Autor: Daniel I. Dutra
Editora: Editora Literata
Origem: Brasileira
Edição: 1ª
Ano: 2013
Páginas: 128
Skoob
Sinopse: E se o homem viesse a substituir a mulher por meio da tecnologia? Como seria viver em um mundo onde cada homem possuísse uma mulher perfeita? Uma mulher sempre disposta a satisfazer todas as fantasias sexuais masculinas e que servissem de companhia a homens? Poderia um homem ser capaz de amar uma mulher assim? Estas são as ginoides. Do grego gynē (“mulher”) e oid (“semelhante a”) as ginoides são robôs semelhantes às mulheres. O equivalente feminino do clássico androide. E quanto às verdadeiras mulheres? Como as ginoides transformariam suas vidas? Ginoides as substituiriam no papel de mães? Seriam escravas a serviço das mulheres e cumpririam as tarefas domésticas? Ou mulheres considerariam as ginoides um ultraje ao sexo feminino e se revoltariam com a presença dessas máquinas na sociedade?
Onde comprar? Loja – Editora Literata.
Análise:
A procura por um estado (financeiro, emocional, social, profissional, espiritual etc) estável é um assunto que preocupa demasiadamente algumas pessoas, principalmente em uma época como a nossa onde a suposta felicidade imperturbável é ofertada como consequência da aquisição de diversos produtos transformados em fetiches pelas mídias. Contudo, ao refletirmos acerca da constituição da perfeição (felicidade plena) será que ela ainda é desejável? Deduzo que o questionamento é inevitável, uma vez que, se houvesse verdadeiramente a perfeição e conquistássemos a ela, estaríamos na seguinte posição de xeque: agora, o que farei? Qual o meu próximo passo se não enxergo mais terreno para avançar? Pensando nas prováveis consequências desse problema, caso o homem construísse a mulher perfeita, Daniel I. Dutra montou as peças de sua obra (“A Eva Mecânica e Outras Histórias de Ginoides”) que analisarei a seguir.
- A Eva mecânica:
A história começa in ultima res (latim que significa “a última coisa”), ou seja, pelo desfecho. Tal recurso, naturalmente, desperta a curiosidade do leitor que se vê impelido a percorrer as páginas para a compreensão do estado a partir do qual o protagonista começou a compartilhar um trágico recorte de sua vida. O fato do conto não possuir sequer um diálogo proporciona uma imersão na lamentação do personagem, todavia desde o início as suas palavras são carregadas de um tom tristonho, o que acarretou em pouca esfericidade (desenvolvimento do personagem). Porém, o enredo obtém êxito em tornar o leitor uma espécie de confidente.
- A Substituta:
Por meio do foco narrativo de primeira-pessoa, nesta história conhecemos um protagonista que nutre desejos secretos sem que a sua esposa sequer desconfie. O casamento do personagem que não andava muito bem, diante da suspeita de traição, dissolve-se em um instante de emoção intempestiva que engendra uma pretensa tranquilidade e satisfação dos desejos reprimidos do protagonista. O desfecho é imprevisível. A maior indagação desse conto é em que medida a nossa percepção produz o objeto de que tratamos. Enfim, será que as pessoas são mesmo como vemos ou estamos condenados a viver presos atrás de nossos olhos?
- Ela, a Ginoide:
Esse é o primeiro conto em terceira-pessoa, entretanto ele não representa uma queda no envolvimento do leitor com o livro, muito pelo contrário, ele chega até a se destacar mais que os anteriores. O abuso de crianças, tema que costuma causar mal-estar, é o ponto de partida para o que se desdobra como uma meditação acerca do peso que significa ser dotado de liberdade, ter de tomar decisões e arcar com as consequências sentimentais. Depois da cena de abertura, ocorre uma anisocronia (processo de modificação do ritmo ou da velocidade da narrativa) do tipo elipse (omissão de alguns períodos da história) que irá adquirir sentido no final do conto em uma sequência de ação surpreendente. O pensamento que tomou conta de mim na conclusão foi: o que acontecerá com a vaidade humana se um dia fabricarmos uma máquina capaz de exercer a liberdade? Creio que seria um enorme golpe no narcisismo de nossa espécie.
- A Mulher Imperfeita:
Prosseguindo com o foco narrativo de narrador-observador, acompanhamos no princípio uma cena in media res (latim que significa “no meio das coisas”) em um hospital, após a qual é usada a anacronia (termo grego que provém de ana – contra e chronos – tempo) do tipo analepse (recuar no tempo) com a finalidade, assim como no primeiro conto, de fomentar a ansiedade dos leitores pelas informações subsequentes. Como na maioria das histórias em que máquinas semelhantes a nós convivem conosco em sociedade, nesta também a natureza do que nos torna humanos (um animal que paradoxalmente está acima do reino animal) é posta à mesa. O que é amor? Como compreendemos o que o outro nos diz? Mesmo em tempos de coisificação dos sentimentos, como diria Carlos Drummond de Andrade, perguntas assim são como as sombras de nossas vidas: podemos até tentar fugir delas, mas sempre haverá um raio de luz para fazê-las surgir bem ao nosso lado. Tendo em vista que todas as histórias desse livro se passam em um mesmo cenário, em “A Mulher Imperfeita” ficamos sabendo qual foi o impacto da ciberssexualidade (denominação usada para designar a orientação sexual de quem se relaciona com ginoides) na sociedade, um dado que enriquece o cenário e demonstra a dedicação do escritor ao ofício.
- Veronica Lake Fake:
Voltando para a focalização homodiegética (quando o narrador é um personagem participante na história que narra), o leitor é transformado em cúmplice de um protagonista em fuga ao lado de seu grande amor. A simpatia pelo personagem principal é alimentada pelas penúrias de sua vida que ele nos relata. Contudo, a constância do tom emocional do narrador em consonância com a estrutura do personagem desde o começo da história, assim com em “A Eva Mecânica”, não confere esfericidade ao personagem e diminui as surpresas. O final compensa essa queda no conto.
- A Casa da Dor:
Se “Veronica Lake Fake” usou a focalização homodiegética, mas pecou ao não aproveitar como poderia a narração em primeira-pessoa para demonstrar uma transformação psicológica do protagonista, “A Casa da Dor” é um grandioso sucesso. O texto todo é uma fala do protagonista que é réu em um julgamento e tenta demonstrar todo o contexto relacionado à sua ação ilegal para o júri. Diante disso, o leitor é colocado no posto de juiz. O discurso do personagem é polido, um charme dos grandes vilões, e não reconhece limites morais, mas é justamente essa “libertinagem discursiva” que acaba fazendo-o se chocar com o autorretrato de sua perversão. Definitivamente, a maestria na composição estética do autor tornou aquilo que seria abominável, em uma situação ordinária, em um autêntico banquete de palavras.
- Sabine:
A personagem principal é uma advogada ambiciosa cujo desejo pela ascensão profissional a faz colocar a família em segundo plano frequentemente. A trama poderia ter sido mais atrativa se a protagonista fosse descrita mais internamente, entretanto isso não acontece e torna o texto apático. Sendo franco, reli o conto três vezes para ter a certeza de que não deixei algo passar.
- A Última Mulher da Terra:
Eis o conto que fecha com chave de ouro a obra, mostrando o futuro do cenário arquitetado por Daniel I. Dutra! Em um mundo onde as mulheres supostamente foram extintas e substituídas por ginoides, é descoberta a última mulher que havia sido colocada em estado de criogenia. Como seria de se imaginar, ela rapidamente se torna razão para discórdias, visto que incita nas pessoas com quem entra em contato um misto de fascinação e emoções tidas como incompreensíveis. A fascinação e as emoções devem-se justamente ao fato dos homens já desconhecerem como é lidar com um membro da espécie do outro sexo com toda a subjetividade que implica em possuir uma mente preenchida de pensamentos às vezes contraditórios e não ser apenas um caso de estímulo-resposta como um robô. Usando o que poderia ser uma série de elementos banais, afinal a história não apresenta nenhuma grande novidade dentro da literatura fantástica, temos a oportunidade de refletir acerca da natureza contraditória da comunicação humana (representada em como os demais personagens dialogam de forma truncada com a última mulher da terra, além da dificuldade em interpretá-la) e a pungência dos sentimentos que em alguns casos suplantam a razão. Entretenimento de alta qualidade!
Considerando o que analisei, recomendo o livro para qualquer pessoa que aprecie literatura fantástica ou mais especificamente ficção científica com um maravilhoso tempero de algo a mais, além da diversão. Minha nota é quatro selos cabulosos!
Nota:
As trinta primeiras páginas: