e meus amigos fomos saber mais sobre a história cerca de dois ou três anos mais tarde. A tal garota havia feito uma grande maldição que não atingia Felipe, mas todos que o amavam. Seu pai morreu em sua antiga residência em São Miguel, o que fez Felipe nunca mais retornar ao local. E a relação de Juliana e Felipe nunca mais foi, de certa forma, a mesma”.

– O que houve com eles, pai?

– Separaram-se alguns meses depois.

– E os pesadelos?

– Terminaram. Mas ela precisava desse afastamento definitivo para voltar a ter uma vida. A coisa mais fatal que pode existir é o amor.

– Mas pai, e Roberta?

– Aí está o grande fato da história: ela sumiu. Ninguém sabe o que aconteceu com ela. Alguns de nós fomos tentar desvendar seu paradeiro, mas a casa de São Miguel está abandonada e ninguém nunca ouviu falar da menina. Na Faculdade, ela não apareceu mais e eles não querem dar maiores informações sobre o caso.

– Nossa.

– Pois é. Essa história me dá uma espécie de abatimento até hoje.

– Conta outra história, papai.

– Não, olhem a cara de sua mãe. Já está na hora de irem para cama. Vamos lá.

A luz voltou no exato momento em que a chama da última vela começava a perder o seu tom. Naquela noite, Nelinho sonhou algo que há muito tempo não sonhava: estava em um grande ninho de cobras.