Enredo, Personagem e Realidade…um brevíssimo pensamento acerca desses elementos nas obras de ficção

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Pensamento
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Saudações, caro leitor! A literatura nos fascina, afinal se estou escrevendo em um blog literário e você o visita é por causa disso, contudo você já parou para refletir sobre os aspectos técnicos dessa maravilhosa produção humana? O ofício do escritor, ao contrário do que pensa o senso comum, é tão cheio de detalhes que um pouco de conhecimento deles já deixa a experiência da leitura mais prazerosa, digo por experiência própria. Obviamente, também, nos faz admirar mais aqueles que se dedicam à nobre profissão. Então, o que você acha de conversamos brevemente sobre Enredo, Personagem e Realidade, visto que são questões recorrentes quando o assunto é Ficção? Caso aceite o convite, puxe uma cadeira e vamos em frente…

Primeiro, comecemos debatendo o que é enredo. Minha pretensão é esclarecer um equívoco bastante comum entre alguns leitores que é a confusão entre o conceito de história e enredo. Como o conceito de história não é o fundamental aqui, sejamos breve em sua definição:

História:

1. Narração ordenada, escrita, dos acontecimentos e atividades humanas ocorridas no passado. 2. Ramo da ciência que se ocupa de registrar cronologicamente, apreciar e explicar os fatos do passado da humanidade em geral, e das diversas nações, países e localidades em particular. 3. Os fatos do passado da humanidade registrados cronologicamente. 4. Ramo da ciência que se ocupa com a natureza animada e inanimada. 5. Tratado acerca da origem e desenvolvimento de uma nação, ciência, arte etc. 6. O futuro, considerado como juiz das ações humanas: A história o julgará. 7. Biografia de uma personagem célebre. 8. Exposição de fatos, sucessos ou particularidades relativas a determinado objeto digno de atenção pública. 9. Narração de aventura particular.10. Desavença, questão, disputa.

Fonte: Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa.

Como vimos, a história é um conjunto de fatos narrados, dando uma definição geral. Entretanto, quando colocamos a literatura de ficção sob o holofote, notamos que a sua formação vai muito além disso. Nela há uma arquitetura do tempo e espaço que pode ser conduzido ao bel-prazer do narrador. Muito provavelmente você já deve ter lido contos ou romances em que a história começa por uma cena que se mostra cronologicamente o final (in ultima reslatim que significa “a última coisa”) de uma série de eventos ou uma situação intermediária (in media res latim que significa “no meio das coisas”), certo? Então, é o enredo que confere o poder de tornar tal coisa possível ao narrador. Se formos pensar sobre a própria palavra enredo, sem a ambição de fazer etimologia, podemos chegar à ideia de algo “em rede”. O ponto que atingimos não está errado, levando em consideração que o enredo é o que liga vários componentes e gera o que será a realidade da ficção.

Entre os recursos do enredo, estão: foco narrativo (primeira pessoa/segunda pessoa), focalização (homodiegética/heterodiegética/autodiegética, onisciente/restritiva, interna/rxterna e interventiva/neutral), anacronia (analepse/prolepse), anisocronia (elipse/cena), entre outros que irei me ausentar de listar devido ao meu conhecimento ainda escasso. Abaixo, irei elucidar um pouco cada recurso citado.

Foco narrativo: representa o narrador, uma entidade fictícia que não se identifica com o autor, embora a sua voz possa se intercalar com a dele.

  • Primeira pessoa: quando o narrador participa direta ou indiretamente das ações – narrador-personagem.
  • Terceira pessoa: quando o narrador não participa das ações – narrador-observador.

Focalização: consiste num dos modos de regulação da informação na ficção, tem uma natureza eminentemente intelectiva, podendo modalizar-se no plano afetivo e ideológico.

  • Homodiegética/Heterodiegética/Autodiegética: na focalização homodiegética, o narrador é uma personagem participante na história que narra, enquanto na heterodiegética o narrador não é uma personagem. A autodiegese acontece nos casos em que o narrador é o protagonista.
  • Oniscente/Restritiva: na focalização onisciente, o narrador penetra no intimo da alma das personagens, nos fazendo conhecer as suas motivações, minúcias do comportamento, sentimento, pensamento, podendo chegar até a antecipar algo, enquanto na restritiva os fatos são passíveis de várias interpretações justamente porque não conheçamos nada além do que se mostraria aos nossos olhos (em uma situação comum).
  • Interna/Externa: quando a focalização é interna, o narrador demonstra conhecimento do ponto de vista das personagens, como os acontecimentos repercutem emocionalmente nelas e quais relações estabelecem com as demais personagens, já na focalização externa apresentam-se os aspectos exteriores das ações como alguém que ouve e vê superficialmente.
  • Interventiva/Neutral: a focalização interventiva é marcada pela presença de juízos, comentários, divagações etc, do narrador acerca da matéria que é narrada, enquanto a neutral (algo raríssimo, para não dizer impossível) acontece quando o narrador tenta dissimular-se e apagar-se.

Anacronia: é uma palavra que provém do grego ana– contra e chronos – tempo e diz respeito às alterações entre a ordem dos eventos da história e a ordem em que são apresentados no discurso.

  • Analepse: ocorre quando há recuo no tempo.
  • Prolepse: ocorre quando o narrador antecipa acontecimentos ou informações.

Anisocronia: é uma alteração na duração da história narrada que regula a relação entre o tempo da história (segundos, minutos, horas etc) e a extensão do texto, divida em linhas e páginas.

  • Elipse: acontece quando o narrador “salta” determinada parte da linha cronológica, causando um avanço do tempo.
  • Cena: acontece quando o narrador, visando salientar um episódio, aparentemente ausenta-se em uma tentativa de reproduzir um discurso real e retardar o tempo.

Passemos agora a pensar acerca da relação entre enredo e personagem. Essa relação é uma via de mão dupla, pois o modo como as personagens são apresentadas afeta a nossa percepção delas e consequentemente da história. Um foco narrativo em primeira pessoa tende a nos carregar para uma perspectiva marcadamente subjetiva, enquanto a terceira pessoa, inversamente, tende para um discurso mais impessoal. Todavia, em ambos os casos, é possível uma alternância entre uma posição mais ou menos interventiva. Quanto à focalização neutral, honestamente, desconheço uma obra em que não haja interferência do narrador na estruturação da realidade ficcional.

Tendo em conta os possíveis efeitos de sentido no texto, dependendo de como seja o foco narrativo, como leitores podemos conduzir a leitura com maior sensatez, sem fazer exigências incabíveis, principalmente por estarmos falando de ficção (objeto construído para nos transportar a uma realidade que não é a nossa). Provavelmente, você deve estar pensando o que seriam as tais exigências incabíveis de que falei, então vou explicar. Sabe quando uma personagem é o responsável pelos relatos em um romance ou conto? Agora imagine um leitor que ficasse cobrando esclarecimentos sobre tudo e reclamasse veementemente se o desfecho deixasse algo em aberto. Agora, eu lhe pergunto: quando uma visão particular do que quer que seja foi absolutamente nítida? A possibilidade de múltiplas interpretações é a prova da presença de um olhar incapaz de chegar ao cerne da mente do outro. Enfim, quando a narração é claramente desenvolvida para o subjetivismo, é uma atitude ingênua querer que ela atenda a todas as nossas perguntas.

Neste ponto, cabe citar o que o crítico literário Antonio Candido (2005, p.60) disse: “[…] na vida, a visão fragmentária é imanente à nossa própria experiência […] No romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor […]”. Simplificando: a imprecisão das coisas é natural na vida, mas sem obrigatoriamente servir a uma razão pré-estabelecida, porém na ficção ela atende a um propósito fixado pelo escritor. Se o que o escritor almejou estabelecer ao escrever é de fácil identificação ou não, é um problema que se configura diferentemente de caso para caso. O importante é sempre lembrarmos que “[c]onclui-se, no plano crítico, que o aspecto mais importante para o estudo do romance é o que resulta da análise da sua composição, não da sua comparação com o mundo.” (Ibid., p. 75)

Se na realidade concreta o conhecimento é de natureza fragmentária, como mencionado anteriormente, na ficção “[…] essa natureza é uma estrutura limitada, obtida não pela admissão caótica dum sem-número de elementos, mas pela escolha de alguns elementos, organizados segundo uma certa lógica de composição […]” (Ibid., p. 60). Pelo trabalho do escritor ser, dispondo apenas de seu engenho humano, produzir uma realidade através da manipulação linguística “[…] tocamos numa das funções capitais da ficção, que é a de nos dar um conhecimento mais completo, mais coerente do que o conhecimento decepcionante e fragmentário que temos dos seres.” (Ibid., p. 64) Antes de prosseguirmos, friso que a literatura não é uma forma de conhecimento mais completa por ser de fácil deciframento, mas sim por ser uma composição de palavras. Diferentemente de nosso mundo onde há uma enxurrada de dados sem sistematicidade, ainda mais na esfera psicológica. Como não tomar consciência, diante dessa constatação, do titânico peso que a arte literária, assim como as demais artes, tem em nossas vidas? Como diz um pensamento atribuído a Friedrich Nietzsche, o célebre filósofo alemão: “[t]emos a arte para que a verdade não nos destrua.” O que seria a verdade a que se refere Nietzsche? Posso deduzir que seja o fato de que existimos em falta, carentes de uma visão totalizante que alcance os mais escuros recantos do espírito humano.

Pela sagacidade analítica do escritor, cujos olhos e mente são como bisturis revelando o que há de mais profundo no homem, temos a chance de viver mais de uma vida. Enxergarmos através de outros olhos materializados por “[…] uma escolha e distribuição conveniente de traços limitados e expressivos, que se entrosem na composição geral e sugiram a totalidade dum modo-de-ser, duma existência […]” (Ibid., p 75), eis o que torna a ficção tão admirável e as personagens cativantes. Concluindo, peço que você, caro leitor, deixe as suas opiniões sobre a nossa conversa. Abraço!

Referências:

E-Dicionário de Termos Literários. Disponível em: <http://www.edtl.com.pt>. Acesso em: 9 ago. 2013.
CANDIDO, Antonio. A Personagem do Romance. In: ______ et al. A Personagem de Ficção. 11ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005
A Focalização. Disponível em: <http://www.oziris.pro.br/enviados/201252385011.pdf>. Acesso em: 9 ago. 2013.
Infopédia – Enciclopédia e Dicionários Porto Editora. Disponível em: <http://www.infopedia.pt/>. Acesso em: 9 ago. 2013.