Como funciona a alma de um poeta I: Da contradição

0

mentira-verdade-destaqueApesar de nunca ter ganhado nenhuma rifa, bingo, promoção de lata de achocolatado ou algo que o valha, considero-me um sujeito de muita sorte pela liberdade que tenho para escrever sobre qualquer assunto (desde que dentro do tema “poesia”) aqui no Leitor Cabuloso. Digo isso porque, no post sobre poesia marginal, vocês leram em alto e bom relevo (vocês leram, não leram?) que o possível assunto dessa semana na coluna seria a poesia beat. Um singelo acontecimento, porém, fez com que eu mudasse todo o rumo do meu texto de hoje. Em vistas disso, pretendo iniciar uma “série” de esboços e devaneios intitulada “Como funciona a alma de um poeta.” Não sei até onde irão e em que ordem aparecerão minhas conjecturas a respeito disso – pode ser que na minha próxima (des)contribuição algo de novo aconteça, a exemplo do evento mencionado, e altere mais uma vez o rumo dos meus textos. De qualquer modo, a intenção desse conjunto de ruminações é bem menos pretensiosa do que o título aparenta. Ora, quem já se viu captar a alma de alguém ou alguma coisa, muito menos de um poeta? Os antigos gregos já sabiam que apreender a alma era coisa complicada, por isso deixavam as estátuas que construíam sem as pálpebras quando representavam os olhos. Sim, “os olhos são a janela da alma”, Capitu quem o diga, não? Bem, estou divagando, eu sei. Mas é essa minha função.

Na saída da faculdade, converso com um amigo do curso de psicologia a respeito de assuntos gerais: abordagens e práticas psicológicas, o preço da coxinha da padaria em frente, o sentido da vida, o sentimento de vazio que permeia a contemporaneidade, o sentimento de vazio no meu estômago por não ter dinheiro para comprar a coxinha, o segredo da existência, etc, etc, etc. No decorrer do nosso diálogo, falo-lhe a respeito de minha oscilante visão acerca do ser humano e do mundo em si.

— Pois é, camarada… às vezes olho ao redor, vejo a humanidade e seus atos e penso que não passamos de animais grotescos, apenas organismos no meio de tantos outros organismos, um apanhado material de massa e podridão. E só. Mas, em outros momentos, penso que não seria justo sermos apenas isso. Deve haver alguma coisa além, uma essência escondida em algum recanto que nos torna algo mais.

Numa espécie de indignação amistosa, meu ouvinte replica:

— Como assim? E a contradição que isso implica?!

465921.jpgAh! A contradição! A contradição, meus caros, é um componente muitíssimo básico para nós poetas. Todos os dias nos é pedido que sejamos definidos, decididos, para escolher um time, um lado, um viés. Ou 8 ou 80. É muito fácil e natural para os poetas viver os dilemas, ser os dilemas, viver em atrito com o mundo e consigo mesmos, transitando entre uma visão e outra, como quem muda de roupa todos os dias – ou quase todos os dias. É certo que, para as pessoas mais pragmáticas, objetivas, diretas, estáveis, “racionais” e cartesianas, parece irrisório e até mesmo impossível que se viva em contradição, nesse negar-afirmar-renegar-reafirmar constante – uma prática esquizofrênica. O ser pode ser aquilo que é, aquilo que aparece, aquilo que parece, aquilo que está por vir. O devir. E só a alma lírica concilia tão bem o inconciliável. O poeta vai além do uso de máscaras ou encenação momentânea de personagens – ele de fato é. Ele vive, realmente, intensamente, naquele instante agora, o que ele se pretende viver, mesmo que daqui a 1 minuto, 1 dia ou 1 ano ele já não o seja mais, mesmo que seja outra coisa. Afinal, o poeta Fernando Anitelli mesmo quem diz:

“Quanta mudança alcança
O nosso ser; posso ser assim daqui a pouco não”.

E, ainda em outro momento:

“Sejamos também a contracapa
Porque ser a capa e ser contracapa
É a beleza da contradição
É negar a si mesmo
E negar-se a si mesmo
É muitas vezes encontrar-se com Deus
Com o teu Deus”.

A poesia não tem a mínima pretensão de ser ciência, de dizer a Verdade absoluta, com “V” maiúsculo. Pelo contrário, o poeta vai se preocupando mesmo com suas “verdadezinhas” e “inverdadezonas”, sem o menor problema de ser contrariado, desmentido, retificado. Afinal, todo poema, no fundo, no fundo, fala sobre o ser humano. E o ser humano, meus caros, é isso aí: contradição.

Poetize!