[Resenha] A Queda para o Alto – Anderson Herzer

Recorte da capa do livro. Em um fundo com as laterais alaranjadas, é possivel notar o topo do rosto de Anderson Herzer, um pouco manchado. Em primeiro plano, uma faixa clara no topo com o título:
Recorte da capa do livro. Em um fundo com as laterais alaranjadas, é possivel notar o topo do rosto de Anderson Herzer, um pouco manchado. Em primeiro plano, uma faixa clara no topo com o título: "A Queda para o Alto", e abaixo uma faixa menor com o nome: "Herzer".

“Quisera eu ter um início, movido por uma varinha mágica, mas o modo mais simples e sincero seria começar relatando minha vida, sem esconder fatos desagradáveis, pois esses fatos me trouxeram experiências que às vezes me pareciam sem solução, mas me ajudaram a reconhecer como muitos dizem: “O único problema sem solução é a morte”.

É assim que Herzer começa sua biografia, com palavras simples, mas bem colocadas, que prenunciam uma história real e forte, a primeira biografia brasileira escrita por um homem transexual sobre um homem transexual, no caso, ele próprio. Infelizmente, Herzer não viveu para ver seu livro ser lançado.

A queda para o alto de um homem no corpo errado

Anderson Herzer, nascido como Sandra Mara Herzer, nasceu em Rolândia, interior do Paraná, no dia 10 de junho de 1962. Perdeu o pai ainda cedo, sua figura de amor e compreensão, ficando aos cuidados da mãe com quem tinha pouca intimidade, que um tempo depois também veio a falecer. Herzer, então, passou a morar com os tios, local onde sofreu abuso sexual por parte de seu tio e ouvia constantes ofensas por parte de sua tia, e foi nessa casa que começou a sentir que não tinha um lugar no mundo para existir. Começou a beber muito e passar madrugadas fora bebendo enquanto ainda era menor de idade, retrato de uma infância abalada por muitas perdas, pobreza e sofrimento.

A FEBEM

Como em muitos casos que aconteceram na época da ditadura, Herzer foi internado na FEBEM, atual Fundação Casa, após seu tio, o qual ele chamava de pai, ter tentado abusar dele e quebrar seu braço.

Após diversas ameaças por ter contado do abuso para a sua tia, a qual chamava de mãe, Herzer foi internado na FEBEM. O motivo que foi dado por seus pais foi o fato de Herzer ser alcoólatra, mas o estopim, segundo por ele mesmo relata no livro, foi o que aconteceu com seu pai.

Transsexualidade

Anderson, conhecido na FEBEM como “Bigode”, assumiu sua identidade masculina dentro da FEBEM, onde ele relata ter tido muitas namoradas e ser conhecido como o único “machão autêntico”.

Para contar essa parte de sua história (e descrever como é falado disso no livro) é importante frisar que o prefácio, escrito pelo Eduardo Matarazzo Suplicy (seu mentor que o tirou da FEBEM) foi feito em uma época na qual não se tinha discussões sobre transexualidade, então, é comum vermos no prefácio Suplicy se referindo a Herzer como mulher. Inclusive, o próprio Herzer, em uma determinada parte do livro, refere-se a si mesmo no feminino, provavelmente sem querer. Entretanto, a história e identidade de Herzer não são apagadas ou diminuídas em seu relato autobiográfico.

“Bigode” se assumiu transexual em uma época marcada pela barbárie e o extermínio de tudo aquilo que não fosse de acordo com o que a ditadura pregava, em um lugar marcado pelo sofrimento, sujeira e tristeza, e, mesmo assim, ele conseguiu seguir em frente com suas poesias e assumindo quem era sem ter vergonha de si mesmo, e com as consequências por ser assumidamente transexual na FEBEM, que à época não tinha ainda esse nome, portanto, ele nunca se refere a si mesmo como homem trans, e sim como simplesmente Anderson. Sem necessidade de mais explicações, como se seu nome já excluísse a necessidade de detalhar quem ele era. Ele, por si só, se explicava, se mostrava, nu e cru, ao mundo, sem medo de represálias. Sua fortaleza era sua certeza de quem era e do que queria.

Herzer não tinha medo de se vestir da maneira que queria, com roupas “masculinas”, sem se depilar, pois, para ele, essa era a forma de dizer ao mundo que ele negava a identidade feminina imposta a ele, e gritar que, sim, ele era um homem, e queria ser reconhecido como tal, nem que para isso fosse necessário chocar a sociedade da época com suas roupas e o que mais fosse.

A estrela que partiu para brilhar no céu

Nem todo sofrimento durou para sempre em sua vida. Com quase 18 anos, Herzer foi descoberto por Eduardo Suplicy, que entrou na justiça pela sua libertação e o empregou em seu gabinete. Este foi o único que Herzer amou como pai até o fim de sua vida. Há muitas dedicatórias no livro a Eduardo, o que deixa claro o quanto ele era grato pela oportunidade que lhe fora dada.

Com essa nova mudança, Herzer começou a ter mais incentivo para lançar um livro com suas poesias, que ele escrevia desde criança. Com apoio de Eduardo e da dona da Editora Vozes, ele decidiu lançar suas poesias e sua biografia em um livro só. Ele queria mostrar ao mundo as atrocidades que aconteciam dentro da FEBEM, as surras, a fome, a sede, os maus-tratos, de modo que isso conseguisse ajudar os próximos jovens que ali entrassem, seja como um apoio para não desistir ou um estopim para uma mudança no tratamento dos internos da unidade.

Contudo, a dor de tudo o que passou o impediu de ver seu sucesso. Uma semana antes do lançamento de seu livro, Anderson se jogou do Viaduto 23 de Maio, e morreu no hospital algumas horas depois, devido ao número de feridas causadas pelo impacto da queda.

“Lá o encontrei, em estado de choque, porém ainda consciente. Olhou-me nos olhos, apertou a minha mão, disse-me que estava com muitas dores. Pediu-me que a virasse na maca, mas não era possível. Sua bacia havia fraturado em três lugares e havia perigo de hemorragia interna. O deputado e médico João Batista Breda, que lá me acompanhara, explicou-me que suas radiografias mostravam uma grande ruptura dos ossos da bacia. Na base, estavam distanciados 5 centímetros um do outro. Às sete horas da manhã ela piorou, ficou inconsciente. Ela precisava receber sangue. Enquanto eu estava no Banco de Sangue, tendo já feito a doação, vieram me avisar que não adiantava mais. Herzer faleceu às 09:30 horas da manhã de 10 de agosto de 1982.”

Com a palavra, a resenhista

Qualquer pessoa, seja ela LGBTQI+ ou não, deve ler este livro, pois ele é necessário. É uma história real de alguém que foi esquecido, marginalizado, apenas por ser quem era. Alguém que sofreu por ser transexual, e nunca desistiu de ser quem era, alguém que, apesar dos pesares, tentou viver após tanto sofrimento, que queria ter um futuro, e que, dada às circunstâncias antes de sua morte, poderia ter tido, mas que não encontrou mais forças para permanecer vivo. É importante lermos relatos de pessoas como o Anderson, é uma fortaleza necessária para toda pessoa LGBTQI+ que pensa em desistir, seja por medo ou por não se aceitar.

Se Anderson estivesse vivo até hoje, tenho certeza de que ele te pediria para não desistir, e te daria alguma poesia.

Encontrando o que se quer –
poesia retirada do livro, escrita por Anderson Herzer

Eu queria ser da noite o sereno
e umedecer o vale seco e pequeno.
Eu queria, no dia claro, luzir
para o amor todo o povo conduzir.
Eu queria que branca fosse a cor da terra
e não vermelha para inspirar a guerra.
Eu queria que o fogo me cremasse
para ser as cinzas de quem hoje nasce.
Eu queria que os belos poemas fossem de Deus
para neles encontrar as virtudes dos irmãos meus.
Eu queria, muito queria saber ganhar
para as simples alegrias poder comigo guardar.
Eu queria, como queria, saber perder
para de ti, agora, tanta saudade não ter.
Eu queria morrer nesse instante sozinho
para novamente ser embrião e nascer
— eu só queria nascer de novo, para me ensinar a viver!

Nota

5 selos cabulosos

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Ficha Técnica

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Nome: A Queda para o Alto
Autor: Herzer
Editora: Vozes
Ano: 1982
Páginas: 202
ISBN: 85.326.0384-X
Sinopse: Aos vinte anos de idade Sandra Mara Herzer ou Anderson Herzer como ela passou a se autodenominar depois de assumir uma identidade masculina, encontrou na morte os fins de seus dramas . Ainda muito pequena sofreu as consequência dolorosas, decepções com entes queridos e maus tratos. Seu pai foi assassinado quando ela tinha três anos, sua mãe morreu quando Sandra ainda não completara oito anos. Foi adotada por seus tios, mas sempre incompreendida, desenvolveu grande sensibilidade e também rebeldia. Internada na FEBEM, neste “mundo diferente, e severo, morto,desumano, injusto” – Como diz o livro – conhecendo mais um lado cruel da vida.

Este livro foi todo escrito com o coração; não há divagações teóricas nem especulações sistemáticas sobre o porque dos comportamementos humanos. Herzer não quis esperar o lançamento do seu livro deixou com recado, quando digo que Herzer não esperou para divulgar o seu livro foi porque Herzer se suicidou pois sofreu tanto por preconceitos ao assumir a homosexualidade que não aguentou ficar nesse mundo.