Doutor… quem?

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O ano era de 1930. Vargas havia acabado de entrar no governo através de uma revolução que não teve um disparo de arma de fogo. Porto Alegre estava em completa festa com o fim da república do café com leite e os varguistas tomavam as ruas. Apenas uma criança não dava bola para o que estava acontecendo nas ruas, pior, não entendia o motivo de tanta algazarra. Muito por sua situação. Seu pai não queria revelar direito qual era o seu problema, mas sempre chorava ao vê-la. Havia perdido o cabelo semanas atrás. Sua mãe havia fugido de casa um dia depois de um médico vir atendê-la. As coisas pareciam fazer sentido, mas a jovem se sentia incerta. Sentia falta, além de tudo, das histórias que sua mãe contava ao pé da cama. Achava que ela havia fugido por sua culpa. Ela deveria ter feito algo. Rezava todos os dias para que alguém a trouxesse de volta. Chegou a procurar qual seria o nome de seu anjo da guarda para ser mais específica. Entrava dia e saia dia: lá estava a pequena prometendo estudar mais, comer o que seu pai mandava, afirmando que iria à missa e faria qualquer coisa apenas para ver a mãe de novo segurando sua mão. Naquele dia, ela encontrou um de seus livros favoritos no chão. Chamava-se O Fim de um Verão, de uma escritora britânica chamada Amelia Williams. Dormiu, abraçada ao capítulo onze, seu favorito, mais uma vez sonhando com seu anjo da guarda, clamando por ajuda.

As comemorações nas ruas abafaram o som alto que vinha se intensificando cada vez mais até ganhar forma no quarto da jovem. Era uma cabine telefônica azul, mas daquelas que só havíamos visto em filmes. Kátia tentava se encobrir o máximo que podia com seus lençóis, tapando a cabeça, e olhando de esguelha de vez em quando, para ver o que sairia daquilo. Observou um homem de óculos escuros claramente maiores que sua cabeça e uma mulher que parecia analisar atentamente onde estavam. Ambos pareciam tão perdidos quanto ela. O estranho homem foi o primeiro a falar.

– Brasil!!! Bem, Rio Grande do Sul, bem, Porto Alegre. Você pode ouvi-los, Clara? Essas pessoas lá fora? Será carnaval? Não estou vestido apropriadamente. Bem, era melhor nem estar.

– Doutor, acho que você não percebeu que temos companhia.

– Olha, é mesmo, que falta de educação a minha. Olá pequena garotinha assustada, qual o seu nome? – dirigia-se o estranho homem para Kátia.

– K… K… Kátia.

– Olá, K…K…Kátia. Espero que não estejamos interrompendo nada – pronunciou o tal Doutor, analisando o local com um estranho aparelho que brilhava.

– Você é meu anjo da guarda?

– Na verdade, não. Eu nem tenho visto um há uns tantos milhões de anos. Eu sou o Doutor!

– Doutor… quem?

– O único. O Doutor. Foi você quem me chamou?

– Acho que sim. Quer dizer, eu esperava meu anjo.

– Desculpe, pequena. Anjos são mais difíceis de atender chamadas. Mas, então… no que posso ajudá-la?

– Eu não sei se você pode. Eu queria que minha mãe voltasse. Eu sinto falta dela, e de suas histórias. Ela me contava sobre todos os tipos de coisas, sabe? Parecia me levar para tudo que é tipo de lugar. Uma vez ela me contou a história dos nossos anjos e como eles realizavam os desejos mais impossíveis dos nossos corações. Por isso que tentei chamar o meu. Minha mãe deve estar perdida.

– O que houve com ela? – perguntou Clara.

– Um dia, depois de o médico vir me visitar, ela foi para o trabalho e não voltou mais. Até o meu pai chora muito por isso. Mas acho que ele chora por qualquer coisa. Só de olhar para mim, ele não se segura, sabe?

Enquanto Clara sentava ao lado de Kátia para terminar de ouvir sua história e abraçá-la, o Doutor analisava-a como se ela fosse uma criatura de outro planeta, encantado. Ele a fitava com uma espécie de arma sônica que parecia fazer um raio-x dela, mas não a incomodava; pelo contrário, adorava a atenção que recebia.

– O que você está fazendo?

– Não pisque!

– Então?

– Dor, esperança, ansiedade, temor, sonhos e disposição.

– Perguntava sobre o que faremos com ela, Doutor. Ela poderia nos fazer companhia.

– Ideia, esplêndida! Podemos caminhar pelas ruas de Porto Alegre. Ah, Clara, você tem que ver os parques. Parques! Pelos meus cálculos, estamos em 1930, no Brasil. Um grande ano para o povo daqui. 1937, nem tanto…

– Doutor.

– … Conheci Vargas. Um grande homem. Podíamos visitá-lo.

– DOUTOR!!!

– Sim?

– Falava sobre outro tipo de viagem.

– Ó, certo. Bem, o que estamos esperando? Allons-y!

– Para onde vocês vão me levar?

– Pense num lugar, qualquer um, e eu a levarei. Eu vi coisas que você não acreditaria e posso fazer você vê-las também.

– Como que iremos para lá?

– Fácil. A TARDIS nos levará.

– O que é uma TARDIS?

– Vê aquela cabine azul? Aquela é a TARDIS.

– Mas não caberão três pessoas ali.

– Bobagem. Pense no maior lugar que já esteve. Pensou? A TARDIS é além do imaginável. Ela é adaptável. Tem a estrutura que eu necessito. Pode ser tanto uma simples cabine telefônica para quem entra nela quanto algo que navega entre o tempo e espaço. Ela pode ser qualquer coisa, ter qualquer coisa. Desde que ela respeite ou obedeça você.

– E se ela não gostar de mim?

– Quem não gostaria de você? Venha!

A boca de Kátia parecia não estar mais em seu corpo tamanho o assombro de quando entrou no lugar.

– Mas…

– É muito maior por dentro, eu sei. Agora se segure em qualquer coisa, pois a viagem pode ser um pouco desconfortável no início. Para onde você quer ir?

– Eu queria conhecer os anjos.

– Excelente ideia. Há muito que não viajo para esse lado do universo. Clara e Kátia, preparem-se para a aventura de suas vidas – garantiu o homem, puxando uma grande alavanca e fazendo o barulho estridente voltar e fazer a cabine desaparecer daquela casa na zona norte de Porto Alegre.

O som voltou a ser ouvido anos-luz de distância. Kátia foi a primeira a desembarcar e antes que pudesse fazer qualquer pergunta, ela viu.

Suas palavras não podiam expressar o que seus olhos visualizavam. Em sua frente, dezenas e mais dezenas de criaturas magnéticas com olhos azuis penetrantes e com penas gigantescas que ondulavam em suas costas, formando o que Kátia definiu como sendo as asas daqueles seres. Brilhavam delicados, milagrosos e majestosos à sua frente. A garota sorria, como nunca antes havia. Ela não escondia sua felicidade. Parecia cintilar tanto quanto os seres que observava. Imobilizada pela dança graciosa que era ritmada naqueles céus. Seus pés pousavam sobre uma flácida composição de partículas sólidas de água. Parecia que os três andavam sobre as águas.

– Esses são os Ággelos – criaturas magníficas que o tempo castigou. Existiam milhares deles, incontáveis, hoje esses são os poucos que restaram. Dizimados, em sua maioria, pelas criaturas mais temíveis do universo. Pouco antes da última grande guerra do tempo, que ainda não aconteceu para vocês, humanos.

– Como se mata um anjo? – indagou Clara.

– Bem, a perda de fé é o que mata um anjo. Enquanto alguém acreditar neles, eles irão respirar. Houve rumores espalhados pelos quatro cantos do universo sobre a destruição de sua linhagem, o que facilitou a morte deles.

– Eles são tão lindos.

– São. Infelizmente já são raros. Todos eles ainda se dedicam aos seus ancestrais e suas memórias – o que ocorre na maioria das civilizações. Esse canto deles não é uma agonia, mas um esforço para lembrar aos outros que ainda vivem. Que ainda há como acreditar.

Uma das criaturas interrompeu o raciocínio do Doutor assim que percebeu o grupo e passou a se dirigir em direção a um dos forasteiros. Era Kátia que visualizava. A garota sentia um misto de ansiedade, temor e curiosidade quando observou aquela figura cintilando em sua frente imponente e, ao mesmo tempo em que cantava de forma ininterrupta, dirigindo-se a ela telepaticamente, apresentando-se. Chamava-se Drikar e não parava de repetir: “humana!”, “humana”.

– Eles são muito apegados a quem ainda crê neles de alguma forma. Deve ter percebido em sua essência. Faça um pedido. Ela irá atendê-lo.

– Ela fala a minha língua, Doutor?

– Ela fala todas.

– Você, você… bem, você pode trazer minha mãe de volta? – arriscou Kátia.

­– Lamento. – parecia pensar o anjo. O destino de sua mãe não está em nossas mãos. É uma decisão dela voltar ou não. Não podemos interferir nas escolhas dos outros.

– Mas ela dizia que vocês podiam fazer qualquer coisa. Qualquer coisa.

– Eu posso lhe dar algo melhor.

– O quê?

– Você não sabe?

– Não. O que?

– Uma vida.

– Mas eu já tenho a minha.

– Ela está expirando.

– Como assim, expirando?

– Desculpe. Mas você está doente.

– Eu não me sinto mais doente.

– Porque você está conosco, agora. E, se quiser, você nunca mais precisará ficar doente. Pelo menos, até chegar a hora.

– Você pode fazer isso?

– Eu posso fazer qualquer coisa.

– Que não seja trazer minha mãe até mim.

– Que não seja trazer sua mãe até você. Mas não se preocupe, ela retornará algum dia.

– Você acha?

– Eu sei.

O anjo começou a acelerar o seu canto e pareceu explodir e ressurgir como uma fênix em frente aos olhos da pequena Kátia.

– Bem, estamos prontos? – interviu o Doutor.

– Eu queria ficar mais. E ela não fez nada. Eu não me sinto diferente.

– Acredite, pequena K.. K… Kátia. Você está.

– É só Kátia.

– E agora, Kátia? Para onde? Os anéis de Akhaten? Você tem que ver aquilo, Kátia. Ou talvez Apalapúcia? Ou talvez Hyspero? Um planeta lindo, afora, bem, os assassinos e ladrões que o habitam.

– Eu estou pronta para ir para casa, Doutor.

– Você tem certeza? Existem galáxias que você precisa conhecer, civilizações inteiras e outras que ainda nem iniciaram. Você pode vê-las todas.

– Meu pai ficará preocupado. E não quero ficar longe dele por muito tempo. Ele precisa de mim.

– Bem, se é assim que deseja, faremos ao seu modo. Clara, voltaremos a Porto Alegre. Prepare suas roupas ou livre-se delas, pois faremos escala no Rio!!!

– Olha você sorrindo como nunca, Doutor.

– São os anjos, Clara. Os anjos.

A TARDIS voltou a aparecer naquela mesma casa da zona norte de Porto Alegre como se não houvesse passado mais do que um ou dois minutos da última vez que estiveram ali. As ruas ainda estavam tomadas pelos varguistas. Mas agora Kátia prestava atenção.

– Você poderá voltar mais vezes para me visitar, Doutor?

– Quem sabe, pequena. O universo é imenso e solitário. Sempre precisarei de companhia.

– E você Clara?

– Talvez. Somos de tempos diferentes.

– Eu nunca me esquecerei de vocês. E você tinha razão, eu não me sinto mais doente.

– Bem, você só precisava de um Doutor. O verdadeiro. Adeus, pequena. Você foi fantástica. Absolutamente fantástica.

O pai de Kátia entrou no quarto no exato momento em que a TARDIS começava a dar a partida. Celso caiu sentado e demorou em se dirigir para a filha que vinha o abraçar como se fizesse anos que o tivesse visto.

– O que, o que, o que era aquilo? – gaguejava o pai de Kátia.

– Era apenas o Doutor. Pai, eu quero que você me ajude a escrever o que estou passando agora.

– E o que é, filha?

– A minha vida, pai.

by Andrey Lehnemann