Defenestrada

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1

— Defenestrada? — espantou-se o detetive ao ouvir o relato do zelador.

O detetive Bernardo era um sujeito culto. Sempre carregava um livro no bolso. Nesse dia, estava a ler uma deliciosa crônica do Veríssimo quando a chamada telefônica invadiu o momento ocioso de seu plantão.

Veríssimo admirava-se que um ato como este, descrito pelo verbo defenestrar, constasse do dicionário.  Não existe verbo para definir o ato de jogar algo ou alguém pela porta, atitude relativamente mais comum do que jogar algo ou alguém pela janela. Sendo a palavra de origem francesa, é possível que a defenestração tenha sido um comportamento popular na corte que já foi considerada a mais civilizada do planeta. Bernardo lembrou-se de uma passagem de Os três mosqueteiros em que d’Artagnan jogava um criado pela janela.  Se a memória não lhe falhava, Alexandre Dumas esclarecia que o mequetrefe não se machucara por ter caído sobre uma meda de feno. Com essas idéias em mente, não é de se admirar que perguntasse ao zelador: defenestrada?

Estando em um país de gente que pouco lê,  também era de se esperar que o outro negasse, confirmando seu analfabetismo funcional, ao afirmar exatamente o que negara:

— Não, caiu da janela.

Obrigado a trocar o mundo da literatura pelo menos interessante mundo real, o detetive perguntou:

— Quem caiu?

— A menininha ali.

Horrorizado, ele mais do que depressa correu até a criança.

— Ela está viva! — Ele iniciou o procedimento de ressuscitação cardiopulmonar, na certeza de que o colega chamaria por socorro médico.

— Viva?  Como, “viva”? Ah, meu Deus, minha netinha está viva! Chamem a ambulância!

— Pois foi a primeira coisa que fiz! Antes de ligar para a polícia,  chamei a ambulância. 

A mente ágil do policial disparou a analisar com frieza profissional o que seus olhos e ouvidos registravam. O detetive percebia a necessidade de entender a ordem em que foram feitos os telefonemas. Felizmente, nos tempos atuais, as ligações podem ser rastreadas.

O homem que declarara ter chamado a ambulância era o zelador. O outro, que gritara “minha netinha”,  era Orlando, conhecido na delegacia como um dos mais inescrupulosos “advogados de porta de cadeia”. O policial registrou as mudanças de expressão no rosto do avô: choque, surpresa, tristeza, horror. Ao exclamar “chamem a ambulância” e ao permanecer longe do corpo, o velho deixava claro que não socorrera a neta. Por quê? Porque deduzira que a menina estava morta. Deduzira como? Não escapara ao olhar atento do policial que a área onde o corpo jazia desamparado fora isolada antes da chegada da viatura.  Por quem? O avô assumira o controle da cena, conforme depoimento posterior do zelador.

Os paramédicos agiram rapidamente e Bernardo se afastou. O colega sinalizou que chamara reforço e estava a subir, a localizar e isolar a cena do crime.

A garotinha com roupas bonitas e cabelos bem cuidados era uma dessas tristes crianças urbanas que mais parecem um manequim de loja, sem direito a pés descalços e contato com a natureza.

Deixando a criança a cuidados mais competentes que os seus,  ele aproximou-se do zelador,  do avô e de umas outras poucas pessoas.

O zelador  parecia sentir urgência em desabafar:

—  Eu vi uma coisa cair, aí corri; quando vi que era gente voltei correndo e aí chamei o Pronto Socorro,  a polícia… Eu fico aqui na portaria da frente, aí só vejo quem vem pelo portão; a entrada da garagem é pela rua de trás, é porta automática, aí me aparece o pai da menina dizendo “alguém jogou minha filha pela janela”, aí ele correu lá para a calçada e aí ele sacou o celular…

O detetive interrompeu:

— Ele foi olhar a filha?

Um casal trocou olhares com o velho advogado,  que chorava.  Foi o zelador quem respondeu.

— Não, ele ficou de longe, aí entrou de novo no elevador, aí apareceu de novo com a mulher e os dois meninos, aí falou no pai, aí a família subiu, aí o avô chegou e eu sem entender todo esse sobe e desce e aí o senhor chegou e viu que a coitadinha está viva.

— Foi o choque — manifestou-se o avô.

— Por que não subiram todos juntos? — perguntou Bernardo.

— A menina estava dormindo. Eu subi primeiro com ela,  depois desci para ajudar minha esposa com os outros garotos e os pacotes.

Bernardo perguntou-se se aquele seria o pai. Ao lado dele, uma mulher — seria a esposa? — segurava o seu braço. O detetive se perguntava se os dois garotos haviam ficado sozinhos lá em cima.

Bernardo apressou-se em separar os implicados:

— Alguém da família precisa acompanhar a ambulância. O mais indicado nesse momento é o avô.

Como poderia Orlando recusar-se a ir sem levantar suspeita? A separação dos envolvidos era estratégia para colher depoimentos emocionados,  frescos, antes que o criminoso pudesse elaborar mentiras com os comparsas.

O próximo passo era separar o marido e a esposa. Bernardo notou a viatura de reforço que se aproximava e decidiu rápido. O pai seguiria com ele no primeiro carro. Antunes seguiria com a mãe e as crianças na segunda viatura. Um dos auxiliares já estava a chamar alguém para cuidar dos menores. A avó,  esposa de Orlando, provavelmente seria localizada com rapidez e a ela seriam entregues os dois meninos. Antes, fariam a inspeção e o isolamento  do apartamento.

 

2

A primeira pessoa que saiu da viatura de reforço, para alegria dos dois detetives, foi uma assistente social, que se encarregou dos meninos.
O casal seguiu para a delegacia em carros separados. A esposa parecia perdida em pensamentos amargos e o pai lembrava um condenado à morte prestes a desmaiar de pavor.

— Vamos subir, então.

Quando Antunes e Bernardo chegaram ao andar, não havia ninguém no corredor. Bateram à porta vizinha; ninguém atendeu.

— Vou confirmar com o zelador se não tem ninguém morando aí ao lado — disse Antunes ao entrar no apartamento.

— O apartamento parece bem cuidado, tudo limpo e arrumado. Vou olhar a cozinha.

— Tem sangue aqui, Bernardo. — Antunes apontou para a mesinha de centro. — Espirrou no sofá também, aqui nesse canto.

Bernardo tirou fotos, marcou o local e coletou uma amostra do sangue de cada um dos respingos.

— Antunes, foi daqui — chamou Bernardo, parando à porta do quarto do casal.

A janela aberta, a rede de segurança cortada, um alicate no chão.

Antunes confirmou que havia sangue na rede e nas paredes externas, e foi sua vez de marcar, fotografar e coletar as amostras.

No colchão, era visível a marca de onde um adulto ajoelhara-se em frente à janela.

— Um homem levaria uns três minutos para cortar a grade, e mais alguns para jogar o corpo. Uma criança não teria força suficiente para usar esse alicate.

Bernardo olhava para baixo:

— O pessoal da técnica precisa responder se há diferença entre um corpo que caia sozinho e um corpo que seja atirado ou empurrado.

— Ninguém a ouviu gritar, mas ela estava viva.

— Devia estar inconsciente.

— Por que o desgraçado do avô não socorreu a menina?

— Por que o pai não socorreu a menina?

— Sabe, Antunes, pela cara de desespero que ele fez quando eu gritei que a menina estava viva, só posso pensar que ele tinha certeza de que ela estava morta. Ele não sabia.

— Como ele poderia ter chegado antes da gente e ainda por cima ter certeza de que a garota estava morta?

— Ele veio porque alguém o chamou.

— O assassino ligou para ele?

— O filho ligou para ele, suponho. Logo saberemos.

— Vamos lacrar o imóvel e examinar o carro.

— Primeiro o elevador.

— Estou aqui encafifado com o Gente Boa.

— Quem?

— O apelido daquele velho é Gente Boa, não lembra não? Porque toda hora ele entra na delegacia falando que “esse sujeito aí é gente boa”… O sujeito está tão acostumado a acobertar bandido que até se esquece de ir ver se a vítima está viva.

— Detalhe: a vítima é neta dele.

Bernardo lacrou a porta. A primeira etapa da inspeção estava concluída.

 

3

Antunes pediu café e sanduíches; Anita reclamara que estava com sono e com fome.

— Vamos acabar logo com isso, meus filhos precisam de mim.

Nenhuma palavra sobre a enteada. Nenhuma lágrima.

— O que aconteceu?

— O Jorge, o meu pequeno, estava chorando. A irmã tinha cortado o dedo eu não sei onde e ele estava assustado com o sangue.

— O que vocês fizeram?

— Eu disse para o Fábio subir com a garota, porque o Jorge fica difícil quando chora, e não dava para segurar sacola e dois filhos. Fábio subia com a Melissa, largava ela lá em cima e voltava para me ajudar com os outros dois.

— Melissa dormiu com o irmão chorando?

— Dormiu.

— E o dedo machucado?

— Foi um cortinho de nada.

— Então…? O Fábio subiu e você ficou quanto tempo no carro?

— Ele não demorou, não. Pegou um dos meninos, eu peguei o outro, subimos. Aí lá em cima logo vimos que tinha alguma coisa errada. A porta estava aberta! Eu fiquei com medo e Fábio entrou sozinho.

— Chamaram pela menina?

— Não, ela estava dormindo, ou devia estar.

— Ela poderia ter acordado e aberto a porta, descido pelo outro elevador. Poderia ter ficado assustada em ver que estava sozinha no apartamento.

— Não pensei isso na hora.

— Em que pensou?

— Em algum ladrão.

— O Fábio entrou. Depois…?

— Ele me disse que não encontrou a menina, mas que a janela estava aberta e que parecia que ela tinha caído, ele ia descer para verificar.

— Como ele disse isso?

— Como?

— Gritou? Chorou? Como ele estava?

— Estava preocupado, a menina devia estar machucada. Olhou nos outros cômodos para ver se não havia ninguém, então falou para eu ficar na sala com os garotos e esperar por ele.

—  Ele pensou que havia alguém dentro do apartamento nessa hora?

— Não sei, acho que ele pensou que ela havia caído.

— Dona Anita, a senhora tem rede de segurança na janela, como uma criança poderia cair?

— Ela poderia ter cortado a rede ela mesma.

— O seu marido desceu dizendo que um estranho tinha atirado a filha dele pela janela. Não sabia?

— Estou nervosa, não tenho cabeça para prestar atenção em todos esses detalhes, sabe?

— Mas a senhora desceu e deixou os meninos lá em cima sozinhos, mesmo a sua enteada tendo caído lá de cima.

— O Fábio estava demorando muito a voltar, eu liguei para ele, como ele não retornou eu resolvi descer. Os meninos são muito obedientes, não iriam sair da sala sem eu mandar.

— Um menino de três anos…

— Dois.

— Como?

— O Jorge tem dois anos.

— E não lhe pareceu que uma criança de dois anos, assustada, poderia pensar em sair correndo atrás da mãe e se perder, cair ou ser pega por algum vizinho? Talvez alguém mal intencionado? Alguém que já tivesse machucado a Melissa?

— Não, não me ocorreu.

— A senhora pensou em telefonar pedindo ajuda?

— Claro, eu liguei para a ambulância.

— Mesmo? Por que não disse isso antes?

— Não disse? Bem, eu liguei; agora posso ir embora? Quero ver os meus filhos.

— A senhora se dava bem com a sua enteada? Ela era uma garota difícil, chorona, ciumenta, ranheta?

— Melissa é um amor de garota; fofa, alegre, bem humorada; os meninos adoram ela. Ela nunca me deu trabalho algum.

— A senhora ligou para a mãe dela?

— Não, não liguei.

Antunes deu-se conta de que ninguém se lembrara da mãe da menina.

— Tem o número dela aí? Aliás, como é o nome da mãe?

— Carlota. Deixe-me ver aqui na agenda… Quer anotar?

Antunes inclinou-se e copiou o número em um pedaço de papel.

Essa parte de ligar para os familiares era a que ele mais detestava em sua profissão. Diria a ela que a menina se machucara, e que ela deveria ir até o hospital, sem maiores detalhes. Assim, a mãe teria tempo de se preparar para esperar o pior.

 

4

Bernardo poucas vezes vira um rapaz tão sonso como o filho de Orlando. De olhos fixos no teto, parecia um bom aluno decorando a tabuada para a prova do dia seguinte.

— Bem, Fábio, este é um depoimento preliminar. Por favor conte tudo o que se lembra, desde que chegou no prédio.

— Nós entramos pela porta da garagem, sem maiores incidentes, não percebi nada estranho ali.

— Por que subiram separados?

— Os meninos tinham dormido. Aí eu resolvi levar a Melissa para cima primeiro, e depois descer para ajudar a Anita a carregar os garotos. Ela não ia conseguir levar os dois juntos, entende?

— Por que a menina não subiu junto com vocês, se ela estava acordada? Aí ela podia ajudar a abrir e fechar as portas, a carregar as sacolas, não podia?

— Ela não é muito de ajudar, não; ela faz barulho, fala alto, ia acordar os meninos. Do jeito que eu fiz era melhor.

— Notou alguma coisa estranha quando subiu? Alguém no elevador?

— Subimos apenas nós dois. Acho que ouvi música no apartamento ao lado, não tenho certeza. Deixei a Melissa na sala, comecei a descer pelo elevador e ouvi um barulho.

— Quando ouviu o barulho?

— Quando eu já estava descendo, foi logo depois. Como se alguma coisa tombasse, uma porta batesse, algo assim.

— O que fez?

— Voltei e chamei pela Melissa. Ela não respondeu e eu entrei.

— Tinha trancado a porta?

— Não, deixei só encostada, não quis deixar a menina trancada.

— Por que não?

— Achei mais seguro, vai que acontecesse alguma coisa e ela quisesse sair, e não conseguisse.

— Alguma coisa como?

— Pegasse fogo, sei lá, eu não gostava de ficar trancado quando era menino, e, afinal, ela tem cinco anos, não é como se não soubesse perguntar pelo pai ou dizer o número do apartamento para outra pessoa, entende?

— O senhor ouviu um barulho e entrou.

— Entrei, e foi aí que eu vi a rede cortada, e corri à janela, vi a Melissa caída lá embaixo e voei para a rua.

— Ligou para alguém antes?

— Não, só corri para ver minha filha.

— O zelador disse que o senhor ficou na calçada falando ao celular. Foi isso?

— Eu logo vi que daquela altura ela só podia estar morta, aí liguei para o meu pai.

— Senhor Fábio, a menina não estava morta. Estava viva. O senhor não pensou em examinar sua filha? Pegar o pulso? Chamar a ambulância?

Lágrimas correram abundantes pela face do moço, que ficou sem ar.

— Se eu soubesse! Se eu soubesse!

— Se soubesse o quê?

— Se eu soubesse que ela estava viva… Ah, meu Deus!

— Acalme-se; ela está no hospital, temos esperança.

O rosto do rapaz ficou ainda mais pálido, e ele estremeceu violentamente.

Bernardo teve uma das suas idéias malévolas.

— Senhor Fábio, quando sua filha se recuperar, ela mesma vai contar como foi ou quem foi que…

— Não!

— “Não”?

— Sim, sim, claro.

— “Não” o quê?

— Qual era a pergunta?

— Pergunta? O senhor é quem gritou “não”.

— Gritei? Estou fora de mim, desculpe.

— Quando foi que desceu para chamar sua esposa?

— Ah, logo que liguei para o meu pai, eu disse a ela para subir, ficar com os meninos lá em cima porque ia haver muita confusão embaixo e eles iam ficar assustados.

— Deixou sua esposa e seus filhos sozinhos onde disse que um estranho entrou e jogou sua filha pela janela?

— Já não havia mais perigo.

— Como não havia?

— Pense comigo, se o senhor jogasse uma criança pela janela e o pai dela percebesse, o senhor não ia procurar sair dali o mais depressa possível?

— Não se eu tivesse a intenção de matar a família toda.

— E por que alguém ia querer matar a família toda?

— Desculpe, doutor Fábio, mas o senhor é um advogado. Seu pai é advogado de bandidos. Vingança poderia ser um motivo, não acha?

— Não pensei nisso.

— Em quê o senhor pensou?

— Na minha mulher, eu queria deixar a minha mulher longe disso tudo.

— “Isso tudo” é a sua filha, suponho.

— Carlota, eu vou ter de contar para a Carlota, alguém vai ter de contar para a Carlota. Coitada da Carlota.

— Quem é Carlota?

— A mãe. Minha primeira esposa.

Novamente Bernardo observou um brilho febril nos olhos fundos daquele pai, que jogou a cabeça sobre as mãos e liberou os soluços.

Descontrolados e inconsoláveis soluços.

 

5

A praga do século XX, a malfadada televisão, não perdeu tempo em veicular todos os depoimentos não oficiais que conseguiu. Pouco adiantava o sigilo policial sobre os testemunhos do inquérito, pois as informações de rua viajavam na velocidade dos satélites.

Fato: a criança caíra.

Fato: o pai e o avô estavam no local, mas longe do corpo.

Fato: o policial foi o primeiro a socorrer a vítima.

Conseqüência: indignação popular.

Milhares de pessoas gritando “monstro” e “lincha” se reuniram em frente ao prédio dos Justos antes da meia noite.

O juiz encarregado do inquérito houve por bem decretar a prisão temporária dos dois suspeitos para garantir a segurança do casal. Detenção em cela individual, na própria delegacia, pois se tratavam de suspeitos, não de julgados e condenados.

Entrevistadas nas ruas, as pessoas eram eloqüentes:

— Afinal, são dois universitários, né?

O jornalista esclarecia:

— Fábio é advogado, como o pai, e Anita é pediatra.

Pronto. Confusão armada. Pediatra? E como vai deixando uma criança sozinha? Eles, os pediatras, não são os primeiros a dizer que os acidentes acontecem em casa, e que as crianças precisam de supervisão constante? E não foi socorrer a vítima? Aliás, nem foi olhar a vítima.

Os espectadores acompanhavam ansiosos o que as pessoas diziam nas ruas. Vizinhos que não tinham ouvido gritos. O zelador que mostrava as câmeras, onde ninguém estranho ao prédio entrara ou saíra. Cada uma das pessoas dizendo exatamente onde e com quem e o quê estavam fazendo quando o crime aconteceu — a essa altura, ninguém acreditava mais que se tratasse de um acidente. Cada vez mais o círculo se fechava em torno da família.

O depoimento da mãe da menina, pega de surpresa na entrada do hospital, mostrando a foto da filha sorrindo, as imagens da sorveteria onde a família estivera à tarde, com Melissa a brincar e rir com os dois meio irmãos, estranhamente não fortaleciam a imagem de uma família feliz. Ao contrário: o povo dizia “coitadinha, tão inocente, nem percebeu a maldade da madrasta”. No imaginário popular, a figura da madrasta já estava se transformando em dragão feroz a soltar fogo pelas ventas.

A notícia da morte da garota foi o estopim para uma tentativa de invasão da casa do Gente Boa, onde estavam os meninos, sob proteção policial. Uma onda humana quase derrubou o muro aos gritos de “morte ao assassino”. A pobre avó aparecia na janela aos gritos:

— Pensem nas duas crianças inocentes que estão aqui comigo! Sejam razoáveis.

Não foram. A polícia precisou de várias viaturas para esvaziar a vizinhança e levar a família para um local secreto.

Bernardo, assistindo o noticiário no bar junto com Antunes, sorriu.

— Para alegrar um pouco esse circo de horrores, é bom ver a cara do Gente Boa assustado. Depois dessa, ele vai ficar mais mansinho, aposto.

— Mansinho? Ele nunca foi ameaça.

— Arrogante. Presunçoso.

— E você já passou da idade de chamar sua rotina de circo de horrores.

— Quer saber a verdade? Não passei. Confesso: é a primeira vez que senti vontade de vomitar por causa do meu trabalho. Matar gente é uma coisa. Atirar criancinhas pela janela é outra bem diferente.

 

6

A assistente social parou em frente a Bernardo.

— Vim dar notícias dos meninos.

— Como eles estão?

— O menor não diz uma palavra sequer e nenhum dos dois consegue dormir.

— Onde estão?

— Com a avó. Comigo supervisionando. Por ordem judicial. O curador de menores não confia totalmente na família. Eu cuido para que tenham acompanhamento psicológico. Um pediatra foi chamado e achou desnecessário dar tranquilizantes.

— A palavra que ele usou foi “desnecessário”, Marília? Você é quem acha necessário ficar drogando menores.

— Longe de mim ter esse poder. A palavra que ele usou foi “inadequado”. Bem, já sabe, tem meu telefone e endereço; os dois estão sob minha supervisão até segunda ordem. Agora posso dar uma palavrinha com a mãe deles?

— Claro, por aqui, siga o Samuel. Samuel, leve a Marília até a Anita Justo.

 

7

— Uma das vantagens de ser cheio da grana — comentou Antunes, apontando para Bernardo, com um erguer de sobrancelhas, o homem elegante que atravessava a rua

O professor Ernesto, catedrático renomado, cumprimentou os dois policiais, parando para uma curta troca de palavras:

— Caso triste, rapazes. Ponho-me no seu lugar, Bernardo. É de estarrecer.

— Bom dia, professor. Vá ganhar o seu dinheiro.

— Ainda não aceitei o caso.

Bernardo o olhou com interesse, curiosidade e certamente com mais simpatia.

— Se está aqui…

— Vim conhecer o cliente. Ele não foi meu aluno. Desse caso com certeza algo há de servir para as minhas aulas.

Despediram-se.

— Antunes, eu gostaria de estar lá dentro e ouvir o que esse rapaz vai alegar ao advogado.

— Orlando deve ter instruído o filho a ficar calado.

— De qualquer forma não vamos ficar sabendo. Ernesto é um homem ético.

Lá dentro, na delegacia, Ernesto abria seu bloco de anotações, à frente de seu cliente.

— Então, Fábio, sou todo ouvidos.

— Foi ele. Já pegou o ladrão?

— Que ladrão?

— O que matou minha filha.

Ernesto esperou por alguns minutos, suspirou e disse:

— Fábio, eu sou um ladrão. Encontro uma menina sozinha em casa. Talvez dormindo. Por alguma razão a criança não me denuncia, ninguém a ouve gritar. Ao invés de roubar e ir embora, eu pego um alicate, jogo a criança pela janela, fujo de mãos vazias. Faz sentido para você?

— Então foi vingança.

Ernesto examinou a expressão do rapaz atentamente.

— Por que você não socorreu a Melissa?

— Ela estava morta.

— Sua filha estava viva. Você não foi verificar. Não confirmou a morte. Por quê?

— A Anita me disse.

— Anita nem chegou perto do corpo! Você passou pelo porteiro sozinho, depois foi buscar Anita. Desembucha, rapaz.

— Eu fiquei nervoso.

Ernesto aguardou. Minutos se passaram. Nada.

— Sabe, rapaz, eu tenho o seu pai em conta de homem inteligente, mesmo não concordando muito com os métodos dele, mas dessa vez ele me pediu algo contrário ao bom senso e à boa prática profissional. Ele me pediu que defendesse ao mesmo tempo você e Anita.

— Porque o senhor é o melhor.

— Fábio, conte a verdade. Eu não posso te aconselhar se não souber a verdade.

— “Aconselhar”? Eu lá quero conselho? Quero é ir para casa.

— Você não entendeu o problema ainda.

— Qual é o grilo?

— Para começar nem você nem Anita chamaram socorro. Nem se aproximaram da menina.

— A gente pensou…

— Para complicar, Fábio, Anita deu um depoimento totalmente diferente do seu.

— Aquela desclassificada. Só falta ela querer se livrar jogando a culpa para cima de mim.

— “Jogar a culpa”? Culpa de quê?

— Nada, nada.

— “Se livrar”? Seja claro.

— Ache o ladrão. Ele é o culpado.

Ernesto sinalizou ao segurança que a entrevista terminara, para que ele levasse o detido embora. Em seguida lhe trouxeram Anita Justo.

— Então, Anita, o seu sogro quer que eu defenda você e seu marido.

— Obrigada, professor, por nos representar.

— Não; deixe-me ser mais claro: eu ainda não aceitei.

— Por que não?

— Primeiro eu preciso saber a verdade.

— Melhor não dizer mais nada.

— Como seu advogado, eu preciso saber a verdade.

— Para jogar a culpa em mim e livrar o Fábio.

— Você é inteligente. Compreende que, pela posição dos celulares, a polícia saberá exatamente quem estava aonde?

— Não; a polícia saberá quem ligou para quem.

— O que, por si só, pode ser bastante incriminador, não é mesmo? No entanto, a operadora pode e vai nos informar, com precisão de milímetros, o local exato de cada ligação. Claro, o fato de que nenhuma ligação foi feita por vocês para pedir ajuda já está pegando pesado, como diz o povo. Uma criança, Anita! Você podia não gostar de sua enteada, mas deixar a garotinha ali jogada, morrendo, sem ajuda? Você, uma pediatra?

Os lábios da moça tremeram. Ela encarou o professor com olhos brilhantes.

— Meus filhos. Eu tenho de pensar em meus filhos.

— O que seus filhos viram, Anita?

Ela baixou os olhos, lábios apertados.

Ernesto levantou-se.

— Um acidente, eu compreendo. Um alicate cortando a rede de segurança, não. Estou fora do caso.

*

Até o fim da semana foram cinco os advogados procurados pelo Gente Boa. Os jornalistas os abordavam à entrada:

— O senhor  vai aceitar o caso recusado pelo professor Ernesto, o melhor criminalista do país?

O sujeito fazia pose para a câmara:

— Todo réu tem direito à defesa.

— O senhor acha que o casal é culpado?

Novamente o peito estufado e a pose estudada.

— Não houve julgamento ainda e todo acusado é considerado inocente até prova em contrário.

— Ou confissão, não é mesmo?

— Ninguém confessou nada; com licença.

Horas depois, mais humildes, os mesmos advogados procuravam sair de fininho.

— Doutor, pegou o caso? Podemos anunciar seu nome como o novo advogado no caso Justo?

O abordado agora colocava a mão em frente do rosto a evitar os flashes.

— Não. Nada a declarar.

*

Os piadistas não perderam a oportunidade: de alienígenas a encostos, os texto mais cômicos pululavam na imprensa marrom.

“Um ET materializou-se no apartamento da família Justo, encontrou uma unidade de carbono desativada, atirou-a pela janela para estudar a gravidade do planeta Terra e em seguida teletransportaram-se sem serem detectados pelas câmaras de segurança do prédio.”

“Um fantasma malvado utilizou o corpo do advogado Fábio Justo para cometer o crime. A seguir retornou ao Umbral deixando atrás de si um pai sem nenhuma lembrança da incorporação.”

“Insanidade temporária. Uma condição médica conhecida como epilepsia do lobo frontal pode ter desencadeado uma crise durante a qual o pai assassinou a filha sem ter conhecimento do que fazia. Os médicos confirmam que tais crises são precedidas por aura (explicando o barulho supostamente ouvido por Fábio) e seguida por amnésia total.”

Antunes afastou a pilha de jornais para o lado:

— Não é engraçado. Sinto náuseas ao ler essas porcarias. Pelo que ouvi hoje, o estado vai designar a defensoria pública para representar o casal Justo. Pobre Orlando.

— O filho que ele tem é produto da educação que ele deu.

— Você não acredita mesmo nisso, não é, Bernardo? Claro, educação influi, mas não é tudo. A genética, o meio ambiente, as circunstâncias…

— Blablablá, Antunes. Quer saber no que eu acredito? Em escolhas pessoais. Livre arbítrio. E eu não estou falando do livre arbítrio de Spinoza, não. É no meu, mesmo. Um dia vou escrever um livro e expor minha teoria sobre paternidade eficiente e responsabilidade social.

— Bernardo, alguém já lhe contou que você escolheu a profissão errada?

 

8

Há casos e acasos. A verdade talvez ficasse acomodada entre revelações e comoções por trás de telas variadas: máquinas fotográficas, televisores, filmadoras. Se tal não aconteceu foi por Antunes ter chegado cedo e resolvido estacionar na rua de trás, para saborear um pão de queijo com o parceiro, no Cantinho do Afonso.

— Não consigo entender como um homem tão bem de vida como o seu Orlando anda por aí com um relógio atrasado — comentou o Afonso, conversando com os fregueses de longa data.

— Rolex não atrasam.

— Não era Rolex, não, era Citizen, tenho um igual. Comentei com ele naquela manhã e avisei: olha, o seu mostrador está atrasado meia hora. Depois ele aparece ali — Afonso apontou para a TV — dizendo que passou na casa do filho às onze para entregar a mochila que a netinha havia esquecido no carro. Foi mais tarde, com certeza. Às onze ele estava aqui, comparando os relógios comigo. Ele deve ter pensado que o meu é que estava adiantando.

Bernardo ergueu os olhos.

— Suas câmaras de segurança estão gravando?

— Claro, doutor, não são câmaras de fantasia, não. Se um ladrão ousar me assaltar, fica tudo registrado aí para vocês.

— Tem muito comerciante economizando com câmera falsa, você sabe. Você pode nos ceder as gravações do dia do acidente? Extra-oficialmente. Eu e o Antunes assistimos aqui mesmo, e se for importante a gente depois volta com um pedido do juiz.

— Claro, doutor. Venha aqui no escritório.

— Separe as fitas. Voltamos depois do teste. A perícia preparou uma simulação para daqui a… dois minutos. Prepare aí uma boa cumbuca de feijão preto, com os torresminhos da casa e a sua couve mineira maravilhosa, que voltamos para almoçar.

Os dois detetives se retiraram.

— Antunes, você notou algo diferente nas fitas do dia do acidente?

— Fora um volume em um dos bolsos do Orlando, nada.

— Precisamente. Ele nos disse que era uma caixinha de Tic-Tac. Coisa dos netos.

— Vamos acompanhar a simulação. Tenho uma idéia esquisita aqui me azucrinando.

Muitos jornalistas se posicionavam ao redor do prédio.

Eram grandes as expectativas do público e da mídia. O teste da perícia determinaria se o corpo caíra sozinho ou com ajuda. Cautelosos, os peritos haviam pedido uma semana de prazo para confeccionar bonecos com o mesmo tamanho e peso da garotinha. Também quiseram fazer estudos preliminares. Até a imprensa internacional acompanhava o caso, então tudo precisava sair direitinho, no capricho.

Chegou o dia marcado, afinal. Centenas de pessoas debruçavam-se nas janelas dos prédios ao redor ou esmagavam-se nas calçadas em frente. Um garoto abordou Bernardo e Antunes:

— Por cinquenta pilas eu coloco vocês no terceiro andar. Ali.

— De graça eu vou estar ao lado do perito. — Antunes, rindo, mostrou seu distintivo ao decepcionado garoto.

Bernardo resmungou:

— Deve ter algum espertinho vendendo foto da janela dos Justos e algum otário comprando.

— A criatividade humana é fascinante, colega.

— É nojenta, isso sim. Acho que eu prefiro acompanhar os testes daqui de baixo.

A simulação durou duas horas exatas.

Antunes observou que Bernardo estava mais interessado em Orlando do que na simulação. A verdade é que o velho advogado parecia agora o fantasma de si mesmo.

— Eu vou almoçar em um lugarzinho aqui atrás. O Cantinho do Afonso. A comidinha é caseira, deliciosa — comentou Bernardo, aproximando-se quase casualmente de Orlando. Absorto em seus próprios pensamentos, a velha raposa não percebeu que estava sendo sondada.

— O Cantinho do Afonso. Conheço. As crianças gostam do sorvete de lá.

— Passou por lá esta semana? Tem novidades no cardápio?

— Não, faz algum tempo que não vou lá. Quase um mês, na verdade. Olhem, acabou. Vão recolher os bonecos. É um sofrimento, detetives, recordar, lembrar, ficar andando por aí com escolta para não ser linchado pela rua, este pesadelo não termina. Pobre do meu filho! Meus netinhos!

— Como estão os meninos?

— Em casa, com a Débora, minha esposa. Não podem ir à escolinha, saem todo santo dia com aquela assistente social horrorosa para ir ao psicólogo. Tão inocentes, não mereciam passar por isso.

Subitamente o rosto de Orlando endureceu.

— Por que estou falando com vocês, afinal? Não foi meu filho, mas ninguém acredita em mim.

O populacho começou a dispersar. Bernardo e Antunes fecharam e lacraram o apartamento, despacharam os peritos e foram almoçar.

Afonso instalou uma mesa para eles em seu escritório. Uma cerveja gelada, a cesta de pães frescos, os pratos feitos.

— Quando terminarem, é só ligar, aperte aí a tecla 2 nesse telefone. Fiquem o tempo que precisarem. Aí estão o vídeo, o controle remoto e as três fitas do dia do acidente.

— Obrigado, Afonso.

Quando se viram a sós, Bernardo falou:

— Coloca aí perto das onze, dez minutos antes.

Às cinco para as onze viram um homem entrar. Usava as mesmas roupas e um boné igual ao de Orlando. Levava nas mãos uma mochila rosa com bichinhos, idêntica à de Melissa.

— Não vejo o rosto dele, até parece que ele está evitando a câmara — reclamou Antunes.

O homem tomou um expresso, comparou seu relógio com o de Afonso, confirmando a meia hora atrasada, e saiu.

Bernardo retirou outra fita de sua pasta particular.

— Editei uma cópia da fita pericial para mim mesmo. Observe, Antunes. Ah, aí está.

No quadro congelado, Orlando e Melissa entravam no prédio. O avô usando camisa rosa, bermuda, boné e Rolex no pulso.

— Você acha que o homem mudou de relógio?

— Improvável, mas não impossível.

Na sequência, Orlando saía e retornava logo depois, com a mochila, e dizia ao zelador:

— Vou subir outra vez, a menina deixou a mochila no carro.

Logo após, entraram na portaria várias pessoas quase no mesmo momento: um carteiro, um entregador particular, um casal atrapalhado a perguntar por um morador. Se Orlando ou outra pessoa passasse naquele momento, saindo ou entrando, o zelador nem perceberia, distraído atendendo aos outros, e tendo seu campo de visão restrito.

Os detetives terminaram de almoçar, pediram a sobremesa, a fita corria e nada de Orlando reaparecer.

— Talvez ele tenha saído pela garagem, onde não há câmara.

— Talvez. Corra para a hora do acidente.

— Ei, pare aí. Olhe o relógio!

— Que relógio?

— Nesse quadro aí, vemos Orlando com o tal volume no bolso da camisa, e ele está de mangas arriadas, de maneira que não podemos ver o relógio.

Mais alguns minutos de filmagem. Outra vez Orlando passa correndo pela câmara.

— Congela! Olha aí: dessa vez vemos o Rolex e não tem volume nenhum no bolso dele.

— Ele disse que jogou fora a caixinha vazia de Tic-Tac. No entanto, seria um estranho momento para jogar fora uma caixinha de balas, não é mesmo?

— Volte a fita. Vamos contar as idas e vindas dele.

— Exatamente o que eu ia sugerir.

Entrou. Saiu. Entrou. Saiu. Saiu. Entrou.

— Aí tem lebre!

— Dois homens?

— Dois homens. Roupas iguais. Relógios diferentes. Um deles com um pequeno volume no bolso da camisa.

Bernardo retirou de sua pasta uma caixinha de Tic-Tac e um pendrive. Colocou um em cada bolso de sua própria camisa.

— Olhe.

— Você está pensando que…

— Algo foi roubado aquela noite, afinal. Vamos falar com o Ernesto.

— Ernesto?

— Antunes, esse pessoal da perícia está com a cabeça feita. Ninguém gosta do Orlando. No fundo está todo mundo adorando que a família dele se estraçalhe. Já o povo, esse vê o que a mídia quer que seja visto. A anta do nosso chefe quer dar um nome ao culpado o mais rápido possível. Ninguém vai querer saber da fita do Afonso. Eu não tenho autoridade, nem você, para mudar a direção do inquérito. Já a defesa do réu, sim.

— Uma terceira pessoa… Escondida onde?

— É o que o Ernesto pode descobrir. Vamos lá.

Ernesto acompanhou Bernardes e Antunes ao Cantinho do Afonso e examinou as duas fitas.

— Acho que sei do que se trata — disse ele. — Vou voltar à cela do Fábio. Afonso, rapaz, guarde essa fita com carinho. Vou voltar amanhã com a ordem judicial; até lá não posso requisitar a prova. Guarde segredo. Sigilo absoluto. Combinado?

— Sim, senhores. — Afonso obviamente não havia entendido nada, mas obedecia, secretamente orgulhoso em colaborar com a justiça.

Naquela mesma tarde, Ernesto retornou à delegacia onde Fábio e a esposa continuavam detidos.

—  Boa tarde, professor. Então meu pai não desistiu de mim.

— Ao contrário: seu pai não sabe e nem deve saber ainda que estou conversando com você.

— Mas, então…

— Eu sei de tudo, rapaz. — Ernesto colocou um pendrive sobre a mesa.

Fábio estremeceu, examinou o objeto com interesse e depois virou o rosto. Ernesto prosseguiu:

— Um pequeno objeto sumiu de seu apartamento naquela noite… Um detalhe tão pequeno que quase passou despercebido pelo exame das fitas. Sorte sua eu ter visto.

Fábio suspirou, mas continuou calado.

— Alguns anos em prisão semi-aberta por confessar um crime menor ou vários anos em regime fechado por um crime hediondo que não cometeu. É uma escolha fácil. Confesse.

 

9

— Quem acreditaria em mim?

— Ninguém. Infelizmente, quando alguém mente o tempo todo, as pessoas em volta ficam convencidas de que até a verdade é mentira. Ninguém vai acreditar em você, Fábio. As pessoas vão acreditar em mim.

O rapaz revelou:

— Há alguns meses uma multinacional me procurou, interessada em informações sobre as jazidas de petróleo do Jazidas de Xisto.

— E você resolveu roubar informações industriais.

— Que idéia. Eu só estava espionando. Só fiquei de intermediário.

— Em troca de uma boa propina pela intermediação.

— Negócios são negócios.

— Prossiga.

— Um sujeito me trouxe as informações em um pendrive há uma semana. Eu deveria ter ido almoçar com um americano no dia seguinte ao da morte da Melissa. Não pude concluir o negócio. Não ia poder concluir, de qualquer maneira.

— Quando deu por falta do pendrive?

— Quando entrei no apartamento e não vi a Melissa, fui até o escritório; o pendrive não estava mais lá.

— E depois de procurar o pendrive você foi procurar sua filha?

— Isso. Depois de procurar o pendrive eu pensei que a Melissa pudesse estar escondida, aí eu vi a grade cortada.

Ernesto sentiu uma grande tristeza. Os Fábios desse mundo o faziam perder a esperança na humanidade.

— Você tem a chave do apartamento do lado?

— Tenho; o vizinho quando viajava deixava a chave comigo para molhar as plantas e eu fiz uma cópia para mim.

— Quem mais sabia dessa cópia? Suponho que o vizinho nem imagina que ela existe.

— Não, ele não sabe. Ele está pensando em vender o apartamento. Anita sabia. Meu pai também sabia.

— Seu pai sabia sobre o pendrive?

— Não, meu pai foi contratado por uma firma brasileira interessada em ganhar a licitação da perfuração dos poços.

Então, pensou Ernesto, o velho sabia.

— Suponho que seu pai não aprovasse a entrega desses documentos sigilosos para a multinacional.

— Claro que não!

— Veja, Fábio, os fatos são esses: um homem, cujo rosto não vemos, passou em frente à câmara com um pequeno volume no bolso, na hora da confusão.

— Como ninguém notou?

— Ele usava roupas iguais às de seu pai. Exceto pelo Rolex. Para disfarçar, ele cobriu os punhos.

— O senhor disse que ninguém notou.

— Eu notei. O fato é que eu terei de provar que o homem na câmara não é seu pai. Na realidade eu já fiz isso, pois ele aparece em outro local, no mesmo horário em que seu pai chegou em seu apartamento pela manhã com Melissa. Chegou, mas não saiu.

— Não entendi.

— Um homem, que sabia do pendrive, estava em seu apartamento. Um homem com o mesmo peso e altura de seu pai. Um criminoso implacável. Sei quem ele é. Circula pela Senado, está infiltrado na cúpula do governo e eu gostarei imensamente de caçá-lo. Antes que ele passe as informações para a mesma multinacional que você, pelo dobro do preço.

— Como?

— A maior parte do dinheiro dos diretores dessa empresa… essa… exploradora de petróleo… para a qual você supostamente trabalha… A maior parte do dinheiro, ia dizendo eu, vem da venda de informações sigilosas aos supostos concorrentes. Subornar o país para enriquecer a si mesmo.

— Tudo foi uma armadilha, então? Eu confesso, fico com meu nome sujo, ou respondo processo por assassinato? Que rolo!

— Responde ao processo por roubo e escapa do assassinato. Pegar ou largar.

Ernesto levantou-se e dirigiu-se à porta.

— Pego.

— Assine os papéis, então — e o criminalista tornou a sentar e abriu sua pasta.

 

10

O juiz de instrução ficou boquiaberto.

— Como, Ernesto? Em dois dias você me entrega evidências, elabora teorias, traz uma confissão bomba de seu cliente e me pede voz de prisão para um senador?

— Peço soltura imediata de Anita. A moça não está implicada em nada.

— Vá lá. Liberdade para Anita.

— Habeas corpus para Fábio. Ele confessou. É réu de crime menor. Sem risco de fuga. Pode responder em liberdade.

— Concedido. Já a prisão do senador…

— Cassação imediata do passaporte. Ou ele foge.

Ernesto colou uma série de fotos sobre a mesa do juiz.

— Vê a semelhança? Pintar um grisalho aqui, colocar um falso bigode ali, roupa igual. Se colherem as impressões digitais no apartamento ao lado, onde ele permaneceu a tarde toda…

— Com que chave?

— Fábio tem uma cópia da chave. Ele recebeu uma cópia da chave, chegou, entrou…

— Quem lhe deu a cópia, se Fábio supostamente estava em casa quando ele chegou?

— Orlando.

— O quê?

— Orlando planejou tudo. Soube que o filho fora contratado pela facção contrária, chamou o outro para se passar por ele, entrar no prédio, pegar o pendrive e sair. Eu imagino que o senador cansou de esperar e dormiu, até dar por si e perceber que a família retornava do passeio.

— Muito azar, doutor!

— Infelizmente, bandidos também dormem no ponto. O sujeito ouve Fábio entrar e sair, escuta o elevador descer e pensa ter tempo suficiente para apoderar-se do pendrive e voltar a trancar-se no apartamento do vizinho. Ele não contava com Melissa.

— A menininha não gritou.

— Não, ela pensou que ele fosse o avô, aproximou-se, ele se assustou e apertou a boca dela para que ela não gritasse.

— Ele a asfixiou.

— Acho que foi por acidente. A garota se debateu, ele apertou demais, pensou que ela houvesse morrido e a atirou janela abaixo.

— Não encontramos impressões digitais.

— No apartamento de Fábio ele entrou de luvas. Já no apartamento vizinho ele talvez tenha sido mais descuidado. Possivelmente encontraremos fios de cabelo ou coisa melhor.

— Eu autorizo a visita ao apartamento vizinho. Se encontrar algo lá, só então eu peço a detenção do senador.

— Obrigado.

Meia hora depois Ernesto ligava, animado. No apartamento vizinho os investigadores haviam recolhido fios de cabelo e de barba, pelos de um bigode postiço, lençóis amassados e impressões digitais.

— Telegrafo já para Brasília — bradou o juiz.

 

11

— Detetive Bernardo! Detetive Antunes! Desculpem, não estou contente em ver vocês; a cada vez que aparecem, lá vem desgraça! O que é dessa vez?

— Boa tarde, Dona Débora. Hoje a notícia é boa.

Por detrás da avó, dois garotinhos espichavam uns olhos enormes.

— Será?

— Seu filho vem para casa. Ele é inocente da acusação de assassinato.

— Valha-me, Deus! Ai, meu coração estava tão pesado! É inocente, meu menino…

Antunes tossiu:

— Inocente da acusação de assassinato. Um ladrão realmente entrou no apartamento e roubou um objeto valioso.

— Roubou o quê?

— Um pendrive que não deveria estar com o Fábio. Sinto muito, mas o seu filho vai responder a outra acusação, por espionagem industrial. Um crime menor que lhe permite responder em liberdade.

— E a mamãe? — perguntou o menorzinho. — Mamãe volta com papai?

— Virgem Maria, ele voltou a falar! Orlando, o Nininho voltou a falar!

Orlando, pálido, surgiu no batente da porta.

— Pegaram o assassino?

— O pessoal de Brasília vai dar voz de prisão agora. É claro, nós viemos buscar o senhor para depor e lhe oferecer proteção policial.

— Estou frito, mulher. Aquele arranjo com o senador Campos já era.

— O dinheiro não vai entrar? Meu apartamento na Vieira Souto não vai sair, então? Nem a  viagem para a Escandinávia que você me prometeu?

— Mulher, deve ter um pistoleiro pior que Chapéu de Couro atrás de mim e você vem me falar de viagem?

Bernardo e Antunes se entreolharam. Antunes abaixou-se e sorriu para o garotinho:

— Vai ser bom ver o papai de novo, não é, garoto?

Os dois meninos se aproximaram e começaram as perguntas: Papai e mamãe estão com vocês? Vão chegar hoje? Vai demorar? Você falou com minha mãe?

Antunes tentava responder sem mentir. Bernardo levantou e suspirou fundo antes de ordenar:

— Cinco minutos, Orlando. Troque de roupa e me acompanhe. Vamos deixar uma viatura aí na porta por garantia.

— Estou cansada de ser vigiada — protestou Débora.

— Desta vez, senhora, é proteção e não vigilância. O senador Campos pode reagir com violência.

— Meninos, vovô já volta — disse Orlando. — Vai ficar tudo bem…

Os três homens afastaram-se calados.

Quando Bernardo deu a partida, Orlando falou:

— Foi mesmo muito azar a Melissa ter se colocado no caminho do senador Campos, aquele monstro.

Na mesma hora, saindo da prisão, Anita dizia, em uma entrevista à imprensa:

— Meu marido é inocente de assassinato. Ele mentiu e roubou, mas, afinal, quem é que não rouba e não mente?

 

12

Quando o júri popular foi cancelado e o caso passou a correr sob “segredo de justiça” a população enlouqueceu. Nem poderia ser diferente. Afinal, um senador estava diretamente envolvido e o caso respingava na própria pessoa do presidente.

Quase um ano depois a sentença foi proferida, o culpado condenado, o escândalo do Jazidas de Xisto correu o mundo e toda a família Justo discretamente “desapareceu”.

Bernardo e Antunes foram surpreendidos pelo convite para almoçar na casa do professor Ernesto. Mais surpresos ficaram ao chegar por não encontrarem nenhum empregado na mansão.

— Ao redor da casa há policiais à paisana, rapazes; vocês estão protegidos.

— Sinto-me muito desconfortável com a informação — desabafou Antunes.

— Vocês dois me colocaram dentro deste caso. Um caso, aliás, que eu estava perseguindo há meses.

— Seria impossível o senhor estar ocupado com o caso da menina Justo há meses.

— O caso da Companhia Tamoio de Petróleo.

— Por que nos chamou agora? Há um segredo de justiça a ser preservado.

— Rapazes, vocês começaram isso e vocês vão terminar. A família Justo vai mudar de nome, evidentemente, e recomeçar em outro lugar. Vocês foram indicados por mim para acompanhar, alojar e completar os arranjos necessários.

— Serviço brasileiro de proteção à testemunha.

— Exato.

Ernesto explicou aos dois policiais os trâmites das mudanças.

— Bem, não vou chatear vocês com a lista de detalhes sórdidos da sucessão de escândalos que assola nosso país. A lista dos corruptos é conhecida.

— O que quer nos contar, afinal, Ernesto?

— Lembram-se daquele roubo estranho, em que um carro foi roubado, e nele estava o computador do engenheiro-chefe do Projeto Jazidas de Xisto, com todas as informações sigilosas gravadas?

— Como não? Caso difícil de engolir.

— Eu fui procurado uns dias antes pelo engenheiro. Vamos chamar o homem de César.

— Como é que é?

— O rapaz estranhou a pressão para que ele terminasse o tal projeto em casa.

— Esquisito.

— Projetos importantes não saem das firmas. As pessoas é que ficam em seus postos em horas extras. Qualquer informação confidencial é proibida de ser replicada, impressa, copiada em nuvem. Há toda uma criptografia de segurança envolvida.

— Quando a gente ouvia a notícia na mídia, soou como se o engenheiro houvesse roubado o projeto.

— É o que os diretores da Companhia Tamoio de Petróleo queriam que se pensasse. O engenheiro respondeu a processo, perdeu o cargo, mas salvou o sigilo por ter me procurado antes.

— Essa eu quero ouvir.

— César desconfiou. Percebeu que algo muito, muito errado acontecia. Então, antes de deixar sua sala, codificou o projeto inteiro de forma que só ele poderia ler aquilo. O camarada é matemático, especialista em algoritmos.

— Pelo que entendi, esses algoritmos ficaram no computador roubado. E o projeto original?

— O projeto original, copiado em um pendrive, um dia antes, todo criptografado, saiu da firma através de um amigo.

— E aí…?

— César retomou o pendrive do porta malas do amigo e me entregou. Era só uma questão de tempo para perceberem o que ele havia feito e viessem atrás das informações. Ofereceram suborno. Uma quantia astronômica pelas informações. César fingiu aceitar. A polícia estava organizada para pegar o corruptor em flagrante quando aconteceu o impensável. Um ladrão entrou na casa dele e roubou um outro pendrive. Claro que ele tinha outros pendrives em casa. Só não imaginávamos que um ladrão burro fosse roubar um pendrive fajuto. Nós aguardamos para ver o que aconteceria. Ficamos a acompanhar os corruptores, e protegendo o César, que estava apavorado.

— Quem era o ladrão?

— Primeiro o corruptor. Orlando.

— O ladrão eu já vou adivinhar: Fábio.

— Meu Deus! Pai contra filho.

— A polícia louca para puxar o tapete dessa corja toda e limpar o congresso…

— Aí morre Melissa.

— Bem, rapazes, achei que vocês mereciam conhecer um pouco desse lamaçal. Comemoremos, rapazes; graças a vocês temos um senador na cadeia.

— Que seja o primeiro de muitos! — responderam em coro.

Bernardo exclamou:

— Sabem o que eu gostaria? Que esse fosse um conto de fadas. Seria tão mais confortável se a culpada, afinal, fosse a madrasta.

Bernardo lembrou-se, então, da crônica de Veríssimo, e se perguntou se, detrás de cada uma dessas redes de segurança, existia um pai ou uma mãe secretamente desejosos de defenestrar o filho.

 



Sonia Regina Rocha Rodrigues
é escritora e médica, idealizou o jornal Um dedo de prosa e foi co-editora da revista literária Chapéu-de-sol, que circulou em Santos/SP de 1996 a 2001. É autora dos livros de contos Dias de Verão (1998), É suave a noite (2014) e Coisas de médicos, poetas, doidos e afins (2014).
Em 1996, participou da fase regional do Mapa Cultural Paulista com o conto A auditoria, representando a cidade de Bebedouro. Sua monografia A importância da cultura para a formação do cidadão foi utilizada pelo prova do ENEM em 2011.
http://soniareginarocharodrigues.blogspot.com.br/