por Diego Costa
Acordou dentro de uma grande clareira no meio da escuridão onde a única fonte de luz vinha de clarões que chegavam e partiam esporadicamente por breves segundos. Estava tremendo de frio, e em cima do chão gelado formado por rocha dura e áspera, sentia vergonha por estar completamente nu. No entanto, esse não era o seu maior problema. Não tinha a menor ideia de como havia ido parar ali, e por mais que se esforçasse para lembrar, a memória falhava toda vez que tentava.
A noite reinava no céu e jogava sem perdão seu negro véu sobre tudo o que vinha abaixo de si. Isso exigia um grande esforço do garoto para tentar enxergar o que estava ao seu redor. Fato que foi ignorado, pois decidiu se levantar e caminhar com a intenção de tentar reconhecer o local onde acabara acordando sem saber como; semicerrou os olhos para fazê-los se adaptarem ao ambiente e deu alguns passos. Contudo, só o que conseguiu foi tropeçar em algumas pedras que vinham pelo caminho de encontro a seus pés, fazendo-o praguejar de dor. Mas quando finalmente acostumou-se à escuridão, percebeu que um alto penhasco se elevava a sua esquerda, juntamente de algumas paredes rochosas a sua frente e à direita, formando um cerco que não lhe permitiam ter visão para nada além deles; não tinha ideia que lugar era aquele, concluiu por fim.
Por um momento ele não soube o que fazer. E só o que lhe restou foi ficar ali, contemplando com a cabeça erguida, o gigante de pedra a sua frente, enquanto ele se escondia e voltava a aparecer – como uma criança que se divertia numa brincadeira de esconde-esconde – graças aos flashes de luz que insurgiam, vindos de algum lugar distante que refletiam sobre o corpo cinzento. Não mais alto do que um prédio de dez andares, o penhasco era composto de rocha áspera e escura, assim como o solo em que se encontrava. Parecia meio úmido e, se não fosse a escuridão, o garoto poderia jurar que musgos e lodo brotavam de fendas ao longo do seu corpo desgastado pelo vento e o tempo. Tinha um aspecto fantasmagórico, dando-o a sensação de que a qualquer momento moveria uma perna de pedra para pisar em sua cabeça. Mas nada aconteceu; viu também que qualquer um que desejasse chegar ao topo deveria enfrentar uma árdua e perigosa subida, e soube de imediato que isso se aplicaria a ele, pois apenas de lá de cima poderia ter uma visão melhor de tudo e descobrir o que estava acontecendo. Para tal, precisava dar a volta e tentar subir por trás, pelas costas, por meio de uma encosta não muito íngreme, mas que tomaria algum tempo, exigindo dele certa paciência através de um caminho que se mostrava acidentado, com pedras soltas, cortantes, e até mesmo escorregadias.
À medida que subia, o vento soprava cada vez mais forte, com o caminho obrigando o garoto a seguir às vezes para direita e outras para a esquerda. A luz agora vinha com mais frequência e a subida ficara menos complicada, mas, ainda assim, perigosa, com momentos em que precisava do auxílio das mãos para não escorregar. Além disso, seus pés doíam enquanto tentava fazer com que ficassem firmes nas pedras, e toda vez que olhava para baixo sentia uma onda de tontura por conta da terra que se afastava gradativamente lá embaixo. Todo gesto exigia cautela, e qualquer movimento errado o levaria de encontro às pedras abaixo de si numa queda em que rolaria sem parar custando-lhe todos os ossos do corpo. Porém, ao fim, ele conseguiu vencer o gigante. E ali no pico, ofegante e suado, sentiu-se aliviado por aquilo ter terminado, com a esperança de que, finalmente, poderia descobrir onde se encontrava; ou assim pensava.
Lá de cima foi difícil explicar com palavras o que viu, e se pudesse definir em uma palavra o que chegava a seus olhos, chamaria de inferno. Tudo parecia um caos, muito barulhento e desesperador. Uma águia de penas cinzentas, ao que parecia, sobrevoava – enquanto piava alto – aquelas terras ao longe e contemplava, como ele, um mundo onde as trevas tomavam sua forma mais tenebrosa, consumido pelo medo e o sofrimento, e onde a esperança se tornara um daqueles elementos de contos de fadas que, no fundo, não passam de uma consolação para os terrores do mundo real. O lugar era uma vasta terra de campos em erosão, com muitas rachaduras e pontos pedregosos que se estendiam até onde os olhos conseguiam alcançar. A escuridão tingia um céu que não possuía estrelas e, ao que parecia, nunca recebia a luz do sol. Não havia planícies verdes, e os poucos bosques que existiam eram negros, como se tivessem sido queimados – ou com árvores mortas, secas e cinzentas, de galhos retorcidos e aspecto medonho. Muito embora tudo aparentasse ser morto e infértil, um negro rio solenemente serpenteava abrindo caminho por onde passava; ele rasgava a parte arenosa do solo e dividia a superfície em dois lados para dar imagem a um grandioso vale, que ao mesmo tempo era engolido por altas montanhas – tanto a leste quanto a oeste – e que iam seguindo-o até o norte acompanhando seu turvo curso. Havia momentos em que elas revezavam na perseguição e, em certos pontos, erguiam-se mais altas à esquerda do que à direita, ao passo em que outros, faziam totalmente o inverso. Assim, tão grandiosas quanto titãs, elas tentavam beijar o céu em um amor não correspondido, onde, nos picos, em vez de ter aqueles negros lábios de encontro aos seus, conseguiam nada além de uma eterna espera em resposta, o que as transformavam em tristes formações escuras e sem vida ao longo das eras.
Todo o vale parecia ser tão fúnebre que o garoto conseguia sentir o odor da morte emanando pesadamente contra o seu rosto; um cheiro nauseante que era trazido pelo vento de coisas que pareciam estar em decomposição e, principalmente, de um líquido negro, borbulhante e viscoso que fervia no interior de diversos fossos, como piscinas escaldantes, localizados ao longo das planícies. Para seu espanto, dentro deles, pessoas eram completamente pintadas de negro enquanto gritavam de pavor e agonia, com olhos suplicantes por ajuda que, provavelmente, nunca viria; era possível ver também outras que caminhavam lentamente, mas que não pareciam se importar com as que jaziam nos fossos ferventes. Muitas delas estavam em completo estado de miséria, com a aparência fatigada e apenas um grande farrapo a cobrir os corpos – como um branco camisolão velho. Deslocavam-se meio que arrastadas por algo, como zumbis, em movimentos que pareciam que iam consumir suas forças, o que constantemente faziam-nas cair no chão.
Aos olhos do garoto, que não era alto e não passava dos dezessete anos, toda aquela gente não sabia exatamente o porquê de estarem ali, e talvez por isso, pareciam sofrer ainda mais. Caminhando de forma única e desordenada, que certas vezes mudava de direção com destino sempre ao norte, podia-se ver que não possuíam objetivos ou perspectivas – tanto homens, mulheres e até mesmo crianças. Apenas demonstravam expressões de medo e sofrimento, com olhos opacos e sem vida, de fundas olheiras, e corpos que mal possuíam forças para se movimentar. Às vezes, ajoelhavam-se ao chão e pareciam que iam rezar; outras, que quando caíam, começavam a chorar, e ao perceberem que estavam paradas, levantavam logo em seguida; e em certos momentos, tinham aquelas que, assustadoramente, jogavam-se em precipícios preenchidos por labaredas ao fundo, onde um mar de estranhas chamas azuis, envoltas por uma tonalidade de negro, encontrava-se.
Aquilo o chocou profundamente, e teve a sensação de que choraria a qualquer momento. Era uma visão perturbadora. Tanto, que sentia vontade de impedir aquela gente de se jogar naquele inferno no interior da terra. Pareciam até que eram forçadas a pularem dentro da tortura incandescente – uma atrás da outra – onde queimavam sem ao menos soltar um grito de dor, e que no fim nada restava de suas existências além das cintilantes cinzas azuis que flutuavam dispersas no ar.
Os mares incandescentes que recebiam os corpos dos infortunados ficavam dentro de duas grandes formações: uma à oeste e outra à leste, bem distantes do rio e próximas ao pé das montanhas, formando extensos cânions que rasgavam as extremidades do vale e que iam seguindo por vários quilômetros. Ali, suas chamas subiam em direção ao céu ferozmente vindas do fundo, e rapidamente tomavam para si todos os corpos daqueles que de tão boa vontade iam ao seu encontro.
Não era possível que um lugar assim poderia existir, pensou o garoto consigo. Como permitiam tais atrocidades? Por todos os cantos havia pessoas em sofrimento; centenas, milhares, vindas sem ele saber de onde, como se brotassem da terra para continuar a lotar o vale. Tinha vontade de acabar com tudo aquilo, mas não fazia ideia em como. Aliás, o que um ninguém como ele poderia fazer? Só poderia ser brincadeira pensar que seria capaz de mudar o mundo de horror bem diante dos seus olhos, onde o sofrimento parecia ser a única forma de vida. Logo ele, que não tinha capacidade de enfrentar os próprios temores.
De repente, uma rajada de vento que vinha soprando ferozmente do norte ouriçou seus cabelos castanhos e cacheados que cresciam para todos os lados, e interrompeu seus pensamentos por um momento. Com certa dificuldade, da mesma direção, o garoto pôde avistar, ao longe, uma grande estrutura próxima às montanhas do oeste-norte, que mais parecia ser construída à base de onixes, e não muito distante da margem do rio.
O castelo – pois era assim que identificava a construção – reluzia hipnoticamente à luz produzida pelas labaredas dos cânions. Possuía uma extensa muralha de pedra escura que o cercava, com ameias pontudas, e uma espessa ponte levadiça de madeira. Cinco torres circulares e irregulares, com superfícies cônicas, apontavam ameaçadoramente para o céu em forma de agulhas, cintilando belamente. Era possível avistar, também, uma ponte de pedra cinzenta, completamente suja e coberta de lodo, que se erguia em arco sobre o rio enquanto estranhas criaturas de pele escura e corpos esguios voavam lentamente ao redor de todo o complexo, envergando suas grandes asas negras de morcego em um lento movimento; imaginou quem poderia morar ali e em tal lugar. Mas talvez, ele não desejasse saber realmente.
Desviando a atenção do castelo, ocorreu-lhe novamente o porquê de ter ido parar ali. Era tudo muito confuso e não sabia o que havia feito para merecer aquilo. Teria cometido algum crime? Estava ficando louco? Onde estava sua mãe e seus amigos, sua casa, seu bairro? E a partir disso o desespero começou a tomar conta do garoto. Sentiu como se quisesse gritar até que seus pulmões explodissem, e transtornado, não sabia o que fazer. Lágrimas começaram a brotar de seus olhos enquanto corria de um lado para o outro tentando evitar todo o horror que era obrigado a presenciar. No entanto, não importava para onde olhasse que a visão era sempre a mesma; sofrimento. Derrotado, largou-se ao chão de joelhos e contemplou o céu em uma busca inútil de fugir de tudo, muito embora a negritude acima de sua cabeça não ajudasse realmente, porque as trevas eram só o que lhe restava.
Foi então que, pouco a pouco, uma confusão de pensamentos começou a tomar conta de sua mente. Estava fraco e, lentamente, ele se viu obrigado a sentir uma mistura de sentimentos ruins que raramente havia sentido na vida – como ódio, vingança, rancor, inveja e dor; todos misturados a uma espécie de medo que se apossava de sua alma e o preenchia rapidamente. Não conseguia lutar contra aquilo; não tinha forças. E o que restou foi deixar-se levar pelo estado sufocante daquilo. Era mais fácil desse jeito. Sentir como se sua alma estivesse sendo corroída, que perdia as forças e, gradativamente, a vontade de viver. Dessa maneira, logo tudo teria um fim.
Aquilo que ele não sabia explicar parecia estar o domando e convencendo-lhe de que a vida não importava mais. Tudo parecia sem sentido, sem valor, como se nada mais importasse, e logo foi tomado por um estado de transe onde o que mais desejava era a paz que apenas a morte poderia proporcionar. Aliás, sentia como se todos os sentimentos negativos daquele lugar, de alguma maneira, estivessem se apossando de seu coração, tornando o desejo suicida nada mais do que o certo a se fazer, sem ao menos conseguir diferenciar o certo do errado. Até porque a morte seria pouco para ele, pensava.
É isso o que todas essas pessoas estão sentindo?
Então decidiu se levantar e, cambaleante, voltou a atenção – com os olhos sem brilho – para o incompreensível mundo à sua frente. Para sua surpresa, a resposta para dar fim àquela agonia e sofrimento acabara de aparecer bem diante de si. Um abismo tão profundo surgira ao pé do penhasco que era impossível enxergar o que havia em seu interior. Onde está a clareira? Isso não existia aí.
E não existia mesmo. Todo o vale que ele havia visto antes, com todas as pessoas em sofrimento, cânions, castelo e mares de fogo, simplesmente haviam desaparecido. Agora, era apenas um mundo escuro, habitado só por ele e o abismo à frente do penhasco onde se encontrava. Talvez eu esteja ficando louco.
Não importava. Até porque era perfeito. Só alguns passos e tudo estará terminado.
O garoto se postou diante do abismo, olhou para o fundo e nada viu. Lá de dentro, no interior habitado apenas pelas trevas, ele encontrou a sua resposta. Algo lhe dizia que era o certo a se fazer, já que sua vida não valia mais de nada a não ser causar sofrimento a todos que o rodeavam. Até achou que o abismo estava vivo, como se entendesse tudo que se passava dentro de seu coração.
Sorriu. Então é assim que as pessoas dos cânions se sentem.
Momentos depois, ele já pensava em mergulhar. Alguma coisa mexia com seu coração; algo estava influenciando-o. Uma força invisível que ele não compreendia e que não tinha poder para combater. Estava chamando-o, atraindo-o como um inseto desejoso por alcançar a luz, e que ao fim sabia exatamente onde iria terminar. Mas era o certo a se fazer, não era? Então por que hesitava? Covarde!
Mergulhe, pensou escutar. Porém estacou. Pois agora sabia o que o impedia. Sabia perfeitamente que, quem quer que ousasse cair ali dentro, não teria nada além de dor e sofrimento eternos. Sorriu novamente. Certamente é perfeito.
E decidiu pular. Contudo, foi impedido por um amontoado de penas que surgiu em frente ao seu rosto e, por reflexo, foi obrigado a se lançar alguns passos para trás desequilibrado. Atordoado, o garoto viu, mesmo em meio aquele ambiente escuro, que a confusão de penas pertencia a uma grande ave de rapina que se postava entre ele e o abismo, bloqueando seu caminho. Ela agitava as asas freneticamente tentando se manter estável no ar e olhava-o fixamente nos olhos. Mais lembrava uma águia de plumagem cinzenta, e exercia um certo fascínio sobre ele, que tinha vontade de tocá-la de tão sedutora que parecia.
Durante os breves segundos em que os dois mantiveram aquela troca de olhares, pareceu para ele que nada mais importava. Era como se estivesse voltando a ter controle sobre seu corpo, e ela, com sua beleza e grandeza, estivesse livrando-o de todos os sentimentos ruins que vinham se apossando dele.
Com um desejo incontrolável de tocá-la, o garoto foi em direção à águia, mas não obteve a melhor das respostas. Ela avançou ferozmente em ataque erguendo as grandes garras afiadas, enquanto que ele só teve tempo de tentar proteger-se com os braços para impedir que ferisse seus olhos. Mas curiosamente, nada sentiu. Nenhuma dor, nenhum ferimento. E ali, envolvido, em vez de sentir as garras rasgando sua pele, ele foi tomado por outra coisa. Algo que veio acompanhado de um som estridente que ecoou no ar, mais parecido com um pio agudo; uma dor que o atingiu fortemente no coração como se milhões de agulhas estivessem atravessando-o.
A dor foi tão intensa para o garoto que ele não conseguiu suportar continuar de pé, e caiu ao chão de joelhos. Em seguida, quando olhou para frente confuso sobre o que acontecia, viu que a águia estava tendo seu corpo preso por fios negros que mais pareciam sombras e que rapidamente envolviam-na, originados do fundo do abismo. Eles apertavam-na fortemente, e em poucos segundos haviam a imobilizado completamente, enquanto ela grunhia de dor e tentava se desvencilhar em vão. E, então, com um rápido movimento, foi tragada para o interior do mar de escuridão lá embaixo sem ter ao menos chances de se defender e, ele, de fazer alguma coisa para ajudar.
O breve acontecimento fez o garoto se sentir como se tivesse perdido uma parte de si, uma fração de sua alma, e agora, um buraco negro se expandia no interior de seu coração, mesmo sem entender o porquê de todo o afeto que sentira pelo animal. Sem ele por perto parecia que voltava a provar de todos os sentimentos de que ele havia o livrado e, novamente, começava a se perder naquele estado em que só desejava pela chegada iminente da morte.
Como é frágil e tolo, mortal, pensara ele escutar do abismo, ao passo que o vento soprou friamente contra seu rosto do interior em seguida. A sensação fez sua espinha tremer e atravessou sua alma, dando-lhe finalmente a certeza de que algo lá dentro continha uma espécie de vida, e que clamava por ele. Teve vontade de xingá-lo para liberar todo o ódio que sentia, mas também de se jogar e abraçar qualquer coisa que houvesse ali. A segunda opção pareceu mais atraente, o que o levou, enfim, a postar o pé direito sobre a beirada do que o separava daquilo.
No mesmo instante conseguiu sentir a satisfação da coisa em lhe possuir e, no entanto, sem compreender o porquê. O que ele poderia ter que a coisa desejasse tanto? Alguém que não tinha nada de especial ou precioso em seu poder; alguém simplesmente normal. Contudo, nada importava mais. Livrou-se de todas as dúvidas que o consumiam, fechou os olhos sem questionamentos e se entregou ao abismo, enquanto lágrimas brotavam de seus olhos devido ao pesar que causaria a todos que o amavam, mas com uma leve satisfação de liberdade, já que em breve tudo o que estava passando iria ter um fim.
Para a sua surpresa, algo o impediu antes de se jogar. Uma delicada mão segurou-lhe pelo ombro direito e puxou-o de volta, impedindo que caísse nas trevas. Rapidamente, o garoto foi invadido por uma paz arrebatadora que o livrou de todos os sentimentos ruins que ele fora induzido a sentir, deixando seu coração tão leve como nunca havia o sentido na vida. Tudo pareceu girar e aquele mundo se esvaneceu por completo, como fumaça dispersa no ar, onde, no momento seguinte, foi substituído por um par de olhos castanhos e doces que o admiravam de cima.
– Hora de ir para a escola, Douglas – disse sua mãe olhando-lhe nos olhos enquanto tentava fazer com que se levantasse da cama.