Nossos mortos extraordinários

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mortos-destaqueCom a hipótese da morte do senador José Sarney, criou-se um verdadeiro evento na internet, onde muitos comemoravam o estado de saúde crítico do ex-presidente da república. Sem tentar criar comparações impensáveis, essa ótica acaba nos trazendo uma pergunta perene e pertinente ao momento: como nos sentimos com uma determinada morte histórica? Seria censurável, por exemplo, que a morte de Pinochet fosse exaltada por uma classe que sempre foi perseguida e humilhada pelo ditador? Thatcher, que foi responsável por um rastro de desemprego e caos na Inglaterra, em nome de um neoliberalismo que romanceava uma justiça para os ricos, deveria ser sentida por eles que sofreram em suas mãos? Ou, talvez, apenas ignorar o caso seria o bastante? Afinal, apesar de figuras históricas opressivas, são humanos. Mesmo que alguém levante a voz o suficiente para afirmar que eram monstros confessos.

Essa perspectiva acaba me lembrando de evangélicos e religiosos mais fanáticos que comemoraram a morte de Saramago e deram graças aos seus deuses pelo câncer de Hitchens. O que nos afastaria dessas pessoas que criticamos tanto? Quando passamos a ter um pequeno sentimento de justiça com a morte de alguém isso nos torna tão desumanos quanto eles? O próprio Hitchens, defensor dos direitos humanos e que possuía um caráter tão cultuado, desabafa que o problema de uma morte antecipada era não ter a oportunidade de escrever obituários para vilões como Kissinger. A pergunta acaba incluindo uma questão paralela parecida com aquela que se alguém voltasse no tempo certamente seria responsável por mudar alguns eventos históricos. Como o nazismo, por exemplo. Assassinar Hitler antes que ele pregasse a famosa e a bárbara solução final. Observem que avançamos contra um assassino com o pior que nossa mente conhece: o próprio ato de matar.

Numa análise mais simbólica, o processo passa a ser compreendido com um pouco mais de clareza. De certa forma, Sarney, assim como Maluf, representa o que de pior sobreviveu da transição militar à democracia brasileira. Há um pensamento popular infantil de que morrendo esse “símbolo” da política ultrapassada e corruptiva tudo se reestruturará conforme ansiamos. Algo que, inclusive, espalha-se por comunicadores que insistem na tese: “… e o Sarney ainda lá”. Como se fosse o maior problema do Brasil desde, bem, sempre.

Como definimos quem são as pessoas que, ao invés de nosso luto, merecem a nossa ironia ou o nosso contentamento? Responsável por um número x de mortes ou ter sido o responsável pelo sofrimento de milhares de vidas? Acho justo. E ser um símbolo da corrupção e troca de favores o enquadra na questão desumana ou apenas aponta para uma fraqueza individual? Não sei responder. Acho que, no final das contas, a frase definitiva sobre esse ponto segue sendo a de Millôr: “esses mortos extraordinários de que estão me falando decididamente não são os vivos que conheci”.

by Andrey Lehnemann