A garotinha já não sabia mais quem era. De onde veio, seu nome, seu passado. Nada. A garotinha desconhecia a si própria. Ela estava sozinha de si mesma e também de outros.
Para completar a situação desagradável, ela também não sabia onde estava. Talvez até soubesse, porém no momento achou sinceramente que não. Era um lugar estranho, uma estrada nem muito larga e nem muito estreita, que não era feita de terra ou cimento e sim tijolos cinza. Os dois lados do caminho estavam cercados de lojas, lanchonetes e todos os tipos de comercio. Para as duas direções a estrada seguia indefinidamente e apenas isso podia ser visto. E embora fosse noite, todas as lojas estavam abertas e de luzes acesas, mesmo que não houvesse ninguém em seus interiores. Aquele lugar, com exceção da garotinha, estava vazio de pessoas.
Ela então falou sem pensar:
– Será que alguém realmente acredita em mim? – Ela estranhou demais essas palavras, como se não tivessem sido pronunciadas por seus lábios.
Porém, curiosamente, uma bela voz respondeu a garota.
– Está pronta para fazer o seu exame?
Ela virou-se com violência na direção da voz, contemplando assim o estranho dono da elegante sinfonia vocal. Ele era jovem, alto e magro, postava-se como alguém da alta sociedade e tinha charmosos olhos brancos, que contrastavam com seus cabelos negros. Estava vestido com a peça de cima de um smoking, entretanto na parte debaixo só usava uma cueca samba-canção, branca e com estampas de um super-herói qualquer. Nos pés vestia um par de chuteiras de futebol verdes e na mão direita carregava uma pequena faca de cozinha. Ele estava a dez passos da menina.
– Prazer em conhecê-la, ó garotinha – ele disse, sorrindo de orelha a orelha e curvando-se.
A visão da faca não a assustou, fazia o homem na verdade parecer engraçado. Perguntas como “quem sou?” e “onde estou?” sequer flertaram entre suas dúvidas.
– Quem é você? – foi a primeira questão que lhe veio.
O homem estranhou a pergunta, pois quase nunca ela era feita quando dirigida a ele.
– Quem sou? Quem será que sou? – ele filosofou. – A verdade é que não tenho um nome, nunca me decidi entre Adolf ou Cezar, mas eu sou alguém, sou o deus das coisas banais e das banalidades em geral, sou seu anfitrião nessa ocasião.
A garotinha ficou ligeiramente confusa, porém entendeu bem a resposta.
– Adolf. Gosto mais de Adolf do que de Cezar – ela opinou.
– Pois Adolf então será – Adolf, o deus das coisas banais decidiu.
– Para onde iremos, Adolf?
– Visitaremos uma covarde, um par de irmãos, uma inimiga, um macaco, um defunto e alguém que quer conhecê-la. Não ira demorar, prometo-lhe. Dê-me sua mão e partiremos. – Ele ofereceu a mão esquerda.
A garota hesitou, observando desconfiada a faca não mão do deus. Ele percebeu o motivo e decidiu se livrar do acessório, e como em filmes antigos a lâmina piscou e desapareceu. Ele sorriu, mostrando assim como um ilusionista a mão agora vazia, como se dissesse que estava tudo bem.
De mãos dadas, eles puseram-se a caminhar por aquela longa estrada de tijolos cinza cercada de capitalismo. A menina olhava a sua volta, à procura de outra pessoa, mas ela e Adolf eram os únicos. Ela erguia o olhar para o céu, à procura de estrelas, todavia demasiada era a quantidade de nuvens escuras. Ela olhava para o deus ao seu lado, à procura de esperança, porém ele simplesmente não se importava. Ela pensou que seria sensato perguntar o porquê do lugar ser tão vazio, entretanto desistiu de ser sensata.
– Por que você está sem calças? – A garotinha quis saber.
– Eu não estou sem calças. Acontece que sou o deus das calças invisíveis – ele respondeu paciente.
– E suponho que você também seja o deus das chuteiras de futebol e das facas de cozinha.
– E das cuecas com estampas de super-heróis.
Ela suspirou como se achasse inútil discutir. Adolf então indagou, sorrindo gentilmente:
– Você sabe, garotinha, que se morresse se tornaria uma linda mulher?
– Isso quer dizer que estou viva?
– Isso quer dizer que não esta morta. – Ele também sorria com os olhos.
– Você está mentindo, não está? – Ela tinha um olhar desconfiado.
– Claro que não, pois não sou o deus da mentira.
– Entretanto não é a deusa da verdade.
Adolf lançou-lhe um olhar sorridente, ultrajado ao mesmo tempo em que se divertia com a situação. Ele fez uma nota mental de que a menina era inteligente.
– E quem eu seria se morresse? – o deus indagou-se, suspirando.
Eles continuaram andando.
Depois de alguns minutos o padrão do céu, dos comércios e da estrada começaram a mudar. As nuvens dissiparam-se, revelando um céu azul escuro quase vazio. A única estrela em exceção era uma que brilhava em seu centro, de uma cor vermelha viva, gritante. Vênus, a garota de alguma forma soube de imediato. Entre as lojas em volta, algumas já não estavam abertas e mais um minuto depois mais da metade estava fechada e as ainda abertas possuíam lâmpadas amarelas e vermelhas, iluminando toda a rua em um padrão avermelhado. Os tijolos cinza, randomicamente conforme andavam mudavam para um vermelho extremamente brilhante até que todos ficassem dessa cor e a estrada se metamorformasse em vermelho.
A garotinha achou aquela mudança linda, largou a mão de Adolf e correu maravilhada, repetindo o quanto tudo aquilo era lindo.
– Realmente há certa beleza – o deus concordou. – É como se estivéssemos dentro de uma artéria.
O comentário foi ignorado pela menina.
Chegou aos seus ouvidos, o som de uma voz desafinada cantarolado uma música calma e triste, que se baseava em “lás”.
– Lá, lá lá, lá lá, lá lá, lá, lárala, lála. Lá, lá lá, lá lá, lá lá, lá, lárala, lála.
O deus e a garota viraram-se para uma das lojas, a direção de onde a música vinha. Do interior desta saiu uma curiosa mulher.
Ela usava um vestido de noiva branco e volumoso que porém era aberto na frente deixando suas sexuais pernas amostra, asas brancas nasciam de suas costas descobertas e uma auréola dourada flutuava sobre sua cabeça. Ela seria a mulher mais linda que jamais existira se não fosse por alguns pequenos detalhes. Toda a pele dela, assim como o cabelo e os olhos, era de uma cor vermelho sangue que incomodava só de contemplar, uma de suas asas, a da esquerda, estava seca e em estado de putrefação, com algumas moscas voando em volta e em suas costas na altura de cintura reparava-se que uma cauda pontuda partia da mulher.
Quando ela viu seus visitantes seus olhos espantaram-se e o cantarolar cessou, rapidamente ela voltou para dentro da loja, parecia muito assustada.
– Moça, você esta bem? – a menininha perguntou.
A mulher pôs a cabeça para fora e os observou, parecendo envergonhada ou amedrontada. Como se estivesse fugindo de um caçador, correu para uma loja mais distante e ficou observando Adolf e a garotinha de lá.
– Quem é ela? – a menina outra vez quis saber, apontado para a sua dúvida.
Paciente, Adolf respondeu:
– Aquela é Felícita, a deusa de felicidade. É uma covarde, sempre fugindo de tudo e de todos, porém sempre punindo inocentes e sempre fornicando com aqueles que não a merecem. Uma desgraça eu a chamaria, se ela ainda não possuísse uma alma de donzela.
A criança tentou se aproximar de deusa, entretanto novamente esta correu para a próxima loja, e isto se repetiu algumas vezes. A menina se irritou.
– Por que foge tanto, ó deusa covarde!? – ela gritou.
Adolf se divertia com a infantilidade de ambas. A garotinha estava de braços cruzados e bochechas inchadas, emburrada; e Felícita ainda os espiava a distancia.
A criança começou a reparar nas lojas abertas a sua volta, elas não eram de uma variedade muito grande, resumiam-se em salões de beleza, joalherias, moda feminina e sex-shops.
– Pensei que você tinha dito felicidade e não vaidade – ela reclamou.
Adolf, sempre cavalheiro, replicou:
– Felícita também é a deusa da vaidade, e da luxúria e do amor, se isso importa. Mas de que valem essas coisas sem a felicidade?
A garotinha por mais uma vez caminhou em direção a deusa que por certa razão não correu como das outras vezes. Pelo contrario, timidamente andou de encontro a garota. Parou em frente a ela e a observou sem palavras a dizer, parecia amedrontada, parecia aterrorizada. Todavia a opinião dita pela garotinha a faria superar seus medos.
– Você parece estúpida, pare de tremer.
Felícita sentiu-se profundamente ofendida e franzindo o cenho proferiu:
– Cuidado com o que diz, pois posso banir a felicidade de você para todo o sempre.
– Não, não pode. – A criança estava envolta em calma e falava como se cada palavra fosse obvia. – Não pode porque eu controlo minha própria felicidade e também porque sou uma garotinha.
– Sou a deusa da felicidade. A alegria de todos vem de mim e apenas de mim. – A expressão inocente da deusa fora substituída pelo orgulho.
– Ninguém se ajoelha perante a sua covardia. Seus pecados são maiores que os deles. A muito aprenderam a viver sem amor ou felicidade.
Felícita voltou a parecer inocente e frágil. Abaixou a cabeça como se tivesse perdido o debate. E concluiu:
– Amo-te e é por isso que odeio laranjas.
Adolf observava tudo a uma relativa distância, parecia fascinado com o diálogo e após este decidiu que se tornaria o deus das cascas de banana, laranja e melancias. Á passos curtos aproximou-se delas, enquanto pensava sobre coisas banais.
Ao ver o colega divino aproximando-se, Felícita tremeu não de medo, e sim de excitação. A deusa amava-o, assim como amava todos os desmerecedores e indignos de sua graça. Ela queria despi-lo e possuí-lo ali mesmo, entretanto conteve-se.
Os deuses cumprimentaram-se em discreto aceno. E o recente deus das cascas de melancias avisou a menina que o tempo corre e eles precisavam partir. Como a educada criança que era, ela confirmou com a cabeça e ofereceu a mão ao deus. Juntos, eles continuaram a percorrer aquela estrada de tijolos confusos. Distanciando-se eles ouviam Felícita, que indagava logo atrás.
– Você se tornaria a minha melhor serva se crescesse. Se forjada a chave, que porta abriria?
Mas ela foi ignorada.
O padrão do cenário outra vez voltou a se modificar conforme os passos da garotinha e do deus, ela não se animou tanto com a mudança como antes, o lugar agora parecia sem graça. Os tijolos do caminho abandonaram a cor vermelho brilhante para adotarem as cores azul e verde escuros, que distribuíam-se em xadrez. Vênus desaparecera do céu e todos os comércios, com exceção de um estavam fechados.
A garotinha vez ou outra se virava para trás, pois notara que a deusa da luxúria, Felícita, não tão discretamente os seguia, sempre que a menina virava-se a deusa escondia-se em um lugar que não a escondia. Ela ainda parecia frágil, mas logo voltava a ser ignorada pela menina.
Em um dos lados da rua, paredes e fachadas dos estabelecimentos estavam tingidos em azul escuro e o outro lado estava da mesma maneira, a diferença era que a cor predominante era o verde musgo. Mesmo o céu de um lado parecia azul do outro verde. A estrada de tijolos parecia terminar ali, em uma grande loja de instrumentos que era a única aberta na ocasião, porém a menina reparou que aquele não era o fim, a rua apenas se bifurcava para a direita e para a esquerda. Dentro do estabelecimento que vendia instrumentos havia logo a frente uma admirável bateria, e tocando uma violenta e linda música havia um homem, a melodia tocada era extremamente contagiante e fazia a garotinha querer pular em seu ritmo.
O baterista tocando tão esplêndida canção era, assim como Adolf e Felícita, uma criatura curiosa. Sentado não se podia dizer se ele era alto, porém por debaixo de sua roupa parecia relativamente forte de forma que suas vestes ficavam apertadas em seu corpo. Ele usava uma camisa branca de mangas longas, a roupa estava completamente riscada de fórmulas matemáticas, físicas e químicas. A calça jeans que vestia era toda surrada e rasgada e os pés estavam descalços. Os cabelos loiros estavam cobertos por um boné de cor verde musgo e os olhos azuis claros ficavam borrados por debaixo dos óculos de grau.
A garotinha e Adolf, seguidos por Felícita, aproximaram-se do músico que pareceu não notá-los, ainda concentrado em seu instrumento.
– Quem é ele? – curiosa, a criança quis saber.
O deus respondeu:
– Aquele é Tolo, o deus dos sábios. Ou Sábio, o deus dos tolos. Nesse momento não consigo diferenciá-los.
A menina não compreendeu.
– Tolo e Sábio são deuses gêmeos – Adolf explicou –, são exageradamente idênticos em cada detalhe, porém um é o deus dos sábios e o outro dos tolos.
Finalmente o deus, Tolo ou Sábio, percebeu suas visitas e a música violenta cessou. Ele pareceu surpreso, como se o tivessem pego fazendo algo proibido. E em plenos pulmões gritou, apontando para frente e, consequentemente, as costas de seus visitantes:
– Olhem! Um rato alado!!!
Os deuses das coisas banais e da felicidade viraram-se sem pestanejar, entretanto a garotinha, desentendida da situação, continuou a olhar o deus baterista. Ele, em incrível velocidade, levantou-se, jogou as baquetas no chão, puxou de lugar nenhum um jaleco de laboratório e o vestiu, colocou nas costas uma bolsa que carregava um violão e tirou o boné da cabeça, preservando-o na mão. Tudo bem a tempo dos outros deuses virarem-se de volta à ele.
– Claro que não era um rato alado, eu sou o deus dos ratos alados e saberia se tivesse um ali – Adolf resmungou. Dirigiu-se de volta ao outro deus e acrescentou:
– Ah, Tolo, você está ai. Era você tocando magistralmente o instrumento ao seu lado?
– Não, era Sábio, mas ele já foi – Tolo respondeu. Ele aproximou-se da garotinha e apertando suas mãos se apresentou:
– Prazer em conhecê-la, ó garotinha. Sou Tolo, o deus dos sábios.
A menina retribuiu o cumprimento, quando foi novamente surpreendida por outro grito de Tolo:
– Olhem para o céu, está chovendo bananas!!
E outra vez Adolf e Felícita olharam enquanto o deus dos sábios retirava seus óculos e colocava o boné, que estava em suas mãos o tempo todo. Seus olhos descobertos pareciam vidros trincados. Quando Adolf voltou a vê-lo disse surpreso:
– Sábio? Quando você veio? E onde está Tolo?
– Foi embora. – Ele desviou sua atenção para a menina e em falsa surpresa acrescentou:
– Ora, onde estão meus modos? Prazer em conhecê-la, ó menininha. Sou Sábio, o deus dos tolos e nas horas vagas dos corajosos.
A menina estava totalmente confusa. Apontou para Sábio e questionou se ele na verdade não era o irmão.
– Claro que não sou, por favor, não me compare a ele, odeio ser comparado a sábios.
– Mas…
Sábio a interrompeu ao perguntar a Adolf:
– Já escolheu o seu nome, deus da dúvida entre quadrados e círculos?
– Sim, me chamo Adolf. A garotinha me ajudou a decidir.
A resposta fez Sábio virar-se para ela carregando uma face que misturava dúvida e malícia.
Adolf avisou a garota que tinha que continuar e ela concordando escolheu o lado esquerdo da bifurcação para continuarem. Insatisfeito, ele protestou:
– O lado esquerdo me desagrada, olhe, lá vê-se apenas azul. Eu escolho o lado direito.
A garotinha ficou emburrada. E Adolf, sentindo-se pressionado pela insatisfação dela, propôs que decidissem o caminho através do acaso, pedindo assim uma moeda a Sábio, que jogou a ele uma que era verde em um dos lados e azul no outro.
– Mas o deus da sorte não irá interferir? – a menina questionou.
– Não existe sorte – o deus das cascas de banana a tranquilizou. – Eu matei o deus dela a muito tempo atrás, pois a sorte era unilateral e isso me incomodava. Então apenas o acaso para nós.
– Deuses morrem?
– Não. Apenas quando querem morrer ou quando outro deus os mata… – ele pareceu pensativo. – Pensado bem deuses morrem com mais frequência do que parece.
Tolo (pois o boné fora substituído pelos óculos), cansado da discursão decidiu intervir, bateu as mãos e como em efeitos especiais datados a bifurcação e a loja de instrumentos desapareceram dando lugar a estrada que agora sem divisões seguia em uma única direção. E assim os quatro seguiram.
No caminho Tolo aproximou-se da garotinha, que andava de mãos dadas com Adolf, e sussurrou para que ela ouvisse:
– Quer saber um segredo? – Não esperou a resposta. – A verdade é que Sábio e Tolo são o mesmo deus. Eu.
A menina virou-se para Adolf, com esperança de que ele tivesse escutado, entretanto ele agia como se não o houvesse, estava em silêncio.
– Não se preocupe, garotinha – Tolo a confortou –, certos tolos são sábios e suficiente para ignorar tão bem certas verdades que mesmo quando elas são jogadas em suas faces eles não compreendem, pois escolheram desaprendê-las.
– Então por que você finge ser duas divindades?
– Ora, não é óbvio? Que sábio, os poucos que servem um deus, gostaria de saber que serve o mesmo deus que os tolos? – Trocando os óculos pelo boné acrescentou:
– E que tolo em sã consciência gostaria de se rebaixar tanto ao ser comparado a um sábio? – E em tom de aviso, ainda disse, sem usar boné ou óculos:
– Garotinha, menininha, se fosse tola seria a maior sábia que conheço.
– Se não for sábia, serei tola e sendo tola sou uma sábia? Repetir tanto essas palavras esta me irritando!
– Será que é por isso que todo ventilador seca uma toalha? – Sábio, ou Tolo, pois agora usava óculos e boné, perguntou em real dúvida.
Porém como ocorria sempre que questionada, a garotinha não quis responder.
Ao lado de Adolf e seguidos logo atrás por Felícita, Sábio e Tolo, a garotinha não estava gostando das mudanças que a estrada apresentava naquela vez em especial. No céu, agora inteiramente negro, uma lua roxa tentava brilhar. Os tijolos estavam todos negros e todo comércio em volta, ainda que fechados, apresentavam ao menos uma luz roxa acesa.
A menina então se recordou de algo dito por Adolf no inicio de viagem. Se Felícita era a covarde e Tolo e Sábio o par de irmãos, então o que viria a seguir seria uma inimiga? Ela expos a dúvida ao deus e ele confirmou.
– E que inimiga é essa que visitaremos? – ela perguntou.
– Não há necessidade de saber agora, antes de vê-la – o deus das coisas banais argumentou.
– Mas alguém sempre diz que devemos conhecer nossos inimigos antes de confrontá-los.
– Visitaremos a deusa da crueldade, da loucura, e algumas outras coisas mais. Seu nome é – ele ergueu um dos braços e pôs a outra mão no peito enquanto olhava para o vazio, como se estivesse recitando um monólogo de algum personagem dramático – Valen-TI-na. – Pôs tanta força ao pronunciar a sílaba tônica do nome que parecia emocionado. – Mesmo não sendo a deusa do ódio, ela é alguém cheio dele.
– Que nome romântico! – a criança ironicamente ressaltou. – Tem certeza que ela não é outra deusa do amor?
A resposta foi dada por Felícita, que aproximando-se timidamente disse:
– Não. Todavia ela é meu ídolo.
– E ela é má?
– Não. – Adolf voltou a responder. – Maldade, assim como inimigos, é apenas um ponto de vista.
– Entretanto você ainda a chama de inimiga. Você a odeia?
Ele não respondeu, não precisava por achar a dúvida desnecessária. Ele não era deus de sentimento algum e, portanto não possuía nenhum, porém sempre se tornava exceção da própria regra.
– Adolf.
– Sim, garotinha?
– Mudei de idéia. Agora Cezar é mais belo que Adolf.
– Pois a partir desse momento Cezar é o meu nome. – Cezar confirmou.
– Então o que faz aqui Cezar? – uma voz rude e forte interrompeu.
Os olhares dos quatro se dirigiram para a dona da voz. Do breu sufocante provocado pelas luzes indecisas em volta surgiu Valentina, a deusa da crueldade. Se comparada aos outros três deuses ela era a de aparência mais comum, seu corpo magro e esbelto vestia um terno simples com a gravata frouxa e os primeiros botões da camisa abertos para revelar um decote. O longo cabelo negro provavelmente passaria da cintura se não estivesse preso em um rabo-de-cavalo para trás. Os olhos negros eram cruéis e sedutores. E sua mão carregava um simplório lápis sem significado.
Valentina anunciou que dali não passariam e Cezar, Felícita, e Tolo (ou Sábio) não protestaram, embora não estivessem submissos. Sabiam que era proibido desrespeitar um ser em sua própria casa ou um deus em seu território.
Valentina pôs-se a frente da garotinha e proferiu:
– Não há desonra maior do que conhecê-la, ó maculada criança.
A confusa menina observava a deusa e, assim como reparava em Felícita, via luxúria. Valentina percebeu e pediu a opinião dela, questionado se a menina a considerava bela.
– Você também é uma deusa da luxúria? – a criança respondeu com outra pergunta.
– Um tipo diferente de luxúria – a deusa disse.
– O sadismo. – Cezar revelou.
– O masoquismo. – Sábio (ou Tolo) destacou.
– O prazer cruel. – A tímida Felícita pronunciou.
E os três deuses calaram-se.
– Todo prazer é cruel – Valentina argumentou.
A deusa da loucura agarrou a garotinha pelos cabelos e caminhou enquanto a puxava entre gemidos de dor, dizendo:
– Você é tão fofa que tenho vontade de espancá-la, ó imunda criança.
Cezar e os outros pareciam não se importar com as ações da outra deusa, simplesmente ignorando os gemidos da menininha.
– Entenda, garota, sou a deusa das impuras como você. Sou a deusa do que um dia foi puro e hoje é maculado, sou a deusa da inocência perdida, e da crueldade que rege qualquer prazer.
– Mentirosa! – a garotinha gritou.
Finalmente Valentina largou os cabelos da menina e falou com desprezo:
– Se existisse ainda seria imunda e maculada. Quantos palitos se perderão na chuva de plástico?
Repentinamente cansada, a garotinha foi de encontro ao chão, sua respiração tornara-se pesada e irregular e sua saliva agora era engolida conscientemente (até quando ela esquecesse). Suas pálpebras tornaram-se pesadas e a inconsciência estava vindo silenciosamente. Valentina, próxima, olhava-a de cima com desprezo. Tolo (pois agora usava óculos), aproximando-se, observava com indiferença sem verdadeiramente se importar. Felícita, a mais distante de todos, possuía uma tímida e medrosa expressão. E Cezar, ajoelhado ao lado da menina, sorria-lhe um sorriso gentil que faria qualquer donzela se apaixonar, ele ergueu a criança semi-acordada nos braços e continuaram a caminhar por aquela estrada que já parecia não ter fim, e com a deusa da crueldade a acompanhá-los.
A criança tinha uma leve consciência do que acontecia a sua volta, porém soube que os deuses não trocaram palavras entre si. Gradualmente ela recuperou-se, infelizmente cansada demais para ter notado a bela mudança que é a metamorfose da estrada, quando percebeu toda ela já estava diferente.
Os tijolos haviam se tornado marrons como usualmente são e quase todos os comércios estavam abertos e quase todos eram lojas de eletrônicos com televisões a mostra em suas vitrines, as televisões em sua maioria mostravam cenas estáticas, como se os aparelhos estivessem com defeito, e as cenas mostradas pareciam de pessoas machucando umas as outras. E como das outras vezes havia alguém esperando-os como um bom anfitrião.
Reparando que a menina recuperava-se, Cezar a pôs de volta em seus próprios pés, ela ainda estava ligeiramente tonta, mas conseguiu se equilibrar. Caminhou até o anfitrião que os esperava no meio da estrada.
Ele provavelmente era maior que dois metros e sua figura parecia se impor. Era extremamente elegante, ainda mais que Cezar, todas as peças de seu terno eram brancas assim como o cajado de ferro em desnecessariamente se apoiava, formando com a chapéu de abas que escondia seu rosto um conjunto que se destacava, assimilando-o levemente a um mafioso. E até ai ele seria apenas mais um, se não fosse pelo horrível detalhe a seguir: grossos pelos marrons nasciam de todas as partes do seu corpo, as mãos eram grossas e negras e o rosto, quando a garotinha finalmente pode vê-lo, era o de um símio. Embora ele estivesse ereto como um homem e não possuísse cauda, era um macaco.
A menina hesitou em prosseguir, pois o achou o mais estranho de todos. O símio caminhou os passos que faltavam e frente e frente à criança, curvou-se e beijou sua mão, fazendo-a sentir nojo.
– É uma honra conhecê-la, ó doce garotinha.
Ainda em uma face de nojo ela conseguiu questionar:
– Quem é você?
– Chamo-me Ântropo – ele respondeu. – Sou o deus de todos os homens e mulheres ou de todos os humanos e humanas.
A menina pensou em varias coisas para dizer, mas todas elas eram demasiadamente ofensivas. Por isso ficou calada. Ântropo interpretou o silêncio como um sinal de admiração dela perante sua magistral figura e isso fez que, devido ao aumento de seu ego, ele batesse as mãos no peito, como um gorila querendo impor sua masculinidade e nesse ato toda a elegância dele esvaiu-se, todavia rapidamente recuperada quando conseguiu se conter, pigarreando para esconder o embaraço.
– Você é um macaco? – a menina foi direta.
Ântropo, muito surpreso, disse ofendido:
– Obviamente que não sou! Eu sou um deus! Tenha mais respeito! – Ele olhou para Cezar a poucos passos dele. – Ensine-a a ter respeito!
– A garotinha não é minha responsabilidade. – Cezar respondeu. – Crianças são verdadeiras e você como um bom ser divino gosta de ignorar a verdade.
– Não me desrespeite em meu território!
– Não é desrespeito contar verdades.
Um momento de tensão estendeu-se entre os dois, e no silêncio eles pareciam gigantes prestes a se enfrentar e deixar um rastro de destruição. Porém ambos contiveram-se.
O deus dos homens, ainda tentando recuperar o falho orgulho, ofereceu a mão gorda e negra de símio para a garotinha e disse:
– Acompanhe-me durante alguns minutos criança, e então poderá voltar ao seu amado deus indeciso.
Ela foi, ainda que enojada, com os outros deuses a segui-los.
Ântropo cantarolava uma música que ela não conhecia, porém que a fazia lembrar as músicas de Felícia e Sábio e isso a agradou. Então quis saber:
– Por que vocês, deuses, cantam ou tocam?
O deus das mulheres permitiu-se um meio sorriso.
– Porque música é algo tão poderoso que mesmo os deuses são submetidos a ela – ele explicou. – E aqueles que não se submetem tornam-se frios e distantes. Tome o deus das coisas banais e a deusa da crueldade como exemplo. – E depois mudou drasticamente de assunto. – Entenda garotinha. Não sou um macaco, sou apenas um hipócrita. Tão hipócrita que mesmo o significado de hipocrisia para mim é desconhecido. Não tenho culpa de amar a humanidade, Felícita é a culpada.
A menina esforçava-se para compreender, mas indiferente a isso Ântropo continuava:
– Nem sempre fui um hipócrita, os homens e mulheres me ensinaram a ser. Eles me mudaram e independente da mudança ser positiva ou não, sou hipócrita suficiente para dizer a amo. Você entende, menininha? A humanidade é o que é, mas nós deuses não somos tão diferentes. – Ele apontou para as cenas mostradas nas varias televisões ao redor, e suspirou parecendo quase orgulhoso. – Eles são lindos.
– Compreendo-lhe, contudo acho que está enganado. – A criança expôs a própria opinião. – Vocês, deuses, são mentirosos, bons em ignorar verdades, porém só ficaram assim por causa dos servos que você tanto ama, ó deus dos humanos. Eles são monstros por natureza e você foi apenas o maior infectado de todos pela doença chamada humanidade.
– É um ponto de vista… Você é muito inteligente, se desejasse como o desejo eu a amaria. Será que formigas carregam elefantes?
Eles cessaram os passos e a medida que os outros quatro deuses os alcançavam, a garotinha filosofava sobre varias coisas e isso a fez decidir que afinal aquilo tudo era inútil, pois ela não se importava. Então pensou mais e mais ao ponto de o tempo parecer acelerar apenas para ela. Decidiu pensar sobre o defunto que conheceria a seguir. Decidiu que não gostava dos mortos.
A menina questionou a ninguém em especifico para onde iriam, a resposta porém, foi dada pelo céu. Um fino feixe de luz o penetrou sem pedir permissão ou se anunciar. Nenhum sol podia ser visto, apenas uma tênue claridade que revelava o cinza infinito do céu. A criança olhou para cima e por alguma razão sentiu-se quase feliz. Quando voltou a baixar o olhar tudo estava diferente.
Os comércios, lojas e lanchonetes, diferentes dos de alguns segundos atrás, estava todos fechados. Os tijolos voltaram para a cor cinza e pombas ocasionais (também da cor cinza) voavam e ciscavam e o clima decidiu esfriar. A garotinha estava verdadeiramente impressionada, não se importava em como aquilo havia acontecido, queria apenas se maravilhar.
Cezar suspirou como se aquele lugar fosse ruim e a reação geral de todos os outros era negativa. Cezar não esperou perguntas:
– Bem-vinda ao dia, garotinha. Gostou dele?
A criança disse sorrindo:
– Vocês não?
– O dia pertence apenas a um. – Um sorriso vazio e melancólico preencheu o rosto do deus das banalidades.
Reparava-se claramente que ninguém com exceção da garotinha sentia-se confortável ali.
Distante deles, encostado em uma das paredes ao redor estava mais alguém, ele talvez fosse o anfitrião do dia. Quando a menina viu imediatamente o confundiu com um mendigo, pois ele vestia trapos e parecia dormir no chão usando pedaços de papelão como cobertor. Ele estava todo encapuzado e mesmo o seu rosto era um mistério, a única parte de seu corpo que podia ser vista eram suas mãos, que eram decrépitas e velhas de uma tonalidade levemente morena.
Com discrição ela caminhou em direção ao encapuzado sendo seguida por deuses insatisfeitos. A menina então viu nele algo que talvez não devesse ter visto.
– Pai? – disse uma surpresa garotinha. – Pai! – Correu em sua direção. – Pai, me responda, por que o senhor me abandonou?
O velho encapuzado permaneceu em silêncio, ignorando a presença de todos. A garotinha que era ignorante de si mesma, tinha plena certeza que aquele velho era seu pai. Cezar e os outros lentamente os alcançaram, com exceção do deus das banalidades, todas as outras divindades tinham desprezo e ódio em suas faces. Cezar, frio e indiferente, apresentou o encapuzado:
– Este é o deus da criação, o pai de todos. Ele é odiado por seus filhos, pois sempre disse que os amava, contudo os abandonou e escolheu cair na própria insanidade. Embora ele ainda esteja aqui, sua alma está morta.
– Abandonou-nos. – os outros deuses falaram em coro.
A menina não compreendeu, ainda antes de recordar que tinha um pai, sempre o amou. O ódio dos deuses parecia irracional. Apenas Cezar parecia não desprezá-lo, ele parecia não ter sentimento algum pelo pai e isso talvez fosse pior.
– Pai, por que o senhor nos abandonou? – a garotinha novamente tentou.
Mas não adiantava, o velho parecia ser indiferente aos cinco sentidos. A garota ponderou sobre o porquê de amá-lo, mas simplesmente o amava, não existiam porquês que explicassem isso. Um filho não escolhe os pais, porém ainda os ama. Odeio-te, pai?, ela questionou sem questionar. Não havia um porquê.
– “Se ajudar-me, ajudar-te-ei. Se amar-me, esquecer-te-ei e assim tu me odiaras. Ousaras me amar?” – disse Cezar. – Essas foram suas últimas palavras lúcidas.
A garotinha ainda se manteve em silêncio. Pai, dizia em pensamentos, por que me esqueceu? Teu coração é tão frio assim? Ame-me. Ame-me ou não terei escolha se não te odiar. Lembre-se. Contudo esses eram apenas desejos inúteis de uma garotinha tola.
Entretanto todos foram surpreendidos por uma inesperada ação do deus da criação. Ele deliberadamente abraçou a menina. Inveja; essa palavra resumiria bem o sentimento de quase todos ali.
– Ajuda-me – o velho sussurrou. – Salva-me. Contudo se é apenas mais uma entre todos os filhos meus. Apenas mais uma vergonha e decepção. Então desapareça! Esquecer-te-ei.
O encapuzado empurrou a garota fazendo com que ela caísse. Expulsando-a entre gritos e palavras de desprezo.
A garotinha sentiu-se triste ao ponto de desejar chorar, mas de forma tão rápida quanto impressionante toda a tristeza foi substituída por ódio. Um ódio tão repentino e profundo que talvez superasse o de Valentina e que nem todas as bênçãos de Felícita juntas fariam passar. A menina, ainda que surpresa com a velocidade com que o sentimento nasceu, abraçou-o com tanto carinho quanto sonhava em abraçar o pai que a amasse. Desejava matar, desejava o sofrimento do ancião. A sentença foi friamente anunciada por seus lábios:
– Odeio-te, ò pai meu.
E por fim uma garotinha, a felicidade, a sabedoria e tolice, a crueldade e a humanidade odiavam seu pai. A banalidade não sentia. E se não existisse o mínimo de lógica na ilógica dos deuses, o ódio por quase todos ali compartilhado tomaria forma física e ganharia uma vida. Cercados assim de sentimentos obscuros os cinco e Cezar prosseguiram. Deixando um velho maltrapilho e desprezado para traz.
Com todos em uma caminhada melancólica, a garotinha disse a Cezar:
– Deus das banalidades, me desculpe, mas Cezar também não é um nome que me agrada. Nenhum dos nomes, Adolf ou Cezar, é bom o suficiente.
– Pois agora volto a ser um deus sem nome – disse o deus sem nome de forma amável. – Não se preocupe com isso, garotinha. Nomes são apenas outra banalidade.
– Isso não é verdade – a menina protestou. – Seu nome é sua identidade. Definem-te.
– Mesmo sem um nome ainda sou alguém, não é? Ou nega e acha que sou ninguém?
A garotinha não respondeu.
O mundo então se tornou negro. Tudo, com exceção dos tijolos no chão, sumiu de forma misteriosa, até o sol que ameaçava nascer. O mundo agora era escuro e o solo cinza. Algo que pareciam ser flocos de neve iniciaram sua lenta dança no céu para caírem nas mãos de uma garotinha e revelarem-se na verdade cinzas que nasciam de algo que queimava a uma distancia infinita. Cinzas frias que talvez pertencessem a um fogo gelado. A garota pela primeira vez se sentiu em casa e realmente confortável. Alguém desejava conhecê-la.
Ao longe ela conseguiu ver algo que se destacava. Um trono que nascia do chão e era formado de tijolos. Ela e os deuses adiantaram-se na direção do trono e chegando nele viram uma figura alta e imponente ali sentada. A tanga branca que ele usava pouco escondia o corpo negro e extremamente belo e definido ou a falta de pelos por todo este. E os olhos de diamante mostravam todo o desprezo por ele merecido, que sem pecado algum era o maior pecado de todos.
– Quem é ele, deus das coisas banais?
– Este é um deus. Deus de coisa alguma – explicou o deus sem nome. – Ele não tem domínio sobre algo e, portanto é um deus de nada.
E por qual razão existiria um deus assim?, a garotinha pensou em inocência.
– É uma honra conhecê-lo, ó deus de coisa alguma. Tenho três perguntas a você.
O deus com um aceno permitiu que ela questionasse.
– Qual é o seu nome?
Sem mover os lábios ele respondeu: “Chamo-me Eú”. A menina não sabia, mas a resposta de Eú foi ouvida apenas por ela.
– Quem são os homens?
“São seres com um céu sem estrelas, portanto são seres sem risos ou lágrimas, com um céu de cinzas.”
– Quem sou eu? – A questão foi respondida pelo silêncio. Era primeira vez que a criança desejava saber quem era.
Eú levantou de seu trono, tornando-se ainda maior que Ântropo. Com as mãos nuas ele arrancou de debaixo do chão um espelho, que mesmo não dito ficou claro ser o espelho perfeito. O espelho tinha o tamanho e diâmetro da menina, ele o apontou para ela, e assim a garota viu seu reflexo. E era um reflexo imperfeito. Uma mancha borrada.
– Uma garotinha. – Eú respondeu usando a própria voz.
Longe de estar abalada. Aquela garotinha decidiu que ali seria o fim. O pobre final. Pois aquela viajem não fazia sentido. Virou-se para o deus sem nome e disse:
– Seria ninguém. – Então olhou para Felícita. – Abriria todas elas. – Então para o deus da sabedoria e da tolice. – Não, não é. – Então para Valentina. – Dezessete deles se perderão. – Então para Ântropo. – Às vezes sim. – Então para o pai, mesmo que ele não estivesse lá. – Eu já ousei, pai, e por isso odeio-te. – E por último para Eú:
– Obrigada.
E assim todos, com excessão do deus sem nome, desapareceram. O deus restante, com uma expressão quase sínica, se ajoelhou diante da garotinha e romanticamente beijou sua mão.
– Sei que me ama. – ele disse. – E se em algum dia impossível eu chegar a sentir, sei que te amarei.
Em um final de leigos, a garotinha viu-se solitária. Enfim abandonada. Sem ninguém a sua volta.
Talvez…, aquela garotinha permitiu-se sonhar. Talvez em algum lugar houvesse o brilho da esperança para aquela terrível e amável garotinha, que era desconhecida de si mesma e que dividia com os deuses um pai que desistira do próprio ser. Mas aqueles eram devaneios tolos de uma criança cheia de inocentes máculas, que amava banalidades e odiava a felicidade, que não via diferença entre sabedoria e tolice e que desprezava aqueles que possuíam seus mesmos defeitos. Uma garota que aparecia borrada no espelho perfeito. Uma tomografia esquecida de um enfermo já morto.
Oh garotinha, o que pode fazer se nada se fará por ti? Pobre menina, que lamenta e se perde, não mais cercada de deuses imperfeitos, lamentando sem lágrimas. E que lágrimas há para se derramar? Garotinhas não choram…
Por Erick Lima