[Resenha] Nada me Faltará – Lourenço Mutarelli

Recorte da capa do livro. Uma pintura com fundo preto, formas humanóides dão impressão de estarem cobertas por tecidos em tons azulados. Na base, o título do livro e o nome do autor.
Recorte da capa do livro. Uma pintura com fundo preto, formas humanóides dão impressão de estarem cobertas por tecidos em tons azulados. Na base, o título do livro e o nome do autor.

Conheci Nada me Faltará não faz muito tempo. Foi no início do ano passado (2018). Na época, estava passando por uma fase nova, que vinha sendo bem difícil para mim. Trabalhava em uma livraria na época, em um horário péssimo. Chegava em casa depois das onze e meia e, no dia seguinte, eu tinha de acordar às cinco e quarenta, seis horas da manhã, para chegar na aula às sete e tentar não dormir enquanto alguém falava sobre coisas não tão interessantes quando você está quase desmaiando de sono. Quando todas as aulas acabavam, tinha de pegar mais um ônibus e ir direto para o trabalho, comer um almoço frio e sem graça, como acontece com a maioria das pessoas no Brasil, assalariados, violentados por essa lógica maluca da nossa sociedade.

Certamente, você está se perguntando por que comecei falando sobre isso, o que tem a ver com o livro, se estou tentando ser panfletário em algum sentido ou coisa do tipo. A verdade é que essa fase da minha vida só tinha a ver com o livro, na medida que os personagens do Mutarelli eram pessoas ferradas como eu. Me conectar com elas, então, era bem fácil. Estou falando isso, porque ainda sou um cara ferrado, apesar de estar bem menos do que estava na época que conheci a obra dele. Ainda assim, consigo me conectar com esses sujeitos meio descolados, deslocados da realidade, pessoas estranhas.

Nada me Faltará é um daqueles livros que parecem muito acessíveis a qualquer leitor, pois tudo é contado por meio de diálogos simples e cotidianos. Por outro lado, o livro aborda alguns temas que foram, pelo menos para mim, difíceis de compreender e lidar. A história é sobre um sujeito que, depois de um ano desaparecido, volta para sua família e conhecidos. Mas para ele, nada tinha acontecido. Nenhuma lembrança e nem a mais vaga ideia, segundo ele, de onde estavam sua esposa e sua filha, que também tinha desaparecido na mesma época que ele. Então, toda a história gira em torno de um dez personagens, que vão conversando ao longo do livro e fazendo os acontecimentos e personagens se tornarem mais concretos.

O plot básico desse romance, na minha visão, não é o mais importante no livro. E, talvez, eu esteja reprisando um clichê ao dizer que a relação entre os personagens foi o que mais me interessou. Já devo ter dito isso aqui e em outros lugares, porque, no fim das contas, é o que me cativa mais. Nesse caso, o livro é todo em diálogos, de forma que tudo se desenvolve por meio de dois ou mais personagens, todas as visões, perspectivas e opiniões emergem de uma troca. Em uma entrevista concedida ao então blog (e, atualmente canal do youtube) Livrada, o Lourenço comenta que o movimento mais natural a se fazer na sua escrita era partir para um livro composto só por diálogos, pois durante toda sua obra anterior vinha fazendo um trabalho de sintetização da prosa.

Foi muito simples na verdade, eu estava pensando justamente nos quadrinhos, uma história contada só com diálogos. Foi um ponto de referência pra mim. O mais difícil foi achar uma forma de resolver a história só em diálogos, porque eu queria suprimir o máximo de informações. Eu queria um diálogo muito cotidiano, que não fosse muito rebuscado ou poético, porque os dois primeiros livros têm um estilo sintético, mas têm também uma poesia que eu queria evitar nesse.” – Lourenço Mutarelli em entrevista ao blog Livrada

Assumindo esse tipo de linguagem, o autor não apenas traz as coisas para uma realidade  cotidiana, mas também torna ainda mais obscuro o mistério acerca do passado desse personagem desaparecido e os mistérios que cercam o passado dos outros personagens.

Então, se por um lado a linguagem simples aproxima o leitor, por outro lado ela também aumenta a dificuldade das coisas. Tudo é muito obscuro, mal explicado. Para mim, isso não é de forma alguma um defeito, afinal, se o objetivo era fazer um livro realista, chegou bem próximo disso. As coisas não são claras ou bem explicadas na vida da maioria das pessoas, pelo contrário: as coisas são meio confusas, sem sentido primeiro. Como um leitor especialmente afeito aos diálogos (e escritor também, pois sempre gostei dessa forma de contar histórias, que usei em um conto publicado na antologia Realidades Cabulosas I, desse mesmo site, chamado Filosofia trágica), gostei de como essa estrutura serve não apenas a forma, mas também ao conteúdo da obra, uma coisa que, pela minha experiência, não é nem de longe fácil de se fazer.

Em uma resenha pulicada na Folha de São Paulo, a consagrada escritora Noemi Jaffe escreveu sobre a linguagem de Nada me Faltará:

Afinal, a linguagem é tão próxima do nosso dia a dia, o ritmo é tão fugaz, uma ironia fina faz com que todas as personagens sejam tão medíocres, que a narrativa parece mesmo muito plausível e os personagens são todos reconhecíveis. Mas alguma coisa estranha subsiste e, no frigir dos ovos, quem pode estar enganado é o leitor. Nada fica muito explicitado: a mãe de Paulo estranha seu comportamento “blasé”, mas não se explica; Carlos parece ter muito mais implicações além da amizade; o investigador desconfia que Paulo seja um assassino, mas não expõe claramente os motivos; há uma garota de quem Paulo se lembra de ter gostado, após a ridícula sessão de hipnose, mas ela também não parece ter muita importância. Noemi Jaffe em resenha publicada na Folha de São Paulo

A autora está tratando do estranhamento que o livro causa. Vale lembrar que na análise literária, o estranhamento é entendido como uma peça chave. Para os formalistas russos, era o que diferenciava os textos literários e os não literários. Em Nada me faltará, o livro todo parece uma história ouvida, presenciada a distância. No entanto, é esse elemento chave que dá todo o tom literário do texto. Noemi Jaffe comenta ainda sobre o fim do livro. Para ela, a tensão que acompanha a história do início ao fim se perde no encerramento do romance. Segundo ela, é um anticlímax. Não me parece que seja negativo o livro ter uma tensão que se perde ao final, já que a escolha de deixar as questões tão em aberto como Mutarelli deixa implica também em uma certa aceitação daquela situação, ao menos é o que me parece. Se por um lado, a tensão que acompanha todo livro se perde, por outro lado não me parece possível encerrar deixando tantos elementos em aberto sem também parar as coisas abruptamente.

Depois de Nada me Faltará, o Lourenço Mutarelli já publicou muitos outros romances. Alguns de seus livros foram adaptados para o cinema. Então, apesar de ser um livro muito bom, por ser tão curto, pode afastar muitos leitores pela sua confusão. Ver uma adaptação como O cheiro do Ralo, filme de Heitor Dália, ou ler um dos quadrinhos do autor pode ser uma maneira mais fácil de se interessar por sua obra. Há também ótimas entrevistas com ele, em podcasts e em vídeos, só dar uma googlada para achar. Indico uma bem longa, dada para a uma biblioteca pública em São Paulo, um programa chamado Segundas Intenções, que você pode acessar aqui.

Nota

 

 

 

 

Garanta a sua cópia de Nada me Faltará e boa leitura!

Ficha técnica

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Nome: Nada me faltará
Autor: Lourenço Mutarelli
Edição: 1ª
Editora: Companhia das letras
Ano: 2010
Páginas: 144
ISBN: 9788535917406
Sinopse: Nada me faltará narra a história de Paulo, um homem que desaparece misteriosamente com a mulher e a filha e ressurge um ano depois, sem explicações, na frente do prédio onde morava. Paulo é interrogado por médicos, policiais, amigos e familiares, mas não se lembra de nada do que aconteceu. Levado para a casa da mãe, ele se entrega a um estado de cansaço e desinteresse.

A situação se complica conforme aumenta a cobrança para que ele volte a se comportar como antes, mas ninguém parece entender que, para Paulo, tudo está bem. O desinteresse pelo paradeiro da mulher e da filha alimenta a suspeita de um investigador e da própria mãe. Somente seu terapeuta, dr. Leopoldo, se mostrará compreensivo para tentar desvendar o caso de seu paciente. Ao realçar o descompasso entre as realidades dos vários personagens, Mutarelli elabora como poucos o tema da incomunicabilidade. Com um registro coloquial preciso e um humor estranho e desconfortável, ele explora um dos elementos típicos de sua obra: o limite incerto entre sanidade e loucura.