[Resenha] Elas em Legítima Defesa – Sara Stopazzolli

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Capa do Livro. Fundo preto com algumas faixas roxas verticais. Em primeiro plano com letras vermelhas ocupando toda a capa, a palavra
Capa do Livro. Fundo preto com algumas faixas roxas verticais. Em primeiro plano com letras vermelhas ocupando toda a capa, a palavra "Elas", e abaixo, em branco e letras pequenas, o restante do título "Em Legítima Defesa"

O feminicídio se tornou um dos tipos de crimes mais comuns nos noticiários diários. Não que ele já não existisse antes, mas a expressão feminicídio é uma expressão recente. Antes entendida como homicídio passional os casos são os mais variados possíveis. Em Elas em Legítima Defesa, as autoras Sara Stopazzolli e Juliana Russo fizeram uma longa pesquisa com seis mulheres que cometeram homicídio cujo caso se constituía uma legítima defesa contra seus respectivos parceiros.

O objetivo é buscar compreender como esses crimes aconteceram, como a sociedade passou a enxergá-las, como foram julgadas pelo sistema judiciário e se elas foram ou não capazes de levar sua vida adiante.

Uma causa importante

Quero em primeiro lugar aplaudir a iniciativa da DarkSide em publicar um livro tão corajoso. As vendas do e-book nos 3 primeiros meses terão seus lucros revertidos para uma organização de amparo às vítimas de violência doméstica. Aviso logo que se trata de um livro com uma temática pesada e as situações vividas pelas personagens podem afetar pessoas mais sensíveis. Se você não está em um bom momento ou com o coração tranquilo, sugiro não pegar essa leitura por agora.

Por outro lado, acho que se trata de um livro extremamente necessário no contexto em que vivemos nos dias de hoje. O aumento da quantidade de feminicídios (e eu já vou chegar nesse assunto a seguir) fez com que o debate se ampliasse e livros como esse tivessem espaço. Seja você homem ou mulher, solteiro ou casado, este é um livro que vai abrir os nossos olhos para o quanto estamos diante de uma sociedade ainda patriarcal e conservadora que enxerga na mulher um papel inferior e subalterno.

A edição da DarkSide está excelente. Apesar da editora ser conhecida por seus livros de capa e acabamentos luxuosos, Em Legítima Defesa saiu apenas em ebook, porém sua edição não deixou a desejar. Agradável, bem dividido, ricamente ilustrado com gráficos e imagens. Para quem usa tablet ou smartphone vai reparar que as letras são coloridas (em roxo ou vermelho quando não em preto). Frases em destaque estão em tamanho maior. Eu li no meu Kindle Fire (um tablet Kindle que infelizmente não tem à venda no Brasil) e a experiência foi muito positiva. Tanto que eu já separei outro ebook da DarkSide para adquirir. A revisão do livro está ótima; percebi uns typos aqui ou ali, mas nada que algumas atualizações não resolvam e não me incomodou nem um pouco.

Respeito às vozes das mulheres

As autoras empregaram o estilo de escrita da história oral. Elas registraram fielmente as entrevistas que realizaram com as seis pessoas. Foi uma pesquisa que durou alguns anos que elas acompanharam o desenrolar dos acontecimentos do processo delas. Posso estar enganado, mas vi uma forte inspiração no tipo de escrita usada pela Svetlana Aleksiévitch (dos sucessos Vozes de Chernobyl e A Guerra não tem rosto de mulher) em que há uma separação dos capítulos em temas.

Temos cinco capítulos bem claros: um em que somos apresentados às personagens, um segundo em que elas comentam sobre o dia em que elas mencionam a rotina da violência doméstica; um terceiro onde elas contam o dia em que o homicídio aconteceu; um quarto onde temos o julgamento das personagens e um último capítulo onde é visto o que aconteceu com cada uma delas. Ao final temos algumas fotos e alguns textos extras falando sobre a visão sobre o feminicídio nos dias de hoje e o papel do Estado no processo.

O mapa da violência

Podemos ver que a maior parte dos casos de violência doméstica se passa em comunidades mais pobres (embora não esteja única e exclusivamente relegados a estes lugares). Ao longo do texto vemos o quanto as mulheres envolvidas ou não tinham possibilidades ou lhes era vedada a oportunidade por seus companheiros. Uma delas foi encontrada pelo seu parceiro em uma zona de prostituição.

Eu trabalho em uma escola que atende a uma comunidade carente. E a gente sabe de vários casos de violência doméstica nas redondezas. Já até tivemos que resolver um caso desses que ocorreu dentro da escola. A falta de opção para poder tocar a vida é um dos impeditivos para muitas delas abandonar uma vida de violências e agressões. Não é o único, mas é um dos principais. Outro dado importante trazido pelas autoras é o quanto mulheres negras são alvos mais frequentes.

Vale ressaltar o quanto as autoras foram inteligentes ao mesclar um intenso trabalho de história oral com dados de pesquisas recentes sobre violência contra a mulher. Muitas vezes achamos que a mídia exagera na maneira como aborda o tema ou que existe um certo sensacionalismo ao trazer o feminicídio sempre à baila como a ordem do dia. Nada disso. O problema é que os casos realmente aumentaram. Os dados estatísticos não mentem. Não há fake news que coloque para baixo do tapete boletins de ocorrência, e isso se pensarmos que existe uma enorme subnotificação de casos de violência contra a mulher. Como no caso da mulher que chegou na delegacia com um nariz quebrado e um dedo fraturado e mesmo assim foi tratada como se nada tivesse acontecido.

Os agressores estão próximos

Outro tema importante tocado pelas autoras tem a ver com o amor que elas sentem pelos seus parceiros. Por que permanecer em uma relação virulenta? Oras, é possível explicarmos o amor? Não vemos casos de conhecidos que se envolvem com parceiros com alguma atitude errada e a pessoa jura que é capaz de “consertar” o outro? É uma justificativa completamente plausível e é uma vinda do coração. Para quem está de fora é fácil racionalizar as circunstâncias de uma relação de agressão.

Em um dos casos, a mulher se dizia triste por ter perdido o parceiro. Pedia perdão a ele enquanto ele se esvaia em sangue enquanto eles tentavam chegar ao hospital. Os assassinatos em legítima defesa são fruto sim de um acontecimento infeliz e acidental, mas é algo que vem sendo construído durante anos de relação tóxica. As autoras são muito felizes ao nos demonstrar as complexidades da relação entre duas pessoas. Não é preto e branco.

Nossa parcela de culpa

Além disso, ainda temos uma sociedade que julga. Que toma para si o papel de vigiar e punir. Que observa a tudo como um voyeur interessado e, ou nada faz ou tudo julga. Quantas vezes não vimos casos de feminicídio onde a culpa sempre acabava caindo na mulher? Em que a mesma “deu a brecha” para o marido? Ou o quanto uma mulher pode ficar marcada por um acontecimento trágico a ponto de nunca mais ter uma vida normal?

Nesse vai e vem do cotidiano em que o vizinho parece tão distantes porém tão próximo estamos tão encerrados em nossos próprios quadrados que silenciamos diante de casos de violência contra a mulher. Ouvimos falar, mas achamos que não devemos nos meter. Na solidão de nossas casas não sabemos o que acontece dentro desses espaços. Os pequenos dramas familiares. Por exemplo, o caso do menino que pediu ajuda diversas vezes ao vizinho e foi por ele sumariamente ignorado.

A falta de justiça para as vítimas

Temos também um sistema judiciário brasileiro falho. Que ou não dá um suporte adequado às mulheres, minimizando situações que poderiam ter sido resolvidas sem maiores ocorrências ou agilizando julgamentos evitando que as famílias sentissem ainda mais a dor da perda. Acompanhando o sofrimento das personagens pudemos perceber o quanto poderia ter sido evitado se houvesse um aconselhamento adequado em momentos anteriores.

Se houvesse uma confiabilidade maior no sistema de segurança pública. Como a mulher do policial vai denunciá-lo se ela tem medo de ser culpabilizada pelos próprios colegas da corporação? Ou o promotor que usa de todo o seu arsenal de preconceitos e conservadorismos para julgar uma das entrevistadas? Entendo que existe todo o rito processual e o julgamento muitas vezes toma ares teatrais, mas determinados casos são tão cristalinos que nem precisam chegar a juízo como foi um dos casos.

Enfim, Elas em Legítima Defesa é um livro que abre nossos olhos diante de uma conjuntura cada vez maior de violência e de incompreensão. Onde precisamos refletir melhor sobre aonde queremos chegar e como devemos chegar. Aonde precisamos aprender a sermos mais compreensivos uns com os outros. A evoluirmos como sociedade e como seres humanos. Me preocupo demais com os rumos que estamos seguindo porque a cada minuto uma mulher sofre um ato de agressão no Brasil. E os casos só continuam aumentando.

(Essa resenha foi escrita pelo Paulo Vinícius, membro da equipe do Perdidos na Estante. Leia mais resenhas dele no site Ficções Humanas).

Nota

Cinco selos cabulosos. A maior nota do site.
Cinco selos cabulosos. A maior nota do site.

 

 

 

 

Garanta a sua cópia de Elas em Legítima Defesa e boa leitura!

Ficha Técnica

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Nome: Elas em Legítima Defesa
Autor: Sara Stopazzolli e Juliana Russo
Edição:
Editora: Darkside Books
Ano: 2020
Páginas: 224
ISBN: B08G3K4BGQ
Sinopse: Feminicídio, uma triste realidade. Vítimas de violência doméstica rompem o padrão de silêncio na nossa sociedade em um livro urgente e chocante.

Só em 2017, 4.936 mulheres foram mortas no Brasil, o maior número registrado desde 2007. Foram cerca de treze assassinatos de mulheres por dia, segundo o Atlas da Violência publicado em 2019. E 88% das vítimas de feminicídio são mortas pelos companheiros ou ex-companheiros.

Resultado de uma pesquisa que durou mais de quatro anos, Elas em Legítima Defesa: Elas sobreviveram para contar é uma jornada de empatia e compreensão que dá voz às mulheres vítimas de violência obrigadas a matar seus companheiros em legítima defesa. O livro acompanha as histórias reais de Nice, Soraia, Deise, Doralice, Emília e Úrsula, mulheres envolvidas em relacionamentos abusivos e capturadas no horror da violência doméstica — situações dramáticas que atingem milhões de mulheres no Brasil todos os dias.

A obra apresenta histórias inéditas, novos dados, ilustrações da artista Juliana Russo, frames do documentário, além de estatísticas recentes e o aprofundamento de um tema — infelizmente — mais atual do que nunca. Em 2019, uma pesquisa divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Datafolha, relatou que no ano anterior 536 mulheres foram vítimas de agressão física por hora no Brasil. São 4,7 milhões de mulheres condenadas à violência doméstica, que proporciona memórias atrozes, origem de muito traumas, que, por sua vez, se convertem em silêncio.

Elas Legítima Defesa: Elas sobreviveram para contar rompe esse padrão de silêncio na nossa sociedade e resgata a voz e a dignidade de mulheres que vivenciaram o verdadeiro horror — sobreviveram para contar.