Um café e o fim do mundo, por favor

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Laura soube que o dia ia ser uma bosta quando o vômito respingou no vaso e acertou seu olho.

Depois de escovar os dentes três vezes e mais outra depois do segundo banho, ela sabia que já tinha tirado o gosto podre da boca. Sabia, mas ainda assim tinha calafrios de nojo dirigindo para o trabalho. Odiava se juntar ao coro de ódio às segundas-feiras, mas quando acordou com o sol brilhando no seu olho ela soube que já estava muito atrasada. Tinha, então, levado a mão ao celular no criado-mudo, o coração em uma cavalgada furiosa tentando fazer o cérebro pegar no tranco, para tentar saber por quê o alarme não tocou. Demorou dois segundos, meio levantada e meio agachada ao lado da cama, um pé ainda enroscado no edredom, para entender também por que sua mão estava encharcada.

Ela xingou o gato de todos os nomes que conseguiu pensar, correndo para o banheiro, torcendo o nariz para o cheiro de mijo na mão.

— Posso saber que gritaria é essa logo de manhã, Laura?!

Ela respondeu à colega de apartamento com o máximo de educação que conseguiu encontrar — que no caso não foi muita —, explicando com os devidos adjetivos o que seu gato havia feito. Em resposta, ela gritou de seu quarto para Laura parar de ser enjoada e limpar a pia antes de sair.

— Eu tô atrasada! Quando eu voltar eu faço!

— Toda vez a mesma merda! — Ela foi abaixando a voz. — Acho bom você começar a fazer as coisas por aqui.

As reticências implícitas foram claras. Laura, com metade da blusa do pijama para fora e já sem as calças, pensou nos três meses atrasados de aluguel que devia para a colega. Suspirou, vestiu a blusa de volta, enrolou as mangas — que ficaram caindo durante todo o processo — e lavou tudo o mais rápido que conseguiu. Foi batendo a tampa do ralo na lata de lixo, depois de lavar tudo, que ela começou a amaldiçoar a hora em que resolveu colocar o pé para fora da cama: um pedaço de macarrão velho, molenga e gelado, voou para dentro de sua boca.

*

Laura teve outro calafrio. Engatou a primeira e acelerou, avançando no sinal fechado. O sedã a acertou de lado. Laura não percebeu, mas seu carro girou três vezes antes de parar na outra pista. Para ela, todo o acidente se resumiu a um leve apagão, barulhos de metal amassando e vidro explodindo ao mesmo tempo, alguns segundos de desorientação e pneus derrapando — que foi o que a trouxe de volta à consciência.

As mãos travadas no volante, ela olhou ao redor. Sentia uma dor aguda acima do supercílio esquerdo e sua lombar estava gritando. Não sabia onde estava, nem mesmo lembrava seu nome. Ela nem lembrava por quê estava sentada no meio-fio, segurando um copo de plástico rachado. A água gelada escorria por seus dedos, molhando sua camisa de manga comprida até o cotovelo. Laura olhou para a mancha escura, profundamente incomodada com a sensação do pano molhado colado à pele, mas voltou a olhar para o copo. Ele só estava rachado até a metade, ainda tinha água nele. Laura girou o copo, virando a rachadura para o outro lado — para o lado dos carros amassados —, e tomou a água.

Ajudou bastante.

Ela conseguiu até apertar os olhos na direção das latarias, numa tentativa de entender porque tinham policiais e bombeiros ali. Alguém gritava com ela.

Depois de assinados os papéis do seguro, Laura lembrou que deixou a bolsa no banco do carro. Estava com o celular que a empresa lhe deu na mão, vendo o guincho ir embora. Ela olhou para o celular, refazendo seus passos. Precisou pensar muito para entender que pegara a bolsa, depois o celular de toque polifônico e, enquanto apertava os botões de borracha, Laura devolvera a bolsa ao carro.

Piscou os olhos várias vezes, antes de pensar em chamar em voz alta. Quando chegou a isso, o carro já estava longe. Pensou em como estava vulnerável sem seus documentos, sem seus cartões e completamente sem dinheiro. Nem sabia o nome da rua em que estava. De pé, no meio da calçada, ela demorou vários segundos para lembrar que estava segurando um aparelho celular. Por pior que fosse, ainda fazia ligações.

Laura riu de sua própria idiotice, enquanto apertava o botão verde para ver as últimas ligações. Apertou as setinhas para baixo, procurando o número do seguro, mas viu que só estava abaixando o volume da ligação.

Ligação?

Com um pequeno pulo de susto, Laura levou o telefone à orelha. Não tinha percebido que estava tocando e, ao apertar o botão, atendeu a ligação. Escutou a voz de seu patrão, muito baixa, do outro lado.

— Oi, seu Araújo! Péra só um segundo que eu não tô ouvindo!

Ela afastou o celular do rosto, apertou a setinha para cima até a barrinha estar completamente cheia e o encostou na orelha novamente.

— Pronto! Pode falar!

—… e passa aqui para pegar suas coisas!

— Oi?

Mas ele já tinha desligado. A boca de Laura secou enquanto ela abaixava o aparelho. Estava desorientada demais para chorar. Sabia que deveria chorar, que tinha o direito de chorar, mas não conseguia. Colocou o celular debaixo do braço esquerdo e caminhou em uma direção qualquer, sem perceber que estava sem sua bolsa e que, na verdade, tinha jogado o celular no chão.

Deu um pulo de susto ainda maior quando alguém tocou seu cotovelo.

— Moça? Desculpa, mas seu celular caiu.

Ela olhou para o sujeito, cabelos pretos, olhos claros. Alto. Um sorriso confuso no rosto. Olhou para o aparelho que ele estendia. Nem sabia que ainda fabricavam aquele modelo de celular. Abriu a boca para falar que não era dela, que tinha deixado seu celular em casa porque o gato da colega de quarto mijou nele, quando os acontecimentos do dia passaram pela sua cabeça. Ela olhou do celular para o rapaz e não soube o que dizer, nem o que pensar.

*

Quando conseguiu raciocinar de novo, estava sentada em um sofá novo, mas que parecia velho. O lugar era escuro, mas não muito. Aquele lugar era familiar. Laura olhou para o celular em sua mão. Apertou o botão lateral para ver a hora, mas ele não ligou. Acabou a bateria ou ela não sabia mais qual era o botão que devia apertar. Antes que chegasse a uma conclusão, o rapaz da rua apareceu na sua frente, com dois copos brancos de papel na mão. Entregou um a ela, com um sorriso, e se sentou na poltrona à frente. O copo estava quente. Tinha uma sereia com duas caudas desenhada. As sobrancelhas de Laura subiram. Precisou de menos segundos, dessa vez, para entender onde estava. Bebeu um gole do café.

— Hmmm… Eu gosto de frappuccino.

— Imagino que tenha sido por isso que você pediu.

— Eu pedi?

— Moça… — Ele semicerrou um olho e colocou o copo sobre a mesinha entre os dois. — Tem certeza que você tá liberada para andar assim por aí?

Ela levou a mão ao rosto. — Assim como?

— Hã…

Ele apontou para o rosto dela, para a sobrancelha esquerda. Laura tateou pela lateral do rosto e deu um pequeno pulo na cadeira quando sentiu, ao mesmo tempo, uma grande atadura sobre e uma grande dor.

— Eu…

O rapaz levantou as mãos. — Você me disse várias vezes que estava bem e que não precisava te levar para o médico nem nada assim, mas eu ainda…

— Eu disse?

— Você… Você não lembra?

— Eu…

Laura forçou a cabeça, mas não, não lembrava. Disse a ele que não lembrava. Quando percebeu estava contando tudo que aconteceu durante o dia. Quis parar de falar mas, agora que tinha começado, achou melhor terminar. Explicou até como foi parar naquele apartamento, como tinha se endividado, como estava meio sem esperanças de conseguir pagar e como achava que seria expulsa de lá.

De longe, de muito longe, Laura pensou ver a si mesmo ali sentada, falando e falando. Estranhou que não estivesse chorando. Depois de algum tempo, lembrou-se que não deveria estar lá falando e aqui observando, então voltou a ocupar um lugar só. Esses pensamentos lhe deram uma certa vertigem, então ela parou de pensar nisso.

O rapaz deu uma risada. — Parece que você teve, oficialmente, o pior dia da história da humanidade.

— Ah… Eu concordo, viu.

— Essa rotina cansa, né? — Ele apontou para a janela do lado dos dois. — Olha só para todo mundo, autômatos sem alma.

Laura olhou, achando graça no jeito dele falar. Desviou o olhar rápido, pois viu seu reflexo de cara inchada encarando-a de volta. Estava horrível. O rosto esquentou e agora ele ia ver que ela estava corada e, sinceramente, Laura não achava que poderia ficar mais ridícula, mas olha ela ali. Laura sempre superava as próprias expectativas, parecia. O rapaz ainda estava falando e ela fez força para prestar atenção.

—… um simples jeito de acabar com tudo isso.

— Acabar?

Ele voltou a encará-la. — Sim, acabar. O que acha? Dar o troco no seu patrão, terminar com essa segunda-feira maldita e ainda garantir que nunca mais vai precisar se preocupar com aluguel.

— Parece bom demais para ser verdade.

— E é. — Ele riu. — Eu faço parte de um grupo que, já há algum tempo, está tentando acabar com esses problemas tão mundanos. Sabe, consertar tudo.

— Algum tempo?

Muito tempo. — Ele sorria, sempre. — Mas parece que não temos o que precisa para fazer isso.

Laura riu do jeito engraçado que ele falava. — E o que seria?

— Realmente, realmente, querer que tudo acabe.

— Eu… Não sei se entendi.

Ele ficou sério. — Olha, eu sou um membro dedicado do nosso culto.

— Culto?

— E eu já fiz coisas por nosso grupo que, digamos, não me orgulham muito.

— Tipo sacrificar inocentes?

— Ah, não. Todos os nossos sacrifícios são completamente voluntários. Acontecem só uma vez por século, também. Mas isso nem é o problema, sempre vai ter alguém disposto a se sacrificar.

— Ah é?

— Claro. Algumas promessas de um lugar melhor, no além, uma vida eterna ao lado de nosso patrono. Essas coisas.

— E quem seria seu patrono?

— É um nome complicado demais de pronunciar com línguas humanas. Mas voltando ao que eu te falava…

Laura teve, outra vez, a sensação de ver a si mesma sentada ali. De fora, ela conseguia se questionar o que estava acontecendo. Culto? Patrono? Sacrifícios? E ela estava lá, simplesmente conversando? Bom, obviamente era hora de levantar dali e… Era impressão ou o rapaz tinha virado o rosto justamente na direção que ela estava agora? Ali, sua consciência à parte do próprio corpo e… Ele tinha olhos amarelos? Como ela não tinha reparado nisso ainda? Duas piscadas de olho e estava de volta na poltrona. Ele realmente tinha olhos amarelos, mas isso não parecia incomodá-la mais. Muito pelo contrário. O rapaz ainda falava.

—… o que acha? Pode fazer isso?

Laura sorriu com a possibilidade de poder fazer alguma coisa por ele. — É claro. Claro que posso.

— Excelente.

Ele abriu um grande sorriso enquanto procurava alguma coisa nos bolsos da calça. Laura apertou os olhos, tentando se lembrar do que ele dissera, tentando entender com o que tinha concordado. Mas um papel foi estendido a ela e o momento se foi. Ela pegou a folha, uma metade rasgada de um caderno qualquer. Viu muitas letras ali, letras que não combinavam umas com as outras, que não deveriam estar uma do lado da outra. Combinações que machucavam uma parte de seu cérebro que ela nem sabia que tinha. Sentindo outra vertigem, ela desviou os olhos do papel. O rapaz ainda sorria.

— Eu só… — Ela arriscou um palpite. — Eu só preciso ler?

— Exatamente.

Laura ficou aliviada por ter acertado. — E por que vocês, digo, você ou alguém do seu culto, não pode ler?

— Pelos motivos que eu te expliquei. Nenhum de nós realmente quer que tudo acabe. Todos os que tentaram sempre acabaram se arrependendo antes do último verso. Alguns nem chegaram na metade. E isso… Bom, isso não foi bom nem para eles nem para nós. Coisas desagradáveis aconteceram e paramos de tentar. Mas você, ah… Com você eu sei que vai dar certo.

— Eu quero que tudo acabe?

— Não quer? Acabar com essa segunda-feira, pelo menos?

— Ah… Isso sim. — Laura olhou de relance para o papel e desviou o olhar rápido. — Mas é que… Você é tão dedicado, você mesmo disse…

— Eu tenho um filho.

Ela ficou decepcionada. Achou que conseguiu disfarçar. — Mesmo?

— Sim. Toda vez que estou lendo eu lembro dele, dos seus sonhos de adolescente, da vida que ele acha que escolheu.

— Entendi… E você não se importa que ele não alcance esses sonhos?

— Vamos nos concentrar no que você sente, Laura. No que você sente e no dia de hoje. Seu dia foi péssimo, não foi? Eu garanto para você que, se você ler esses versos, este dia acaba.

Ela pensou. O dia estava uma bosta mesmo. Ela teve outro calafrio enquanto ele falava. Com certeza foi porque lembrou da sensação de nojo do macarrão gelado na boca… Sacudiu a cabeça. Com certeza era isso, não a desconfiança de que não tinha falado o próprio nome para ele. Mas devia ter falado sim. É, claro que falou.

Ela levantou o papel. — É só ler?

— É só ler.

Laura desviou o olhar do sorriso do rapaz, que estava largo e pontiagudo demais, e encarou o papel. Forçou-se a não parar de olhar. As letras estavam muito fora de lugar ali, pareciam intrusas, pareciam uma violência. Era como se um quadro tivesse sido pintado com um espancamento de cachorro. Como se uma ideia tivesse entalado na garganta de uma pedra. Ela sacudiu a cabeça de novo. A sensação estranha era só por ser um idioma que ela não conhecia, Laura tinha certeza. E não, com certeza não porque eram palavras que nunca deveriam ter sido escritas com letras criadas por humanos.

Claro que não.

Laura começou a ler com dificuldade. Duas palavras depois, sua língua se acostumou ao movimento estranho que precisava fazer para pronunciá-las. Era preciso fazer ângulos errados com ela na boca, senão os sons sairiam quebrados. Depois da terceira linha, Laura nem precisava mais prestar atenção no que fazia, o que lhe deu tempo de pensar que realmente gostaria que esse dia bizarro acabasse. Seria um grande alívio, para ser sincera. Não podia esquecer de agradecer ao rapaz por essa oportunidade.

Alguns segundos depois, ou muitos, ou nenhum, Laura acabou de ler. O próprio ato de levantar a cabeça do papel parecia estranho. Pareceu levar tempo demais só para relembrar qual lado era para cima, qual músculo era o do pescoço e o que era seu pescoço em meio a todo o resto das coisas do mundo. Mas Laura conseguiu olhar para a frente, para onde o rapaz estava sentado.

Ela olhou ao redor. Ele não estava mais ali, nem na poltrona nem no café.

Laura olhou para fora, daquele jeito lento e veloz de um tempo que não tinha uma direção certa a seguir. O céu estava com um tom verde-amarelado, algo doente e fora de lugar. As pessoas saíam dos prédios, paravam de andar nas calçadas, olhando para cima. Coisas começaram a cair das nuvens esverdeadas, formas que a cabeça de Laura não conseguia processar, formas que eram esquecidas assim que ela desviava o olhar.

E elas não pareciam cair, na verdade. O chão parecia subir ao seu encontro. Ao encontro de todas elas e de cada uma ao mesmo tempo. Mas o chão continuava parado, Laura via as pessoas de pé ali. O chão estava parado e ao mesmo tempo convulsionava ao encontro das criaturas, das coisas. As pessoas estavam paradas e apontando mas também estavam correndo e…

Laura ficou enjoada. Fechou os olhos e se recostou na poltrona.

Não queria vomitar de novo.

 


Rafael Peregrino é carioca, mas conquistou a dupla cidadania paulista. Ama a boa leitura, seja ela ficção, biografia, filosofia ou rótulo de margarina. Gosta de Futebol Americano, correr e de fazer planos megalomaníacos junto da esposa. Escreve de tudo, seus muitos contos podem ser encontrados no Wattpad e seus poucos livros na Amazon.