RESENHA DO FÃ – Com Cristine

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Saudações, caros leitores! Agora, a Cristine, uma leitora bastante participativa nessa coluna, trás a resenha do livro “Sobrevivente” de Chuck Palahniuk! Antes, vou usar o espaço para avisar que qualquer leitor do blog pode participar da coluna “Resenha do Fã”, bastando somente entrar em contato conosco, pedir a lista de escritores que serão homenageados, escolher uma obra e resenhar.

Bio: Meu nome é Cristine, moro em São Paulo, sou analista de sistemas, dando os primeiros passos na área editorial como preparadora/revisora de textos. Mantenho o blog printStackTrace(), em que escrevo sobre meus principais interesses – ou vícios: livros, cinema e corrida -, e o Cafeína Literária. Tenho também um outro blog, Hora do pão, no qual publico algumas das receitas mais consumidas aqui em casa.

Capa
Capa

Antes de aceitar fazer a resenha, admito que não sabia que Palahniuk era autor de tantos livros, além de Clube da Luta. Tinha conhecimento apenas de Snuff e Choke. Sorte minha. Tive várias opções à disposição na hora de escolher qual deles ler e resenhar. Sobrevivente é o segundo romance do autor e, conforme a orelha do livro, “é uma comédia demente de pesadelos, um tapa na cara da sociedade ocidental”.

Sinopse: Tender Branson sequestra um avião e decide se matar. Mas, enquanto o avião possuir combustível, ele resolve contar a história de sua vida para a caixa-preta, numa tentativa de explicar como diabos um sujeito decadente como ele quase se transformou em uma celebridade religiosa.

Logo ao abrir o livro e folheá-lo até o início do texto, uma surpresa: o “primeiro” capítulo está numerado como sendo o 47o. E o que seria a primeira página é a página 353. Reação imediata: pensar que é um erro de impressão. Contudo, uma nota do tradutor, como a se eximir de qualquer culpa, já vai explicando que “os capítulos, bem como as páginas, são numeradas de trás para a frente.”. ‘Ok, e agora?’, pergunta-se o leitor. A reação seguinte é correr ao final do livro e verificar se a estória se inicia ali, se será necessário lê-lo como se fosse um mangá. Percebe-se logo que não. Apesar de a primeira e a última frase do romance serem idênticas e apesar da numeração insólita, a leitura pode ser feita do modo “normal”. Assim, antes mesmo de iniciar a leitura, o autor já planta uma pergunta na mente do leitor. Assumo que, em mim, teve o efeito imediato de me instigar a começar a leitura o mais rápido possível. Não sei se o autor teve outra intenção com essa inversão além da que eu apreendi. Mas a mim pareceu uma contagem regressiva até o momento em que o combustível do avião acaba. E funciona muito bem. A leitura avança e é inevitável, ao olhar o número da página em que estamos, pensar “Faltam N páginas para o combustível terminar”.

“Mas, se você consegue me ouvir, preste atenção. E, se estiver prestando atenção, então o que você encontrou é a história de tudo que deu errado. Isto é o que você chamaria de registro de tudo que deu errado. Isto é o que você chamaria de registro do voo 2039. A caixa-preta, como as pessoas a chamam apesar de ser laranja, contém, no interior dele, um emaranhado de fios que faz o registro permanente de tudo o que restou. O que você achou é a história do que aconteceu.

E vá em frente.

Você pode aquecer esses fios até ficarem incandescentes e eles ainda contarão exatamente a mesma história.” (p.2)

O livro é narrado em primeira pessoa. O que faz sentido, já que o protagonista está contando sua própria estória para a caixa-preta do avião. E ele o faz como se estivesse conversando com alguém e contando como foi sua vida até ali. Pode não fazer muito sentido, mas a narrativa é pouco subjetiva, apesar de Tender eventualmente falar o que pensa. Mas essencialmente sua narrativa concentra-se no que ele faz e no que ele vê as outras pessoas fazendo ou falando. Há um fluxo de consciência, lógico. Mas, comparando com uma escritora que gosto bastante, é o oposto de Clarice Lispector. Acompanhar seus pensamentos não faz o leitor entrar num vórtice de divagações e digressões. As frases são curtas, diretas, objetivas. E Palahniuk imprime ritmo ao texto intercalando de maneira bastante inteligente o “lado de dentro” com o “lado de fora”.

Fez-me lembrar de Caetano Galindo ao comentar sobre a escrita de James Joyce em Ulysses, afirmando que Joyce acreditava que a forma deve servir ao conteúdo, complementando-o. E Palahniuk consegue fazer isso de modo eficiente. O formato do texto é o retrato do personagem, a representação do modo como o pensamento dele funciona e da vida medíocre e metódica que leva. Em alguns trechos, chega a ser repetitivo. Contudo, a mente do personagem funciona assim. Faz todo o sentido que o texto reflita isso. Por exemplo, há um capítulo – talvez dois ou três – em que o leitor “aprende” a tirar manchas de praticamente qualquer coisa em qualquer superfície. Parece um daqueles manuais de cuidados com a casa. E essas dicas se alternam com os pensamentos de Tender sobre sua vida, sobre os patrões, sobre seu passado. Palahniuk consegue deixar o leitor com uma sensação de monotonia tão grande que é quase inevitável pensar “Como Tender aguenta viver assim?”.

“Não é a habilidade profissional mais lucrativa do mundo, mas, para tirar manchas de sangue do papel de parede, prepare uma pasta de amido de milho e água fria. Funciona também para tirar sangue de um colchão ou de um sofá. O truque é esquecer o quão rápido essas coisas acontecem. Suicídios. Acidentes. Crimes passionais.

Basta se concentrar na mancha até que sua memória seja totalmente apagada. A prática realmente leva à perfeição. Se é que dá para falar nesses termos.

Ignore a sensação de ter como único talento verdadeiro a ocultação da verdade.” (p.328)

Outra característica importante do texto é que o autor acredita na inteligência e na imaginação do leitor. E isso, no meu entender, é um atrativo enorme. Ele mostra apenas o estritamente necessário. O restante fica a cargo do leitor preencher. As frases breves, quase entrecortadas, os capítulos pouco extensos, tudo transpira objetividade. Não há excessos. Nem explicações desnecessárias ou redundantes. Em suma, para Palahniuk, o leitor não é burro e possui bagagem cultural suficiente para entender as entrelinhas, sem necessitar receber tudo “mastigado”.

Não bastasse o formato da narrativa ser muito cativante, a estória é envolvente. Palahniuk, através do relato de Tender, faz uma crítica ácida, mordaz, incisiva à sociedade de consumo, ao culto à fama, à supervalorização da aparência, à fabricação de celebridades, à exploração da fé dos menos instruídos, à monetização das crenças. E tudo isso com um humor negro que faz o leitor rir nos momentos mais descabidos e menos “politicamente corretos”. E o mais interessante e, talvez, o mais triste é que sua ficção se parece demais com a realidade atual. Um bom livro deixa o leitor com “ressaca literária”, aquela sensação pós-leitura que quase o impede de começar a ler o próximo livro antes de digerir o conteúdo do recém-lido completamente. E Sobrevivente é assim.