Foram as últimas palavras.
Por alguns milésimos de segundo, ela se ateve a, desgostosa, sentenciar as findas letras como ineptas ao momento. Era impressionante como, mesmo esvaindo em sangue, repousando pesarosamente o corpo no chão e embaçando as vistas, ela se ocupara de amargar aquelas palavras como se a boa morte dependesse de uma frase bem construída, talvez uma dramática oração ao modo Mia Couto, ou engenhosamente García.
Antes daqueles instantes se tornarem eternos e a faca rasgar a mocidade daqueles 29 anos, ela viu desaparecer diante de si o desejo de um dia escrever para o mundo, cravar no disparatado falatório uma face vocabular insuflada de mudanças, nem que fosse por meio de um gracejo. Naquele fim, ela só queria…
***
Magoados, eles se agrediram, se odiavam de segundo a segundo, inversamente, mas na mesma intensidade que o amor, em seu estado físico de sufocado fervor.
– Mas você me traiu. E não foi com um ou outro, foi com um cara casado, que tem filhos. Percebes o que te tornastes… Uma puta. Fizeste que nem meu pai fez com a minha mãe, nem ligou e simplesmente destruiu uma família.
Com pausas atravessadas, ela lamentou:
– E… Eu sei.
– Não sabe, porque senão não tinha feito. Eu… Eu to com nojo, sabe. Não consigo nem te olhar. Uma piranha. … Piranha! Sai dessa casa que eu não quero mais olhar na tua cara. Mentira, dizia que me amava, e fazia amor comigo pensando em outro. SAI DAQUI!
– Por.. Por favor, não tenho para onde ir. Me deixa ficar.
– Não. Mereces a rua, vai dar teu jeito por ai. Eu não mereço isso. Me diz, o que foi que eu te fiz para merecer isso?
– Na… Nada. Por… Por favor, não me deixa na rua. E… Eu te amo.
– Não ama porra nenhuma.
– Am… Amo sim.
– EU NÃO AGUENTO MAIS!!! Quantas vezes eu disse…
Sem pensar, ela pegou a faca. Apontou decidida para o braço esquerdo e um silêncio pairou pesado pelos segundos restantes. Nos olhos de ambos, uma raiva atravessava as paredes e fazia o mundo ouvir com nitidez a cólera que os abatia, a doença dos amantes. Enquanto pressionava a lâmina no pulso, ela suspirou diversas vezes, inexata. Se alguém lhe perguntasse do porquê de afiar a morte, daria de ombros, insípida, tal qual sua existência. O amor chegava às vias, à intermitência do que fora, antes mesmo de se consumar.
Ao longe, um vento disfuncional fazia os lençóis abertos no trapiche dançarem como se descobrissem os pés pela primeira vez. Enquanto promoviam o balé gratuito, eles se beijavam como se tivessem retornado de uma longa e incompreensível estada um do outro distantes. … Ocupando-se de estancar o sangue das mãos, ele a olhou mais uma vez e em um último esforço de existir, ela o ouviu dizer – Eu te amo!
by Mia Marques