[Coluna] A Terra Média de Tolkien

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O público dos dias de hoje já se acostumou perfeitamente com a moda que vem se alastrando dos “universos compartilhados”. Várias histórias diferentes, de obras diferentes, interligadas por elementos de um mesmo universo, unindo tudo. Os estúdios Marvel vêm fazendo isto nos cinemas com sucesso e arrecadando milhões nas salas mundo afora e logo surgem os universos DC/WARNER, Ghostbusters, Monstros da Universal, os Heróis da Fox, etc. Mas nenhum teve e dificilmente terá a maestria e a complexidade do universo criado por Tolkien durante toda a vida e concretizado em 1937 com a publicação de O Hobbit, o pontapé para tudo isso.

December 1956: British writer J R R Tolkien (1892 - 1973), enjoying a pipe in his study at Merton College, Oxford, where he is a Fellow. Original Publication: Picture Post - 8464 - Professor J R R Tolkien - unpub. (Photo by Haywood Magee/Picture Post/Getty Images)

Finlandês, sueco, dinamarquês, grego antigo, latim, italiano, galês, francês, inglês, alemão, anglo-saxão, espanhol, islandês antigo, neerlandês. Essas são todas as línguas que Tolkien dominava, além das que ele próprio criou. (Com destaque para o Finlandês, do qual tirou várias influências, inclusive culturais. Gandalf, um personagem recorrente da mitologia tolkieniana, é claramente inspirado na lenda finlandesa “Väinämöinen”). Com toda essa bagagem, é claro que um autor não ficaria satisfeito em criar um universo medíocre. Primeiro Tolkien criava as línguas, depois as raças baseadas nas fonéticas e estruturas da escrita, e só depois de todas as etapas, o personagem era criado.

O nível de complexidade com que Tolkien trabalhava é impressionante até os dias de hoje. Criou idiomas como o Quenya e o Sindarin, alfabetos como Tengwar e os Angerthas, todos flexíveis a região, costumes, porte físico, origem, cultura. Os anões são ferreiros e possuem uma língua mais rústica, os Elfos são belos e sábios, vivem em belas moradas, portanto tem uma língua mais suave, uma escrita mais graciosa. E o mais importante de tudo é que Tolkien conseguiu criar uma união, e não se limitou a inventar palavras à vontade, o que acabaria numa desconexão entre as línguas, o autor segue regras pré-estabelecidas por ele próprio. Perceba como ele utiliza os radicais e seus derivados para criar nomes: gûl significa bruxaria, portanto Dol Guldur, Minas Morgul, são lugares onde esta “magia negra” seria praticada. E gûl é derivado do radical ngol-, por isso Cirith Ungol (Cirith significa “fenda”), o lar da Laracna, outro lugar maligno do Universo Tolkien. Sil significa brilho, luz. Portanto, esse radical será utilizado naquilo que é a “luz” de seu povo. Isildur (quando não foi dominado pelo anel), a espada Narsil, as Silmarils.

E a complexidade não para nas línguas e raças, depois disso tudo Tolkien pensou na geografia, na mitologia, no passado, futuro e presente da Terra-média (continente onde é passado grande parte das histórias) e Arda (mundo).

Tudo está tão interligado, que até mesmo os mínimos detalhes têm backgrounds importantes para a composição deste universo tão fantástico. A passagem abaixo, de O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei, exemplifica este aspecto perfeitamente.

“… Finalmente chegaram à Colina de Erech. Por muito tempo, o terror dos Mortos pairara sobre aquela colina e sobre os campos vazios ao redor dela. Pois no topo erguia-se uma pedra negra, redonda como um grande globo…” “… Tinha uma aparência sobrenatural, como se tivesse caído do céu, como acreditavam alguns; mas aqueles que ainda recordavam a tradição do Ponente contavam que ela fora trazida da ruína de Númenor e colocada ali por Isildur em sua chegada. Ninguém do povo do vale ousava se aproximar dela…”.

Esta é a maior prova da complexidade e perfeição do universo Tolkien, alguns outros escritores de fantasia iriam ignorar estes pequenos detalhes e se deter apenas ao grandioso, a algo mais visível, e se esquecem de que a riqueza vem das minúcias.

Claro que não é uma obra perfeita. O defeito mais óbvio seria a forma de falar da maioria das personagens. É extremamente pomposa e em certos momentos beira o artificial, além de se estender desde um hobbit a um Grande Rei. Alguns apontam os livros como cansativos, dotados de uma narrativa lenta e pesada, mas eu hei de discordar. O arco narrativo de Tolkien é progressivo, e semelhante à clássica Jornada do Herói, é um acumulado de tensão e exaustão por parte dos personagens, que se veem presos geralmente num caminho sem volta (referindo-se a suas obras máximas: O Hobbit e O Senhor dos Anéis), mas que no final se sentem livres do fardo pesado que carregaram durante todo tempo. O famoso “Lá e de Volta Outra Vez”.

Outro argumento frequentemente utilizado por aqueles que ainda insistem em criticar Tolkien negativamente é o excesso de descrições. Mas seria realmente um excesso? Ou todas elas estariam a favor da construção do universo tão complexo criado pelo autor? Segue uma passagem de O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel para exemplificar:

“… Mas depois de uns momentos o ar ficou quente e abafado. As árvores começaram a se aproximar dos dois lados da trilha, e não se conseguia enxergar muito à frente. Agora sentiam novamente, e mais forte que nunca, a má disposição da Floresta exercendo pressão sobre eles. O silêncio era tão grande que o ruído dos cascos dos pôneis, farfalhando nas folhas mortas e ocasionalmente tropeçando em raízes escondidas, parecia um estrondo aos ouvidos. Frodo tentou cantar alguma coisa para encorajá-los, mas sua voz não passava de um murmúrio…”.

A passagem acima está situada no capítulo onde os hobbits pegam um atalho pela Floresta Velha. Com este trecho, fica bem claro que Tolkien não quer apenas descrever minuciosamente os ambientes, a intenção é dar vida a uma Terra mágica, capaz de exercer influência sobre os personagens da trama, de ser sentida pelas palavras. O leitor é capturado e sugado pelas descrições de Tolkien, dotadas de uma capacidade de imersão dificilmente vista.

Além de que, a Terra-Média é um continente extremamente rico e diversificado e Tolkien estabelece muito bem as várias realidades ali presentes, tanto em termos geográficos (contando com a ajuda dos belíssimos mapas), como mitológicos, culturais, linguísticos, e porque não, filosóficos. E é incrível como essas realidades se adaptam a forma de narrativa adotada pelo autor. O Silmarillion possui uma estrutura mais mítica, enquanto O Hobbit tem um clima infantil e O Senhor dos Anéis é um puro épico. Essa pluralidade também é refletida em suas descrições, perceba a diferença de tom a seguir. As duas passagens narram pântanos sobre diferentes visões. A primeira retirada do livro O Hobbit e a segunda de O Senhor dos Anéis – As Duas Torres.

“Havia pântanos, alguns deles verdes e agradáveis de olhar, com flores altas e coloridas, mas um pônei que entrasse ali com uma carga no lombo jamais conseguiria sair de novo”.

“O lugar era monótono e cansativo. O inverno frio e úmido ainda dominava aquela região abandonada. A única coisa verde que se via era a escória de ervas esbranquiçadas sobre as superfícies escuras e oleosas das águas sombrias. Capim morto e juncos apodrecidos assomavam por entre a névoa como sombras esfarrapadas de verões há muito esquecidos”.

O mais interessante é que todas essas obras são capazes de flertar com o leitor e fazer com que ele se identifique com as situações demonstradas. Não só de técnica escreve Tolkien, ele também é capaz de passar muita emoção ao retratar a traição de Melkor, a saudade que Bilbo sente de casa e principalmente a amizade entre Frodo e Sam. E apesar de o autor detestar alegorias, sua obra tem bastante aplicabilidade no dia-a-dia, tornando-a ainda mais tocante e apaixonante.

Tolkien conquistou milhões de leitores ao redor do planeta por despertar a experiência que mais se procura ao ler um livro: Ser transportado para outro mundo. As obras do autor, até mesmo as póstumas, deixam sua marca na literatura mundial, um puro e encantador retrato do que foi, é, e provavelmente para sempre será a maior personagem fantástica de todos os tempos: A Terra-Média.