por Guilherme Matos
– É… um trabalho lamentável, mas alguém tem que fazê-lo.
Samael suspirou e passou a recolher. Não sentia tristeza, remorso ou sequer repulsa pela cena diante de seus olhos, apenas canseira e tédio. Ajustou melhor a vara em suas mãos e foi recolhendo-as de uma em uma. Logo o trabalho ficou tão chato que ele passou a viajar em seus pensamentos enquanto cantarolava “Pet Sematary” do Ramones. Estava tão entretido consigo mesmo que nem sequer percebeu o recém chegado. Pelo menos não antes de espetar a vara nele.
– Ai! Tome mais cuidado com essa coisa, Samael!
– Culpa sua de aparecer sem se anunciar, Miguel. – Samael respondeu, imperturbável.
– Bem, eu esperaria que você estivesse prestando total atenção ao que está fazendo! Você não está recolhendo meros restos, sabia?
– Miguel, eu não te digo como fazer o seu trabalho, então não tente me dizer como fazer o meu, ok? – Samael rolou os olhos para cima e suspirou, antes de encarar novamente o irmão – O que você quer comigo?
– O que te faz pensar que quero alguma coisa com você? – Miguel perguntou, desafiador. Ele nunca gostara da arrogância do irmão.
Samael fez um gesto abrangente com a mão direita antes de responder:
– Não sobrou muita coisa, sobrou?
De fato, não havia sobrado. Miguel bufou e disse:
– Tenho uma mensagem do pai para você.
Samael levantou as sobrancelhas e apoiou a vara no chão, levemente intrigado.
– E ele escolheu você para me entregar? Onde está o irmão Gabi?
– Olha, não sei e também não me interessa. – Miguel respondeu em um tom que dizia estar muito interessado – Vai ouvir a mensagem ou não?
– Tenho escolha? – Samael perguntou com escárnio.
– Sempre temos escolha, Samael. Faz parte de nós também o livre…
– Tá tá tá, já sei. – interrompeu Samael, fazendo um gesto de impaciência – Já ouvi o suficiente sobre isso do Gabriel, não preciso ouvir de você também. Passe logo a bendita mensagem.
Miguel estreitou bem os olhos antes de dizer:
– Não lhe pertence.
– Perdão? Como disse?
– Não lhe pertence.
Dessa vez Samael entendeu. Sua face não mudou, nenhuma expressão nova surgiu, apenas o velho tédio e desinteresse por tudo ao seu redor. Por dentro, a ira e a euforia que dariam nascimento ao inferno brigavam na própria essência de seu ser. Ele olhou para cima e perguntou, como quem não quer nada:
– O Quinto Céu não me pertence mais, é isso?
– Isso é tudo o que o pai me mandou dizer, Samael. Não. Lhe. Pertence. Quem tem que descobrir o sentido disso é você.
Mas Samael não mais escutava. O êxtase tomava o espirito enquanto se dava conta de que sua hora havia finalmente chegado. Ele fora bem sucedido ao roubar os dons da onipresença e da atemporalidade sem ninguém mais perceber. Sabia, ao contrário de Miguel, exatamente onde o irmão Gabriel estava. E também sabia que Miguel jamais conseguiria nomear a música que ele estivera cantarolando, pois ainda levaria milênios para ela ser composta. Agora era a hora de Samael roubar o último e mais valioso dom.
Agora era a hora de Samael derrubar seu pai.
– Muito bem, então. Que seja feita a vontade dele. – Samael disse com simplicidade e voltou a sua coleta.
Miguel o olhou com desconfiança. Talvez esperasse pela raiva de seu irmão ao saber que havia perdido seu pequeno pedaço do reino dos céus. Mal sabia ele que logo todo o reino seria de Samael. Virou-se, abriu suas asas e estava prestes a ir embora quando alguma coisa pareceu lhe ocorrer. Olhou para Samael e disse, preocupado:
– Trate esse lugar com respeito, Samael. Ele já foi a maior esperança de nosso pai para uma versão do paraíso.
– E quem disse que esse lugar não o é? É para mim, pelo menos. – disse Samael, olhando para o que havia restado do glorioso Jardim do Éden.
Desde a expulsão de Adão e Eva (um feito do qual Samael tinha um pouco de culpa, embora ninguém devesse saber) ninguém havia se incomodado em cuidar da imensidão verdejante que costumava ser o Jardim do Éden. Os animais foram morrendo e se dispersando e mesmo as plantas não duraram muito. Aparentemente apenas os cuidados humanos poderiam manter vivo o paraíso humano.
– Uma pena o que aconteceu aqui, mas não tenho motivo para reclamar. Vai me manter bastante ocupado. – disse Samael, referindo-se aos espíritos dos seres mortos. Sua função era recolhê-los para posteriormente mandá-los para seu lugar de descanso entre as nuvens.
– Bem, apenas mantenha a cabeça baixa e faça o que foi feito para fazer, certo? –Miguel disse, dando-lhe as costas – Todos temos um papel concedido a nós, e apenas a nós. Devemos agradecer por ele.
Com isso, Miguel alçou voo. Provavelmente nunca chegou a ouvir as últimas palavras do anjo da morte:
– Amém para isso, irmão.
Samael tornou a recolher e assim ficou por um tempo. Não saberia dizer se foram horas, dias ou semanas. A passagem do tempo não tinha muito sentido para um ser atemporal. Só voltou a ter noção dos seus arredores quando reparou que havia chegado aonde pretendia: o centro do jardim.
E ali estava ela, a macieira do Éden.
Como todas as outras árvores, esta também estava desfolhada e morta, com seus frutos apodrecendo no chão, o que não poderia ser mais perfeito para Samael. Vivos, aqueles frutos não lhe serviam de nada, eram apenas um pobre fragmento do poder de seu pai que agora pertencia aos humanos. Mortos, por outro lado, eram muito mais úteis. Os espíritos daqueles frutos continham o mais divino dos dons.
O dom da criação.
Samael não hesitou em comê-los. Como nas outras vezes, não sentiu nenhuma diferença a principio, então resolveu tentar criar alguma coisa.
E criou a luz. Não no mundo, mas em si mesmo. Tornou-se tão brilhante quanto o sol e as estrelas. Todos os seres entre o céu e a terra deveriam estar vendo o seu renascimento. A sua ascensão.
Ele foi tomado pelo júbilo, pela euforia, e alçou voo direto para o trono de seu pai. Tinha certeza que agora teria poder suficiente para sobrepujá-lo e tomar o seu verdadeiro lugar de direito. Estava tão cheio de si que nem percebeu o fogo queimando suas asas e a terra morta do Éden chegando cada vez mais perto. Só ficou ciente de sua derrota quando ouviu a voz do pai em sua cabeça
“A árvore não era um teste apenas para os humanos, meu filho, mas para você também. Muito me entristece ver a sua queda. Deveria ter entendido, a glória divina não lhe pertence. Por seu sacrilégio, deverá guardar as almas corrompidas como a sua, para que nunca voltem a infectar os domínios do céu, até o dia do Juízo Final.”
E então o caído atingiu o chão do Éden… e o atravessou. Continuou a cair até chegar ao fundo mais fundo da Terra, onde nenhum ser se atrevera a ir, arrastando consigo os restos do paraíso perdido. Lá, sua cólera foi tamanha que as mais hediondas criações tomaram forma e o que deveria ter sido o jardim mais belo se transformou na mais horrenda paisagem, coberta de fumaça, fogo, dor e ódio.
Quando sua ira acalmou, ele olhou ao redor e percebeu que, apesar de tudo, ele ainda era o ser mais brilhante que existia. Não iria desistir, um dia tomaria o trono de seu pai e seria o rei de todos os reinos.
Assim nasceu Lúcifer.