Ukeleles, gaitas e músicas diversas

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ukelelesUke entrou na loja de música um tanto aflito, e isso era bem notável em seu rosto (mesmo se esforçando para não demonstrar). O pequeno sino na porta soou e prontamente um senhor muito idoso chegou ao balcão e sorriu para Uke.

“O-Olá senhor. Eu gostaria de…” o jovem Uke não sabia como dizer aquilo. Havia completado 18 anos na noite anterior e tinha um grande dilema em sua mente.

“Um instrumento novo? Ou quem sabe alguma nova melodia? Haha, uma pitadinha de jazz na alma de qualquer um pode fazer milagres! Deixe-me ver, tenho até uns riffs novos…”

“Não! Eu…” disse Uke interrompendo o vendedor, mas logo perdendo a fala novamente. Empurrou os cabelos ruivos para trás e coçou a cabeça
“Eu queria uma…composição”

“Hahahaha, esta nervoso por tentar arranjar a melhor composição para seu filho recém-nascido? Apesar de ser bem jovem, todo pai passa por isso hohohoho” ria o vendedor colocando a mão na grande barriga que cultivava a muitos anos

“Não é pra uma…criança. É pra mim” disse ele praticamente sussurrando

“O QUE?!” gritou o vendedor

“É pra…”
“Shhhhhhhhhhh! Eu já entendi! Garoto, mas que problema! Vem cá” disse o idoso abrindo uma pequena porta da bancada e levando o Uke para dentro da sua loja.
O interior do estabelecimento era uma bagunça de discos de vinil e intrumentos musicais. Guitarras se misturavam aos violinos e os CD’s de rock se misturavam aos discos de vinil de blues.

“Sabe o que fazem com gente sem música como você garoto? Eles…sei lá o que eles fazem, mas não se preocupe, não é o primeiro a aparecer aqui sem uma música própria”

“Sério?”

“Não. Só estou tentando não te fazer pirar”

“Ah…legal” disse Uke desanimado

“Mas me diga garoto, como você não tem uma música? Do que gosta de ouvir?”

“Não tenho um gosto muito definido”

“Ah não, mais um desses ecléticos metidos a besta? Hahahaha, daqui a pouco vou te achar um hipster” Uke acabou corando um pouco.

“Eu…eu esperei até completar 18. Mas eu acho que tenho uma…err, maldição. Minha alma não emite nenhum som”

“Isso é…raro garoto. Mas espero achar algo pra você. Segura isso. E isso. E isso. Isso também…” dizia o velho enquanto jogava uma série de itens (um violão, um disco de jazz, cordas de aço, um diapasão, uma vitrola e etc) para Uke.

Após alguns minutos, Uke havia escutado grandes canções de big bands e bandas de metal. Desde o reggae ao hip-hop, o jovem testou mas não houve nenhuma ressonância no espelho de alma (um aparelho muito parecido com aquele que os médicos usam para escutar o coração)

“Nada?”

“Nada” disse Uke com uma expressão pré-choro.

“Calma garoto, calma. Me explica, seus pais nunca falaram sobre isso?”

“Nunca conheci meu pai, mas minha mãe me disse que ele era uma mistura de indie com rockabilly. Ela era música clássica com blues. Mas eu não sei porque eu não tenho nada deles…e eles tentaram me arranjar uma música desde que nasci”

“Hummm…isso vai levar mais tempo. Mas se você é um humano de Orquestria então você tem uma canção sim senhor! Vamos acha-la ou não sou o mais antigo detentor do título de mestre do jazz!” disse o velho se erguendo abruptamente de sua cadeira, estufando o peito como um herói.

O sino da porta soou novamente. O vendedor murchou o peito e correu para a bancada, mas apontou para que Uke permanecesse ali.

Uma bela garota loira entrou na loja com um sorriso no rosto e um ukelele vermelho (que é um pequeno instrumento de cordas).
“Oi mestre Laboriel! Trouxe Merry hoje!”

“Ah minha pequena, tinha esquecido que vinha hoje a tarde. Por favor, vamos vamos, temos platéia pra você hoje”

Uke se levantou abruptamente ao ver que o vendedor chegava acompanhado de uma garota estoneantemente linda segurando um instrumento estranhamente familiar

“O-Oi, s-sou Uke”
“O garoto é timido hohohoho! É a minha melhor platéia até agora porque ele não tem melodia na alma” nesse momento, Uke ficou tão vermelho como uma pimenta, tendo seu segredo de tantos anos sendo revelado assim tão levianamente.
Mas surpreendemente (para Uke) a garota não esboçou nada além de um sorriso e disse
“Ah! Então vai querer ouvir meu Ukulele?”

“Não é Ukelele?” perguntou Uke
“Sei lá” respondeu ela
“É Ukulele” interrompeu o vendedor
“Mas não é mais bonito Ukelele?” disse Alice
“Eu gosto de Ukelele” disse Uke
“Então é Ukelele. Mas o nome dela é Merry” e neste momento Uke já esboçava o mesmo sorriso que Alice.
“Não ia tocar minha pequena?” interrompeu Laboriel
“Ah claro! Vamos lá!” disse a garota sentando em um banquinho.

Arriscou alguns acordes e logo começou uma simples melodia, mas muito conhecida no país. O coração de Uke palpitou.

“Somewhere over the rainbow
Way up high” sua voz era de certa forma angelical. Uke notou que o vendedor havia sumido, mas não ligou, apenas queria ouvir o som de Alice

“And the dreams that you dream of
Once in a lullaby” sem perceber, Uke começava a bater os dedos da mão direita em sua perna direita, seguindo o ritmo.

“Somewhere over the rainbow
Blue birds fly” e então, o garoto notou que ouvia também o som de um grave baixo acústico, que acompanhava suavemente o ritmo da simples canção.

“And the dreams that you dream of
Dreams really do come true” e sem tomar conhecimento de nada, estava sentado em um banquinho e havia pegado uma gaita. Arriscou algumas notas e naturalmente acompanhava a música

“Someday I’ll wish upon a star
Wake up where the clouds are far behind me
Where trouble melts like lemon drops
High above the chimney top thats where you’ll find me
Oh somewhere over the rainbow blue birds fly
And the dreams that you dare to, oh why, oh why can’t I? ” e nesse exato instante, Uke escutou uma guitarra elétrica acompanhando, bateria e um piano tocando suavemente unidos. Era como sonhar de olhos abertos, mas desta vez ele podia sentir algo estranho em seu peito.

Um ruído abafado soou, mas era um som harmonioso e afinado com a música em si. Alice e Laboriel pararam de tocar (sendo somente o ukelele, o baixo acústico e a gaita instrumentos de verdade ali). O som se propagava como o som de um sino reverberando por uma cidade, mas era abafado e suave o suficiente para acalmar o mais exaltado dos animos. Era a música de Uke, no estado mais puro que uma canção pode ser.

Alguns meses se passaram e através desse tempo Uke aprimorou sua música e a lapidou de forma que admirava ao mais exigente dos criticos.

Durante esse tempo ele via Alice cada vez mais, e naturalmente começou a namorar com ela. As músicas dos dois combinavam de forma tão perfeita que se tornava uma única melodia reverberante.

Um dia, os dois estavam sentados no telhado da loja de Laboriel conversando e olhando as ondas do mar da costa leste de Orquestria.

“Mas então. O que acha que era afinal?” perguntou Uke
“O que?”
“A minha maldição? Por que só naquele dia ela apareceu?”
“Sei lá”
“Vou ficar surpreso quando me der uma resposta concreta Ali…” ironizou. Ela deu uma risada e abraçou Uke.
“Eu acho” continuou ela “Que talvez seja porque simplesmente não era a época certa até aquele dia”
“Quer dizer então que é simples assim? Um dia você acorda e tem algo assim…eu não entendo”
“Você não pergunta pro dó porque que ele é dó. Ele é um dó até o dia em que ele vai querer se tornar um intervalo de terça maior e virar um mi. Ou se juntar ao mi e ao sol pra fazer um acorde.”
“Então eu queria virar um mi?”
“Não, você só precisava achar o motivo pra fazer um acorde…” disse ela o beijando.

Uma vida de sucesso na arte da música (uma profissão tão importante quanto a do médico em Orquestria) esperava Uke.
A maldição foi quebrada pela música em si, mas não significa que ele tenha sido o único. Seu pai tem coisas a dizer sobre isso…

by Isaac Moreira