[Coluna] Sobre Virginia Woolf, Mrs. Dalloway e envelhecer

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Hoje comemoraríamos o aniversário de Virginia Woolf. Para quem não sabe, Woolf é um dos grandes nomes da literatura modernista internacional o que – acreditem – é uma vitória. Se não há muito espaço para as mulheres no mercado editorial atualmente, vocês podem imaginar como foi à época de Woolf – o período entre 1882, seu nascimento, e 1941, sua morte. Meu primeiro contato com a literatura de Virginia Woolf, aliás, foi o ensaio Um teto todo seu, em que ela afirma, entre outras coisas, que “uma mulher precisa de dinheiro e de um teto todo seu se quiser escrever ficção”. Isso era verdade em 1929, época em que publicou o livro, e ainda o é.

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Virgínia Woolf, um dos ícones do Modernismo

Mas é sobre outro importante livro de Virginia Woolf que quero falar hoje, um que define bem o estilo da autora: Mrs. Dalloway. O livro, publicado em 1925, teve – de acordo com a própria autora – uma recepção morna, além de ter recebido inúmeras críticas. Em Mrs. Dalloway, Woolf quebra os conceitos de discurso direto e indireto e nos lança do que chamamos de fluxo de consciência. A narrativa é construída sobre os pensamentos dos personagens, tendo como ponto de partida um dia comum na vida de Clarissa Dalloway, uma socialite de meia-idade que está cuidando dos preparativos para a festa que daria dali a algumas horas.

Aqui há um ponto importante a esclarecer: ler Mrs. Dalloway não foi uma tarefa simples. Pelo contrário, eu me peguei desligando o Kobo diversas vezes, cansada, pensando seriamente em desistir da leitura. Virginia Woolf lança na narrativa os pensamentos dos personagens indiscriminadamente. Pulamos de Clarissa Dalloway para Peter Walsh para Septimus Warren Smith para algum-personagem-secundário-aleatório e de volta para Clarissa. Então tudo recomeça com outros personagens. Passado e presente se misturam e é preciso uma dose extra de atenção para saber na cabeça de quem estamos naquele momento. É antes um livro de reflexões a uma história como a entendemos – com início, meio e fim. Mas essa coexistência de focos narrativos, antes de me levar à total desistência, despertou meu cansado interesse. Porque, meus caros, Mrs. Dalloway é uma história sobre envelhecer.

A técnica de "fluxo de consciência" tornou essa uma das leituras mais densas que fiz
A técnica de “fluxo de consciência” tornou essa uma das leituras mais densas que fiz.

Do período em que sai de casa para comprar flores para a festa até o final da festa em si, vemos Clarissa – e as demais personas da história – relembrando o passado, os dias em que eram jovens e tinham ideais tão diferentes dos que tem agora. Clarissa, em especial, reflete muito sobre a passagem do tempo e, embora reconheça que está velha – talvez mais do que deveria, pois passou por um período de doença (sobre o qual não saberemos muito) – afirma que gosta de viver. Clarissa ama a vida. E se debate com outras questões – as escolhas que fez, as pessoas que fizeram parte de sua história, o resultado de suas ações… Com Mrs. Dalloway fui vítima das mesmas reflexões – quem eu seria dentro de trinta, quarenta anos? Eu iria me orgulhar das coisas que fiz? Quem seriam as pessoas que continuariam ao meu lado e o que teria acontecido com as que não fossem nada além de passado?

Mrs. Dalloway também nos dá valiosas informações sobre o papel da mulher numa Londres entre-guerras: os deveres sociais e a diminuição do intelecto feminino recebendo maior destaque. Um dos arcos narrativos – se é que posso usar esse termo quando falamos de fluxo de consciência – que mais me impressionou foi o de Lady Bruton – uma velha senhora, altiva e respeitadíssima. Sabemos, acompanhando os outros personagens, que Lady Bruton é uma mulher de fibra, prática, objetiva. Que eles a seguiriam sem a menor sombra de indecisão se Lady Bruton por acaso fosse uma generala a comandar legiões. No entanto, ela própria afirma não possuir a capacidade lógica dos homens – uma afirmação, em maior ou menor grau, repetida pelas demais mulheres que surgem ao longo da história.

Virginia Woolf nos mostra com suas mulheres como o poder do patriarcado conseguia vergar suas vontades, transformando-as em meros reflexos dos gostos e desejos de seus maridos. Em muitos pontos da narrativa vemos dedicadas esposas experimentarem, nem que por um segundo ou dois, uma estranha sensação de invisibilidade, de não pertencimento. Lucrezia Warren Smith, em determinado ponto, afirma que os homens são capazes de viver felizes sem as mulheres, o que não acontece no caso delas. Preciso confessar, aliás: a história de Lucrezia foi a que mais me angustiou. Outra personagem que se perde no limbo do matrinônio é Sally Seton. Quando jovem, Sally foi conhecida por sua personalidade indisciplinada e livre. É com Sally que Clarissa afirma ter vivido o momento mais feliz de sua vida – um beijo roubado. No final do livro somos apresentados a uma Sally satisfeita com a tranquila vida interiorana do marido, feliz com os cinco filhos que teve.

Estamos diante de uma obra que pede cuidado: ela levanta reflexões sérias, mas não esperem compreendê-las de imediato. Concluí a leitura com a sensação – deliciosa e amarga – de que não havia captado tudo que deveria. Mrs. Dalloway pede uma segunda leitura. Uma terceira e quarta, se necessário. Não por acaso é uma das peças mais importantes do Modernismo. Se, por acaso, decidir embarcar na aventura que é ler Mrs. Dalloway, lembre que não encontrará pelo caminho dragões ou misteriosos assassinatos: apenas a vida como ela é, cheia de nuances, de “poréns”. Na próxima esquina, o que nos aguarda não é uma criatura mística, mas mais um ano de vida somando-se a todos os outros, com suas histórias, conquistas e tristezas. Mrs. Dalloway nos lembra que envelhecer não é apenas uma consequência – é uma arte.

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