Saudações, caros leitores! A comemoração pela data de nascimento de Bram Stoker continua e agora é o momento da resenha feita por uma fã do escritor. Sem muita cerimônia, deixo vocês com a Cristine.
Bio: Meu nome é Cristine, moro em São Paulo, sou analista de sistemas, dando os primeiros passos na área editorial como preparadora/revisora de textos. Mantenho o blog printStackTrace(), em que escrevo sobre meus principais interesses – ou vícios: livros, cinema e corrida. Tenho também um outro blog, Hora do pão (horadopao.blogspot.com), no qual publico algumas das receitas mais consumidas aqui em casa.
Quando aceitei resenhar um livro de Bram Stoker para o Leitor Cabuloso, obviamente que o primeiro nome que me veio à mente foi “Drácula”. Eu gostaria de poder resenhar outra obra do autor, mas, por uma falha indesculpável do setor editorial brasileiro, salvo um ou outro conto incluído em coletâneas, nenhuma outra obra dele foi publicada em território nacional. Diferente do que possa parecer, além de sua obra mais famosa, Stoker escreveu mais de uma dezena de livros que certamente devem valer a pena serem lidos. E já que “o que não tem remédio, remediado está”, a resenha acabou sendo do livro que possui um dos meus vilões favoritos.
É raro encontrar alguém que não conheça o Conde Drácula. Aliás, antes da onda de criaturas fantásticas purpurinadas, a maioria das pessoas descreveria um vampiro com as características do Drácula de Stoker, mesmo não tendo lido o livro. Mas é importante lembrar que Stoker não “inventou” o mito do vampiro. Nascido na Irlanda, no século XIX, Stoker é considerado o principal colaborador do desenvolvimento do mito moderno do vampiro. Por séculos, antes dele, existiram fábulas, lendas, estórias aterrorizantes sobre sugadores de sangue, mortos-vivos, entre outras denominações que essas criaturas receberam. O que Stoker fez foi pesquisar muitas dessas fontes, principalmente relatos do folclore romeno, escolhendo as características que achou mais pertinentes. E, mixando essas características às de uma personalidade real – o príncipe Vlad III, O empalador (em romeno: Vlad Țepeș) -, criou um personagem tão interessante e complexo que faz parte do imaginário popular até hoje. A propósito, é justamente essa perenidade que faz do livro um clássico.
Para os que não conhecem, segue uma ligeira sinopse do livro. Jonathan Harker, um jovem corretor de imóveis, é enviado da Inglaterra à Transilvânia para fornecer informações sobre uma propriedade londrina a um nobre romeno, Conde Drácula. Sua viagem transcorre conturbada, cercada de perigos e mistérios. Bem recebido no castelo, percebe alguns detalhes intrigantes sobre seu anfitrião. Estranhos fatos aterrorizam o rapaz que, atormentado, tenta fugir a todo custo. Enquanto isso, em Londres, Mina Murray, noiva de Harker, estranha a ausência de notícias do noivo. Sua melhor amiga, Lucy, adoece e, apesar das inúmeras transfusões de sangue a que é submetida, não exibe qualquer sinal de melhora. O médico da família, Dr. John Seward, é chamado para cuidar de Lucy e, ante sua piora dia a dia, recorre a um ex-professor, Dr. Van Helsing, especialista no tratamento de problemas estranhos e obscuros.
Apesar de o caráter fantástico da estória ser o que mais se sobressai e, consequentemente, ser o que é mais memorável – principalmente por causa da força do personagem de Drácula -, é perfeitamente possível categorizar o livro como um drama e não apenas como uma estória de terror. Retirando-se esse entorno não realista, a obra pode ser encarada como uma trama sobre manipulação e controle sobre a vida de outras pessoas e, mais especificamente, sobre a vida das mulheres. Refletindo o período em que foi escrita, a obra revela uma visão maniqueísta da sociedade do século XIX. De um lado, os homens – fortes, inteligentes, sagazes, mandões, quase opressores. E, de outro lado, as mulheres – fracas, frágeis, ingênuas, obedientes, submissas. É interessante notar que a principal personagem feminina, Mina Murray, destoa desse “modelo”. E que quanto mais ela se distancia do padrão, mais Drácula procura demonstrar seu domínio, sobrepujando sua vontade à dela.
Assim como a maioria dos clássicos, Drácula se presta a diversas interpretações. Pode ser lido sob diversos pontos de vista, e o citado acima é apenas um deles. Aproveitando, o livro tem uma característica narrativa que tem tudo a ver com isso. Aliás, “ponto de vista” é a palavra-chave. O autor mostra ao leitor que nem sempre as coisas são o que parecem ser. As aparências enganam. E Stoker exemplifica isso utilizando um recurso narrativo bastante interessante: a estória não tem apenas um narrador. Não há um narrador onisciente, encarregado de contar tudo ao leitor. Toda a estória é contada através de diários pessoais, cartas, diários de viagem, notícias de jornal, ou seja, cada personagem-narrador relata os eventos de acordo com seu ponto de vista. E cabe ao leitor juntar, justapor essas narrativas a fim de “construir” sua própria versão do que está havendo. Contudo, a realidade, os fatos podem ser distorcidos pelos olhos do personagem – não necessariamente de modo proposital. E, na minha humilde opinião, esse é o toque de gênio de Stoker. A dúvida, a incerteza sobre o que realmente está acontecendo faz do livro uma obra-prima do suspense.
Ainda sobre o uso desse recurso narrativo, é interessante notar que nenhum dos relatos é feito pelo próprio Drácula. Mesmo ele sendo obviamente o protagonista, já que os demais personagens reagem às suas ações, não se sabe em momento algum sua versão dos fatos, seus pensamentos, suas motivações. E isso serve certamente para aumentar o mistério a seu respeito e a angústia dos personagens – e do leitor também – sobre suas intenções. Tudo o que o leitor sabe do conde é conhecido através do olhar dos outros personagens. E isso reforça o questionamento acerca do que é real e do é apenas percepção do narrador. Apesar de atualmente ser raro o uso de narrativas em missivas – ou narrativa epistolar, como preferem alguns – e, por conta disso, os leitores não estarem tão acostumados a esse formato – “cartas? quem hoje ainda escreve cartas?” -, vale a pena investir um pouco de paciência pois a “viagem” literária vale muito a pena.
Para quem se interessar, há desde edições caprichadas em capa dura e com ilustrações até a edição pocket – que por acaso é a minha. Mas como a obra já caiu em domínio público, é possível também fazer download do texto integral em alguns sites. Enfim, leitura super recomendada ao alcance de todos.