Batismo de Sangue

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1

 

Luzes de sirenes iluminavam a frente da casa. Os dois observavam as paredes negras e a fumaça que ainda escapava por qualquer abertura. Tudo fedia. Cheiros de água e fuligem atingiam o nariz torto do mais velho.

— É aqui mesmo?

O mais novo, com seu nariz arrebitado, puxou o ar. Farejava o ambiente em busca de informações.

— Só pode ser. Muito cheiro de sangue.

— Então vamos.

Os bombeiros ainda mantinham a área isolada. Muitos curiosos se aglomeravam para acompanhar o combate ao incêndio. Algumas pessoas eram atendidas na calçada. Com a interdição da rua, repleta de ambulâncias, viaturas da polícia e dos bombeiros, o trânsito precisou ser desviado.

Com autoridade, o de nariz torto se aproximou da faixa que impedia os curiosos de chegar mais perto. Sua barba por fazer e olheiras acentuadas não passavam uma boa impressão. Ele levantou a faixa e um policial se aproximou:

— Cidadão, essa área está isolada.

— O que disse?

— Não pode passar. Você é cego? Não tá vendo a faixa?

— Boa noite, qual sua patente?

— Soldado Peixoto — ele respondeu e apontou para o nome gravado na farda.

— Soldado, vá à merda.

— Como é? — O tom de voz do policial subiu e ele levou a mão à pistola. — Tá preso por desacato, seu merda. Mão na cabeça, vai.

O nariz torto puxou uma carteira comum do bolso e mostrou para o policial que, de imediato, tremeu e se apressou em dizer:

— Senhor, desculpe! Não sabia que o senhor…

— Soldado, vá a merda… Mostre-me quem está responsável pela ocorrência.

E assim ele fez.

— Ele está comigo — disse, apontando para seu companheiro.

— Claro, Major. Podem passar.

Enquanto iam em direção ao responsável, o mais novo perguntou:

— Fico impressionado com esse truque da carteira… Como funciona? Você mostra qualquer carteira e faz com que a pessoa veja o que você quer que ela veja?

— Quase isso… Eu só faço com que ela veja o que mais teme ver. Nesse caso, nosso amigo se cagava de medo do Major Almeida.

— Mas qual seu nome mesmo?

— Enquanto estivermos aqui, Major Almeida.

— Quero saber o real…

Ele parou, abaixou-se para ficar na altura do rosto de seu companheiro e, de olhos arregalados, decretou:

— Major Almeida.

— Prazer, eu sou João — disse. Estendeu a mão e ficou esperando um aperto que não veio.

A mesma estratégia utilizada para conseguir passar pelo isolamento foi usada para entrar na casa.

— Você pode me contar como funciona esse negócio da carteira? Sei que é minha primeira vez em um caso desses, mas já queria aprender algumas coisas.

— João, se você não calar a boca e parar de encher meu saco, vou te ensinar como engolir a própria língua. A partir de agora, você só fala quando eu mandar. Entendido?

Sim, ele havia entendido. Tentou verbalizar e a voz não saiu, não controlava mais a parte do cérebro responsável pela função. Os olhos daquele homem de nariz torto disseram mais do que a boca. João, de imediato, soube que ele se chamava Gregório, mas outros o chamavam de Greg. Não gostava de muita conversa e poderia mergulhar na mente de qualquer um que olhasse em seus olhos.

— Vou perguntar de novo e agora quero que balance a cabeça — disse Greg. — Você entendeu?

João acenou positivamente.

 

2

 

Sozinhos na casa, caminharam em meio aos escombros. Com a mente do responsável pela operação sob sua influência, tinham tempo suficiente para fazer o que era preciso.

Todo o primeiro andar fora lambido pelo fogo. Greg ajoelhou, tocou as cinzas com as pontas dos dedos e aslevou até a boca. Deixou que o material se dissolvesse e entrasse em contato com suas papilas gustativas e cuspiu. De nada adiantou, sua capacidade de percepção através dos sentidos já não existia mais como antes. Aquilo só alimentava ainda mais a raiva que sentia pelos novatos.

Após percorrer a casa, João chegou até as escadas. Olhou para Greg em um claro pedido para que pudesse falar.

— Fale logo.

O bloqueio mental se foi e João apontou para a porta no topo da escada:

— Eles estão lá.

— Vá na frente.

— Mas… E se… — João não sabia o que deveria temer mais, Greg ou o que o aguardava adiante.

A expressão ameaçadora de Greg ao notar sua hesitação foi de grande ajuda para que ele se decidisse.

A porta entreaberta facilitou a entrada. A primeira cena já fez com que João desse meia-volta e jorrasse um jato de vômito nos degraus. Greg apenas lançou-lhe um olhar de reprovação e entrou. Três cadáveres davam boas vindas aos que entravam. Dois, de joelhos e abraçados, ocupavam o centro do cômodo. O chão ao redor deles era negro, consequência da evidente morte em decorrência do fogo. Carbonizados, seriam considerados uma obra de arte macabra caso fossem expostos em um museu — ideia que agradava a Greg. Quero uma dessas na minha sala, pensou.

Já recuperado, João retornou ao lugar com cautela. O terceiro cadáver tinha o rosto mergulhado em uma poça de sangue.

— O que houve aqui?

— Isso é você quem vai dizer.

— Como assim? Do que você está falando?

— Você acha que veio aqui só para encontrar o local?

— Foi o que me mandaram fazer. O que mais você quer de mim?

João se aproximou da porta; estaria preparado para correr em caso de necessidade… mas ouviu o estrondo violento da porta se fechando.

— Me deixe sair — implorou.

— Nós vamos sair… Juntos. Mas antes você vai me ajudar a entender o que aconteceu.

Ao estudar melhor o lugar, João notou a presença de outro cômodo. Seria possível ver o interior do lugar se o vidro que formava uma espécie de vitrine para lá não estivesse pintado de vermelho.

— Aquilo é sangue? — perguntou.

Greg se aproximou da entrada do outro cômodo, repleta de pegadas do que parecia ser sangue, e examinou o interior.

— Olhe isso.

O que João viu não era suportável. O frio subiu por suas pernas e roubou-lhe a cor dos lábios. Todo o vermelho que cobria o lugar ficou lento, embaçado… Escuro.

 

3

 

Despertou sozinho. Passou a mão pelo rosto molhado pensando ser suor. Sangue escorria do corte aberto em seu supercílio direito que, na queda, atingiu a quina da porta.

Greg ajoelhou ao seu lado:

— Se você tiver mais um desses ataques, farei questão de dar um jeito de essa ser sua primeira e última vez nos ajudando.

Ainda zonzo argumentou:

— Eu não controlo essas coisas… O que é esse lugar?

— Julgando pelos instrumentos encharcados de sangue, um estúdio de qualquer banda de metal dos anos oitenta.

João ficou em dúvida se deveria rir e pediu ajuda para levantar. Seu parceiro o ignorou e disse:

— Venha comigo.

Os dois patinaram sobre o sangue e chegaram até o corpo da mulher. João precisou segurar a nova ânsia de vômito e só conseguiu por não ter mais o que colocar para fora. Próximo a ela, encontraram uma tábua, também coberta por sangue. Greg tirou um lenço do bolso e limpou a superfície o máximo que pôde.

— Uma tábua de Ouija — constatou.

Um olhar mais cuidadoso evidenciou que a mulher ainda respirava com dificuldades e em longos intervalos.

— Ela está viva, Greg!

— Não se pode chamar isso de vida. — Ele levantou seu vestido e revelou a barriga dilacerada.

João viu tudo escurecer mas, antes que apagasse, um tapa atingiu seu rosto.

— Já falei: se der outro ataque, você já era.

O que veio a seguir foi sua prova de fogo. A mão de seu parceiro mergulhou nas vísceras expostas da mulher, que contraiu os músculos e soltou um gemido baixo.

— Você ficou maluco? Ela está viva! Tira a mão daí!

— Ela não vai sobreviver…

— Não importa! Ela está sofrendo!

O braço entrou por completo e ele foi capaz de segurar o coração da mulher. Um aperto mais forte e o sofrimento se foi.

— Pronto. Agora me deixa trabalhar em paz.

Sem reação possível, João se calou. É um teste, pensou. Nada disso pode ser real.

— Eles conseguiram…

— Greg… Eu não quero mais…  

— Sua escolha foi feita quando veio até aqui. Preciso que você acesse as memórias dela.

— Eu não sei fazer isso… Só… me deixe ir.

— Não. Basta olhar nos olhos dela. Quero as lembranças; faça isso e me passe o que viu.

João buscou coragem em seu desespero.

— Vai logo. Você não tem muito tempo; em breve as memórias desaparecerão.

Demorou para que as lágrimas secassem e João pudesse ver com clareza. Aproximou o rosto do dela, enxergou cada detalhe de sua pele sob o sangue. Greg puxou as pálpebras e os olhos castanhos, irritados e vascularizados, surgiram. Invadiu as lembranças da mulher sem nenhum pudor e foi recebido pela luz.

 

4

 

Uma concentração de pessoas vestidas de preto em pleno verão carioca indicava que aquele era o local.

Rachel, já cansada de tanto andar, afirmou, esperançosa:

— Acho que é ali.

Mais à frente, carregando uma câmera apontada para seu próprio rosto e que também enquadrava os outros três, Fernando ironizou:

— Será?

Acompanhados de Jenifer e Alexandre, caminhavam em direção ao local. Os quatro trajavam preto e tinham o suor como segunda camada de roupa.

— Qual o número da casa mesmo? — perguntou Jenifer.

Fernando não conseguia evitar; precisava fazer graça para seus cinco milhões de inscritos no canal e se apressou em responder gritando:

— 666!

Todos soltaram risos forçados. Já era a quarta vez que aquela piadinha era feita desde o início do trajeto.

— Fala sério, Fernando — pediu Rachel. — Qual o número?

— Não lembro, deixa eu ver…

Ele tirou o papel amassado e molhado de suor do bolso de trás da calça.

— Número 41.

— Então é ali mesmo.

— Galera, olha o estado desse papel — disse ele ao tentar focalizar as letras borradas. — Estão vendo isso? É suor de bunda!

— Retardado… — resmungou Jenifer, baixo o bastante para que apenas Alexandre ouvisse.

Fazia pouco tempo que havia voltado a falar com Rachel e, por ter que aturar Fernando como brinde, já se arrependia. Com sorte, pensava, o que os dois tinham não duraria muito tempo.   

 

5

 

Ao som de Fade to Black do Metallica eles foram recebidos. Convencidos pela afirmativa de que a casa era um oásis para qualquer amante do rock que quisesse fugir do carnaval, foram parar ali.

Enfrentaram certa dificuldade para entrar. Os que do lado de fora estavam não pareciam muito dispostos a se mexer para dar passagem. Logo perceberam que o prometido oásis tinha seus problemas. Foram informados de que o ar condicionado do local não estava funcionando. A casa de dois andares era grande, mas a quantidade de gente já havia excedido o tolerável. Bastou que colocassem os pés no interior da sala para que entendessem a razão pela qual aquele grupo de pessoas se aglomerava do lado de fora: o calor castigava quem optava por permanecer e, aliado ao som alto, tornava o lugar um tanto perturbador.

Não demorou cinco minutos para que Alexandre, já no auge de seu mau humor, começasse a reclamar:

— Eu te disse que não era pra gente vir, sabia que ia ser ruim…

— Não começa, Alexandre — ordenou Jenifer. — A gente veio pra se divertir.

Quando se tratava de diversão, era evidente que os dois tinham ideias bem diferentes. Ele, mais caseiro, odiava sair para qualquer lugar um pouco mais movimentado. Já ela, não perdia uma oportunidade de virar a noite em qualquer evento que surgisse. Apesar das diferenças, se amavam. Seis anos de relacionamento fundamentaram uma relação de confiança entre os dois.

Rachel e Fernando encontraram logo um canto da casa para ficar. Se conheceram um mês antes e, desde então, não desgrudavam um do outro. Trocando carícias apressadas, não se preocupavam com os que estavam ao redor. Tudo sob o foco constante da lente impertinente que Fernando segurava com o braço esticado.

— Fernando, sério mesmo que você vai filmar até isso?

— Essa parte eu vou censurar… Mentira! — gritou para a câmera e enfiou o rosto no decote dela. — Já filmamos coisa pior!

 

6

 

Sentados no braço de um sofá, Jenifer informou:

— Vou pegar algo para beber.

Alexandre apenas concordou com um breve aceno e passou a mirar uma das saídas de ar. Eram várias, responsáveis por distribuir o ar frio pela casa. Através de seu olhar, fixo e penetrante, desejava com força que de lá saísse o tão necessário sopro gelado. Pelos tubos empoeirados e fedendo a mofo, ele foi. Viajou por todo o caminho e chegou ao imenso aparelho, localizado em um pequeno cômodo nos fundos da casa.  A música terminava e o silêncio entre uma e outra fez com que o estrondo fizesse tudo tremer. O ronco do ar sendo ligado garantiu berros comemorativos.

As guitarras da música seguinte ensurdeceram os presentes. Through the Fire and Flames do Dragonforce teve início sob protesto de alguns.

— Reclamão, viu? O ar voltou a funcionar — disse Jenifer, que trazia consigo dois copos de cerveja. — Toma, peguei sua preferida.

Nenhuma palavra dita por ela chegou aos ouvidos dele. Alexandre estava em transe, suava muito mais do que os outros ao seu redor.

— Alexandre? — ela insistiu. Tocou o braço do companheiro e sentiu sua pele arder. — Alexandre!

O fogo percorreu a tubulação e atingiu os presentes antes que o barulho do ar condicionado explodindo fosse ouvido.

Gritos de pânico e dor concorriam com os solos de guitarra. A fumaça negra e espessa ocupou o lugar e impediu que as pessoas encontrassem a única saída desbloqueada. Como a casa não tinha sido projetada para receber tantos convidados, não contava com saídas de emergência. O mesmo local que servira de entrada agora estava repleto de pessoas que, desesperadas, empurravam umas às outras e pisoteavam as que iam ao chão.

Jenifer lutava contra os braços que forçavam passagem por onde ela estava.

— Amiga, vem comigo! — disse Rachel ao agarrar o braço dela.

Na frente das duas, ia Fernando. Usava da altura e da musculatura privilegiadas para abrir caminho e filmar tudo. Tateando as paredes, eles prosseguiram até chegar a uma escada que levava ao segundo andar. Em busca da rota de fuga mais próxima, a multidão ignorava aquele caminho.

Os três escalaram os degraus aos tropeços e deram de cara com a porta no topo da escada. Fernando a empurrou e gritou:

— Está trancada!

— Arromba! — implorou Rachel.

A proximidade da porta com a escada não permitia que ele conseguisse distância suficiente para tomar impulso. Foram várias tentativas frustradas até que Rachel ordenasse:

— Sai da frente, Fernando.

Ela girou a maçaneta e puxou, ela abriu. Os três se jogaram para o interior do cômodo e ouviram a porta bater.

Não havia fogo, fumaça ou qualquer sinal do inferno que dominava o andar inferior.

Com voz chorosa, Jenifer disse:

— O Alexandre ficou lá embaixo.

Fernando voltou e tentou descer, novamente forçando para o lado errado.

— Larga essa câmera, você não está prestando atenção no que está fazendo!  — berrou Rachel. A porta abre pro outro lado!

Ao ouvir isso, Fernando sentiu-se estúpido por cometer o mesmo erro. Tentou empurrar em vez de puxar e ela também não abriu. Fernando olhou para Rachel com retardo no semblante.

— Você é burro? — reclamou,  num tom de voz ainda mais ofensivo.

Rachel tentou abrir e nada. Empurrou, puxou… Nem sinal de que pudesse abrir. Os dois trocaram olhares de dúvida enquanto Jenifer parecia entretida com algo que via.

 

7

 

O segundo andar se dividia em dois cômodos: o em que eles haviam acabado de adentrar, e o outro após uma porta pequena. Numa parede, uma janela de vidro permitia assistir a tudo o que ocorria no cômodo ao lado. Jenifer não tirava os olhos de lá.

— Gente, olha isso!

Os dois se aproximaram e contaram seis crianças ao todo. Bem arrumadas, vestiam roupas brancas impecáveis e cabelos penteados de forma cuidadosa, como se suas avós tivessem acabado de prepará-las para ir a uma festa. A mais velha não tinha mais que dez anos. Formavam um círculo ao redor do que, para Fernando, parecia ser uma espécie de jogo de tabuleiro.

— O que é isso que elas estão jogando? — perguntou.

— Não é bem um jogo — respondeu Rachel. — É uma tábua de Ouija.

— Tábua de quê?

— Ouija. É um tabuleiro com letras, números e umas outras coisas. Serve para fazer contato com espíritos.

Gritos histéricos de Jenifer fizeram com que os dois voltassem à realidade.

— Alexandreeeeee!!! Alexandreeeeeeeeeeeeee!!! — ela berrava sem parar, esmurrando a porta.

Rachel olhou para as crianças, mas nem sinal de que elas ouviam o desespero da amiga. Continuavam com as mãos sobre o ponteiro que se mexia e deslizava sobre a tábua.

Fernando começou a falar com a câmera:

— Gente, vocês não vão acreditar. O primeiro andar está pegando fogo e a gente preso aqui! Olha essas crianças, que bizarro! — Caminhou até a porta que dava para a escada e mexeu na maçaneta. — Olha isso, não abre. Ninguém trancou!

Tudo era tão surreal que Rachel passou a somente tentar entender o que acontecia. Ao analisar o cômodo onde as crianças estavam, percebeu se tratar de um estúdio. Instrumentos, fios e amplificadores ocupavam boa parte do local e as paredes revestidas faziam o isolamento acústico. Deixou que sua mão tocasse a maçaneta, entrou e fechou a porta. Os gritos de Jenifer invadiram o estúdio enquanto Rachel entrava e as crianças pararam o que faziam.

Silêncio. A ausência agoniante de sons gerava uma sensação inédita para ela. Com passos curtos, foi até a roda de crianças. As cabeças viraram, lentamente, em sua direção, e um arrepio subiu pelo seu corpo. Olhos completamente brancos, cor de marfim.

 

8

 

Não estava preparada para aqueles olhos. Todas as crianças se colocaram de pé. O ponteiro sobre a tábua deslizava sozinho e o atrito com a superfície gerava um barulho que ganhava uma amplitude muito maior ali dentro.

A criança que aparentava ser mais nova pegou sua mão. Dedos gelados como de um cadáver recém retirado da gaveta de um necrotério. O toque interrompeu a conexão entre corpo e mente. De mãos dadas, caminharam juntas. Sem controle sobre o próprio corpo, Rachel havia se tornado uma mera espectadora.

As duas sentaram-se em torno da tábua de Ouija e foram acompanhadas pelas outras crianças. Os dedinhos indicadores e médios, frágeis, tocaram o ponteiro, e a mão de Rachel se juntou às dos pequenos.

Rachel não era alta; ainda assim, seus quase um metro e sessenta e o peso bem acima do recomendado para sua altura a faziam ganhar posição de destaque na roda. Sua mão encaixava-se de forma a completar o estranho quebra-cabeça de dedos que regia o ponteiro. O objeto começou a deslizar pelas letras gravadas em sua superfície e, de letra em letra, três palavras formaram uma frase:

E N T R E G U E

O

B E B Ê

Em pânico, tentou levar a mão livre até a barriga e tirar a outra do ponteiro. Ninguém sabia que estava grávida. Sete meses e carregava consigo o segredo que os quilos extras ajudavam a esconder. Gritar e se levantar não eram opções. A dor alucinante surgiu em seu ventre e lágrimas escorreram quando o minúsculo pé forçou a pele da barriga.

 

9

 

Do lado de fora do estúdio a gritaria de Jenifer era só o que se ouvia. Berrava tanto que sangue escorria por sua garganta, e vez ou outra sentia o gosto. Manchas vermelhas tingiam a porta branca, castigada por socos e cotoveladas que abriam feridas nas mãos e cotovelos da agressora.

Fernando não decidia o que deveria filmar. A excitação era tamanha que já nem ligava para o incêndio no primeiro andar. Cara, isso vai render milhões de visualizações, pensava. Corria de um lado para o outro e alternava entre filmar o desespero de Jenifer e a situação macabra na qual Rachel se encontrava.

— Galera, olha isso! — ele gritava e ria, alucinado.

Ao se aproximar de Jenifer mais uma vez, virou a câmera para si e deixou que ela, aos prantos e jogada ao chão, ficasse em segundo plano.

— Ela tá desesperada. A gente ficou preso aqui e um monte de coisa está acontecendo — dizia.

Contudo, a pontada de dor em seu olho direito foi tão forte que o fez perder a noção do que ocorria. Jenifer havia se levantado e enfiado nele o  palito de madeira que usava para prender os cabelos.

Ela berrou. Sentiu algo em sua garganta estourar. Engoliu o que para ela pareceu um pedaço de carne desprendido de seu próprio corpo. Tinha gosto de silêncio.  

 

10

 

Cada criança sussurrava uma palavra diferente. Palavras repetidas em um ritmo constante que, juntas, formavam o que deveria ser uma frase. Havia perfeita sintonia de tempo e volume, isso Rachel percebia, mas não era capaz de reconhecer aquela língua. Entregue ao que viesse, ela apenas podia assistir ao que seus olhos tivessem alcance. Nem mesmo a cabeça conseguia movimentar. Quando as crianças se levantaram, seu corpo foi relaxando e atingiu o chão de forma suave. Deitada, observava o teto e acompanhou a aproximação delas. Duas seguraram na barra de seu vestido e o levantaram até que as pernas ficassem expostas. Outras duas arreganharam suas pernas e as dobraram de forma que Rachel reconheceu a posição em que ficou como a do parto. Algo próximo ao medo queria despertar em seu interior, mas a criança que ajoelhou ao lado colocou a mão em sua testa e isso a acalmou.

— Entregue nosso irmão — disse ela.

A frase a fez despertar. Rachel atingiu a criança com um tapa e se colocou de pé. Olhou pelo vidro que dava para outra sala e acompanhou o exato momento em que Jenifer atacava Fernando. Correu em direção à porta e foi atingida por uma pancada forte na cabeça. Zonza, caiu de quatro e viu um dos pratos da bateria cair ao seu lado. A visão insana das baquetas se mexendo por conta própria chamou sua atenção. O barulho tomou conta da sala. PA PA PA… PA PA PA… PA PA PA…

O som inconfundível da guitarra rasgou o ar e Rachel reconheceu a introdução de Raining Blood do Slayer. Baixo, bateria e guitarras regiam o terror que ela vivia. Foi puxada pelos cabelos até o centro do estúdio. Pensava na força que aquelas crianças tinham; quatro seguravam cada um de seus membros, uma sua cabeça e a última se posicionava entre suas pernas abertas, como um médico que aguarda o bebê.

— Não, por favor! NÃO! — Rachel implorava.

As contrações tiveram início e ela tentava segurar o filho dentro de si. Lutar gerava ainda mais sofrimento.

— Solte o bebê — ordenou a criança que segurava sua cabeça.

O volume da música passou a muito acima do tolerável. Rachel tentava resistir. Fechou os olhos e concentrou toda a força em seu ventre. Não desistiria de seu filho tão facilmente. Foram meses escondendo de todos a gravidez. Estava tudo preparado para ter aquele filho por conta própria, sem a ajuda de ninguém. Da maneira como ele fora concebido. Não precisou de um pai para engravidar, não precisaria de um para criar.

Pingos pousavam sobre seu corpo e salpicavam-lhe o rosto. Chovia. A pele era atingida por gotas grossas e, ao abrir os olhos, tudo era vermelho. Dos sprinklers no teto jorrava sangue para todo o lado. As roupas brancas das crianças agora estavam ensopadas do líquido viscoso. De branco, só restavam os olhos.

 

11

 

Sentada em um canto, Jenifer abraçava as próprias pernas e mastigava o lábio inferior sem o menor controle sobre a força que imprimia. Pequenos pedaços eram arrancados e engolidos. Fernando, que gritou durante alguns segundos antes de desmaiar, ainda tinha o objeto cravado em sua cavidade ocular. Ao cair no chão, a câmera deslizou por alguns metros e, ironicamente, focava em seu rosto ferido.

A porta do estúdio se abriu assim que a música em seu interior terminou. De lá saíram as crianças; não seis, mas sete. A última carregava o recém-nascido nos braços e todos, banhados de sangue, andavam em fila. O bebê não chorava, só emitia grunhidos roucos.

Pelo caminho até a porta, os sapatinhos molhados deixaram pegadas de sangue. Jenifer ignorava por completo o que ocorria ao redor e algumas crianças lançaram-lhe olhares debochados. Soltaram gargalhadas ao passarem por Fernando

Desceram pela escada em chamas. Não temiam calor, fumaça ou fogo. Estavam envoltas por algo que as protegia do inferno que o primeiro andar havia se tornado. As chamas subiam os últimos degraus até chegarem ao topo.  

Alexandre chegou ao segundo andar aos berros. Entoava o nome de Jenifer de forma desesperada. Seu corpo ardia em chamas, era impossível para qualquer ser humano comum suportar aquilo. Jenifer se levantou, sangue e saliva escorrendo de sua boca. A mistura pingava e manchava o preto da camisa. O grito que chamaria o nome de Alexandre não saiu e Jenifer correu; abraçou o corpo flamejante do amado e sua pele ardeu. Ele correspondeu fazendo a mão direita tocar seus cabelos longos que, de imediato, pegaram fogo. O caloroso abraço durou a eternidade em segundos. Morreram ali, abraçados, como uma só estátua de dois amantes ajoelhados.  

 

12

 

A luz se foi. Dentes trincados, João convulsionava e expelia uma espuma branca pelo canto da boca. O mergulho no oceano de lembranças durou mais do que deveria. Seus membros se contorciam, atingiam o chão com violência e pareciam prestes a quebrar. Greg montou sobre ele e tentou, sem sucesso, forçar-lhe as pálpebras para que os olhos abrissem. Só o que podia fazer era imobilizá-lo para que não se machucasse.

— Eu avisei que esse merdinha não estava preparado — resmungou Greg.

Dois minutos depois e tudo acabou. Assim que a convulsão foi controlada, Greg se apressou em abrir os olhos do novato.

— Me passe as memórias — ordenou.

Era crucial que elas fossem retiradas da mente de João. Caso ele as acessasse mais uma vez, poderia não suportar. Em uma fração de segundos as memórias tinham um novo dono, e uma leve dor de cabeça as acompanhava. João não teve a mesma sorte. Seu cérebro latejava com a enxaqueca mais forte que já havia experimentado.

Uma terceira pessoa, esbaforida, adentrou o recinto.

— Perdi muita coisa? — perguntou a mulher.

— Perdeu mais um novato passando vergonha. Precisei usá-lo.

— Não acredito que você fez ele passar por isso… Poderia ter me esperado.

— Se você estivesse aqui na hora, ele só precisaria assistir.

— Como ele está?

Apesar de estarem ao seu lado, João ouvia apenas ecos distantes da conversa.

— Vai sobreviver. E, se dermos sorte, desistir dessa vida.

— Se os velhos conseguissem manter suas habilidades sensoriais não precisaríamos deles.

Greg levantou irritado e saiu.

— Sem ofensas, querido — ela gritou.

Com esforço, João perguntou quem ela era.

— No momento, a pessoa que vai tirar você daqui.

— Rapazes — assim que ela chamou, alguns homens entraram. — Quero essa bagunça toda arrumada. Coloquem fogo no local quando terminarem.

Eles não responderam; apenas começaram a remover os corpos que estavam no segundo andar.

A mulher ajudou João a se levantar e caminharam até a saída.

Do lado de fora, Greg os esperava. Ela aproveitou para perguntar se ele ficaria com as memórias.

— Sim… O caso ainda é meu. Mas vou precisar que você recupere essas imagens — disse, entregando-lhe a câmera que Fernando havia usado. — Mais uma coisa. — Ele fitou João com um sorriso malicioso no rosto e prosseguiu: — Então é essa a vida que você quer de agora em diante?

Ainda se recuperando do que acabara de acontecer, João respondeu:

— Sim, Greg. Você pode me ensinar o truque da carteira?

O nariz, já torto, torceu ainda mais. Greg engoliu o sorriso e se foi.

 

Diário de João – Dia 1

 

Hoje dei início ao treinamento para me tornar um deles. Não foi fácil. Não esperava tanto sangue, cadáveres e vísceras. Vai ser difícil me acostumar. Conheci meus mentores: Greg e Sara. Acho que ele não foi muito com minha cara; pelo que percebi, não lida muito bem com o fato de não ter mais o que eles chamam de habilidades sensoriais. Pelo visto, isso eu tenho de sobra. O que me impressionou foi a capacidade dele de entrar na mente de outras pessoas. Vou me empenhar ao máximo para aprender como, e superá-lo. Sara foi quem mais me ajudou. Ela é mais velha, mas não tanto quanto Greg; deve ter uns trinta e poucos. Acho que nos daremos bem.

Minha cabeça ainda dói. Sinto um vazio ao tentar lembrar de tudo o que ocorreu hoje. Parte da minha memória parece ter sido arrancada à força; acho que foi o Greg. Não gosto de imaginar que ele tenha livre acesso à minha mente. Preciso aprender a bloquear meus pensamentos o mais rápido possível.

Consegui ouvir parte da conversa entre meus mentores durante do caminho de volta. Ao que parece, agora são sete crianças. Sara estava muito mais preocupada, e fez Greg prometer que deixaria que ela participasse mais do caso. Sinto-me mais confiante sabendo que ela não vai me deixar sozinho com ele.

Por fim, tenho saudades de casa. Evito fazer contato com minha família para que eles não corram perigo; aqui na capital, tudo parece grande e diferente demais para mim. Mas eu não vou desistir. Foram seis meses esperando essa oportunidade, agora parece que chegou minha hora.

Mestre, lhe reverencio e peço a benção definitiva.

 

Diário de Sara – Dia 4.129

 

Greg continua agindo como um membro decadente. Não segue regras e insiste em tornar a convivência com os outros algo conflituoso. Aproveitou-se de um atraso meu para ir a campo acompanhado de um novato despreparado e fez com que ele recuperasse as memórias de uma morta.

Seus poderes mentais não parecem estar em declínio, mas a capacidade sensorial já está abaixo da ideal para que ele continue entre nós. A hora de decidir seu futuro se aproxima e não vejo Greg aceitando o afastamento. De fato, a situação precisa ser tratada com cuidado.

Gostei da forma como o novato se comportou, apesar de ainda o achar novo demais para se juntar a nós. Fiz questão de não deixar que Greg assumisse a mentoria dele sozinho. Espero que ele resista ao impacto inicial e seja aprovado por todos.

Quanto ao caso, já são sete crianças possuídas circulando pela cidade. O incêndio que teve início durante o ritual de hoje chamou a atenção das autoridades e fez acender o sinal de alerta. Preocupante saber que Greg ainda é o responsável pelas investigações. Trabalharei para que isso mude.

Mestre, continuarei fiel enquanto viver.

 

Diário de Gregório – Dia 14.030

 

Continuo essa babaquice de ter que registrar todos os meus dias. Sabendo que todos só terão acesso a ele quando eu morrer, estou cagando para o que minhas opiniões aqui vão causar.

Mais um dia fazendo parte desse circo e menos um de vida. Me arrependo de ter aceitado ser parte disso e farei de tudo para evitar que mais jovens sejam seduzidos pela ilusão de ser parte de algo que faz a diferença. Perdi as contas dos amigos que morreram em todos esses anos, vi minhas habilidades serem consumidas em uma batalha perdida… e estou cansado.

Hoje, mais uma vez, testemunhei o poder que eles possuem. Não tarda para que uma legião de crianças seja formada e o mundo tenha que encarar de frente tudo o que nós varremos para baixo do tapete durante todos esses anos.

O novato que me acompanhou hoje será meu protegido enquanto eu estiver por aqui. Sara vai fazer de tudo para colocá-lo debaixo de sua asa, mas não permitirei que ele decida ficar sem antes saber o que o aguarda. Se, mesmo após ter contato com toda a realidade, ele ainda quiser continuar, não há nada que eu possa fazer. Ao menos esse não será enganado.

Mestre, vá se foder.

 


Diogo Ramos é professor e escritor. Autor de “O Outro Lado”, “O Mago e o Guerreiro” e outros. Tem mais perguntas que respostas, observa mais do que fala e quer sempre mais.