Saco de Vermes

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Ela se sentia satisfeita.

Estava grávida, como tinha de ser. Tinha um marido, como era previsto. As coisas iam muito bem, obrigada.

Tudo isso foi por água abaixo quando a criança nasceu. As crianças. O horror tomou conta de si. Ela não podia ter duas crianças. Era proibido.

Quando a parteira levantou o primeiro bebê, sentiu-se abençoada. Um menino! Logicamente daria o nome dele. Uma singela homenagem. E então a mulher retirou aquele intruso de dentro de si. O quê, por Deus, aquele segundo menino estava fazendo ali?

A parteira lançou-lhe um olhar significativo e entregou a segunda criança. Quando ela se retirou, a nova mãe sentiu uma vergonha imensa. Tinha certeza que a mulher contaria a ele e logo viriam prendê-la. Quando semanas se passaram e nada aconteceu, imaginou quantas mulheres passaram pelo mesmo problema. Imaginou também como elas o resolveram. Morte? Contudo, antes que pudesse pensar em uma solução, o marido encontrou uma maneira.

Poderiam precisar da criança mais tarde. Não eram uma família rica. Na verdade, estavam abaixo do termo “pobre”. O marido lhe convenceu dizendo que poderiam vender a criança, mais tarde.

Isso era comum. Ele exigia que todos os casais tivessem um filho ou filha, mas alguns simplesmente não conseguiam. Os acidentes — como era o seu caso — serviam para cobrir esse buraco. Assim, por baixo dos panos, havia esse mercado. Naquele mesmo dia, então, o menino foi escondido em um canto do porão.

***

Sete anos haviam se passado. A criança intrusa ganhou o nome de Verne — por causa de outra palavra à qual era muito associado — e cresceu, mas não foi vendido. A mãe tentara de todas as maneiras possíveis se livrar dele, mas sem sucesso.

Quando ninguém quis comprar o menino, passou a oferecê-lo, mas nem assim conseguiu. Ninguém queria um problema. O tempo passou e agora o garoto era muito velho para qualquer tipo de lucro.

Ele ainda vivia no porão, e era bem alimentado — na medida do possível. Se fossem vendê-lo, não poderia ser um menino magricela. Mal andava pela casa; só lhe era permitido deixar o porão durante a noite para a limpeza da casa.

Verne tinha uma visão muito limitada do que era o dia ou o sol, por simplesmente nunca ter visto nenhum dos dois. Sabia, claro, que o dia era diferente da noite — uma luz mais forte do que a dos lampiões entrava pelas frestas —, mas não passava disso.

Quando perguntava à sua mãe por quê ele não podia sair, ela lhe dizia que as pessoas queriam lhe fazer mal. Ela não sabia responder o porquê da outra criança que vivia na casa — e ele não sabia que eram irmãos nem o que isso significava — poder andar livremente.

Um dia, enquanto limpava a cozinha, deparou-se com uma tábua solta na parede dos fundos — a casa de madeira estava bem além de velha. Empurrou–a e, quando viu a Lua, sentiu-se hipnotizado. Ele já a havia visto outras vezes, claro, mas não como naquele dia. Ela estava enorme; dava uma sensação de paz e, ao mesmo tempo, de medo em perceber o quanto era pequeno. Viu as casas vizinhas, o gramado seco, as ruas iluminadas por ela e achou tudo tremendamente belo. E saiu.

Desde então, ele terminava o serviço rapidamente, se esgueirava pela tábua solta e ia para a cidade. Amava sentir o ar fresco da noite passando pelo seu rosto e, acima de tudo, amava poder andar livremente. O fato de ninguém poder vê-lo, de todas as pessoas que lhe queriam fazer mal estarem dormindo enquanto ele estava ali, do lado de fora, dava uma sensação de poder nunca antes sentida.

Nas primeiras noites Verne teve medo de se perder e não foi muito longe, mas logo conheceu cada beco. Em uma ocasião, um guarda quase o descobriu, e aquilo o assustou tanto que ficou uma semana sem se aventurar. Voltou porque descobriu que não poderia mais viver sem aquela sensação.

Isso até o dia em que sua mãe acordou durante a noite para um copo d’água e não o encontrou em lugar algum.

***

Quando acordou com a boca seca, ela se sentiu estranha. Era muito raro ter o sono interrompido. Ficou durante algum tempo na cama, esperando escutar algum barulho que a tivesse despertado. Como nada aconteceu, levantou-se.

Achou muito estranho não encontrar Verne na sala limpando alguma coisa. Quando não o encontrou na cozinha, contudo, o medo a dominou. Disse a si mesma que estava sendo boba. Ele tinha de estar na casa. Provavelmente terminou o serviço mais cedo e voltou para o porão. É. Era isso. Certamente.

Desceu a escada devagar, sussurrando o nome do garoto, e quando não obteve nenhuma resposta, deu um grito contido, sem se dar conta. Correu para o lampião que sabia estar na base da escada. Quando finalmente conseguiu acendê-lo — suas mãos tremiam —, sentiu todas as forças fugirem do seu corpo. O porão estava vazio.

A ideia de Verne estar andando pela rua durante a noite, ou de simplesmente ter fugido de casa, por pouco não a enlouqueceu: pelos motivos errados.

Subiu as escadas correndo, não mais se importando com o barulho, e acordou o marido. Ele ficou chocado como ela, mas disse que deveriam esperar. Aconteceria algo, por bem ou por mal. E assim o fizeram.

***

Quando Verne esgueirou-se pela tábua no começo da manhã, sentia-se cansado, mas completamente desperto. Não conhecia uma palavra que descrevesse o que sentia, mas essa seria: felicidade.

Entrou em casa sorrindo, e ainda sorria quando encontrou os pais sentados no sofá. Não conseguiu fazer nada. Não moveu um músculo. Sentiu o sorriso se desfazer lentamente em seu rosto.

— Onde você estava? — o pai perguntou.

Por um momento não conseguiu falar. Seus lábios pareciam muito pesados. Mas, se não respondesse, sabia que seria pior, muito pior.

— Eu saí.

Diante do desespero, não conseguiu inventar nenhuma desculpa e deu a resposta crua e verdadeira.

Antes que pudesse fazer qualquer coisa, o pai já estava em cima dele. Golpeou-lhe o rosto com tanta força que o menino se desequilibrou e caiu.

— Fazendo O QUÊ?!

— Nada! Não fiz nada!

O homem o chutou nas costelas e o garoto uivou. Por entre os olhos marejados, viu que a mãe permanecia sentada, chorando. Inocentemente pensou que ela chorava por ele, mas tudo que a mulher sentia era alívio.

— Levante — o homem ordenou.

Foi difícil obedecer de imediato. As costelas doíam e era trabalhoso respirar, mas por fim conseguiu.

— Desça.

Virou-se imediatamente em direção ao porão. Viu o irmão parado à porta de seu quarto, acordado pelo barulho. Ele sorria.

***

— O que faremos? — ela tremia.

A possibilidade de alguém ter visto Verne e o seguido direto para sua casa a amedrontava. Olhava para a porta a cada segundo esperando que ele aparecesse.

— Temos de nos livrar dele. Isso já foi longe demais.

— Mas como? Não conseguimos vendê-lo, e se simplesmente o mandássemos embora ele poderia — arrepiou-se — dar com a língua nos dentes.

— Tem um jeito.

O marido a olhou determinado.

Ela sentiu medo, mas teve de expor o que pensava desde que o menino nasceu:

— Matá-lo?

— Não! — Olhou-a como se não acreditasse. — Não quero o sangue de ninguém em minhas mãos.

— Então o quê?

— O velho. Chame o velho para levá-lo.

***

Quando Verne chegou ao porão o cansaço caiu sobre ele. Sentiu-se tão pesado que não teve forças para caminhar até a cama enferrujada, disposta a alguns passos. Simplesmente desabou. Estava com dores e sentia vergonha. Adormeceu ali mesmo, com as lágrimas lavando o rosto sujo.

***

Ao acordar, a primeira coisa que notou foi a fita vermelha amarrada ao pé de sua cama. Tinha certeza de que aquilo era novo.

Logo em seguida, percebeu que o porão tinha uma claridade fosca e amarelada, do fim do dia. Perguntou-se quanto tempo dormira. Conseguiu a resposta quando sentou e sentiu cada músculo enrijecido. Não conseguia mover o pescoço sem gemer de dor. As costelas latejavam e, tocando a boca onde o pai o bateu, percebeu que estava bastante inchada.

A terceira coisa que percebeu, sentindo um frio na espinha apesar do quão quente e abafado estava o porão, foi que não estava sozinho. Virou a cabeça para trás, rápido demais. Ouviu e sentiu o estalo no pescoço, mas não ligou: tinha alguém ali.

Era um velho. Estava encostado na parede, fumando um cigarro, como se sempre fizesse isso por ali. Como se tivesse sido convidado.

O pouco sol batia em seus cabelos brancos colados à testa. Era um velho muito sujo; Verne podia ver e sentir isso de longe. O cheiro de urina fazia a respiração cada vez mais difícil, mas havia algo mais; algo que o sufocava de um modo diferente do odor de semanas sem banho. Se o menino tivesse capacidade de saber o que era aquele cheiro, teria corrido muito mais cedo.

O velho exalava o cheiro de sangue.

— Olá — ele disse, finalmente reparando no garoto.

Verne não respondeu, e o velho pareceu não ligar. Jogou o cigarro no chão e o pisou. Olhou mais uma vez para Verne e sorriu. Ele tinha todos os dentes pretos, pequenos e afiados.

Até aquele momento, Verne ficara apenas curioso do porquê de o velho estar ali, mas agora sentia medo. Um medo pegajoso, que grudava em sua pele.

Quando o velho avançou um passo, o menino pôde notar que carregava algo. Como se lesse seus pensamentos, o velho moveu o braço para frente, revelando o que trazia apoiado nas costas: um saco de pano encardido e muito grande, praticamente do mesmo tamanho do garoto.

— O q-quê você quer?

Verne odiou-se por gaguejar e mostrar seu medo. Aprendera, ao longo de sua curta vida, que os adultos ficam furiosos e desesperados quando se deparam com o medo. Mas o velho não ficou nervoso; pelo contrário, tornou a sorrir. Não respondeu à pergunta de Verne, no entanto.

O menino engoliu, tentando limpar a garganta, e engasgou. Assustou-se por descobrir como ela estava seca, como ele sentia sede. A boca machucada incomodava. Começou a ficar tonto e olhou para o velho ainda sorrindo. Pôs-se de pé com dificuldade e repetiu a pergunta, de um modo diferente:

— Por que você está aqui?

O velho continuou calado, mas respondeu de outra maneira. Apontou um dedo torto com a unha quebrada e suja para alguma coisa atrás de Verne. Ele se virou e mais uma vez seu olhar foi atraído para a fita vermelha amarrada aos pés de sua cama.

— Mas o que…

Não teve tempo de terminar a pergunta. Ao se virar para fitar o velho novamente, deparou-se com o rosto a centímetros do seu. Ele estava ali, à sua frente, embora não tenha escutado o som de passos se aproximando. O velho ainda sorria.

O susto e o cheiro de podridão fizeram com que Verne se afastasse e caísse sentado, dessa vez na cama. O velho colocou uma mão em seu joelho e quando Verne, com asco, tentou se desvencilhar, ele apertou mais forte.

— Você vem comigo.

E ao ouvi-lo, Verne sentiu a verdade em suas palavras. Começou a chorar.

— Não…

— Sim. Fui chamado. Você foi escolhido. Você vem comigo. Os rejeitados me pertencem.

O velho puxou Verne pelo joelho e o garoto foi ao chão. Com um movimento rápido da outra mão, abriu o saco. Verne olhou lá dentro e o que viu foi a escuridão — não a que avançava pelo porão, mas uma mais forte, mais pesada. Ouviu gritos. Choro. E então viu uma mão, um pé, um joelho. Pôde vislumbrar o rosto de um garoto que devia ter a mesma idade que ele. O garoto chorava. Verne começou a gritar.

***

Na sala escura, os pais escutavam os gritos.

Sentados no sofá, apreensivos. Fecharam toda a casa e forçaram o filho único a permanecer no quarto, não importando o que ouvisse.

Escutaram.

A mulher não suportou e tampou os ouvidos. Durante um tempo, ainda ouviu os gritos, baixos e abafados. Percebeu que o marido sorria. Ele lentamente abaixou suas mãos.

Silêncio.

Ela sorriu de volta.

 


Priscilla Rúbia é amante de livros, principalmente os que dão medo. Amante de mangás, principalmente os com histórias profundas e sangrentas. Se diverte assistindo animes, séries, filmes e jogando video-game. É nerd, porque apanhava na escola. Trabalha só para manter sua coleção.