Philip K. Dick é um dos maiores escritores da literatura de ficção científica. E não é justo com ele que se abra uma disputa acerca de quem é seu maior concorrente no gênero, Asimov, Arthur C. Clarke, etc. Na verdade, o que interessa mesmo é o teor filosófico e a universalidade política de sua literatura, ou melhor, de sua filosofia. Os outros melindres, de fato, são coisas de fanboys reducionistas.

É verdade que Dick é bem conhecido dos cinéfilos, muito pelos blockbusters adaptados desde a década de oitenta até aqui. Blade Runner, O Impostor, O Vingador do Futuro (com Remake, inclusive), O Homem Duplo, O Pagamento e Minority Report. E é claro que algumas dessas adaptações transparecem uma grande desconexão com o problema que me parece ser central na obra de Dick: O que é o homem e o que ele faz nesse mundo?
Muito se diz sobre o fato de que a literatura de Dick foi feita a reboque (de viagens de ácido), mas será que isso desmerece mesmo esse autor visionário? Embora escritores como Aldous Huxley tenham aberto o debate acerca da abertura das portas da percepção, nenhum leitor ávido de Dick seria ingênuo a ponto de descartar a influência de uma cultura mística e até religiosa no seu pensamento político sobre a realidade, haja vista obras etéreas como Valis e Fluam minhas lágrimas, disse o policial. Mas se queremos falar de política, vale, antes de tudo, lembrar aquela máxima de Stendhal em A Cartuxa de Parma: “A política numa obra literária é como um tiro em meio a um concerto; o efeito é estridente e vulgar, e, ainda assim, algo de que não é possível desviar a atenção”.
Ora, mas é justamente essa a posição de Dick. Não importa o quanto você tente jogá-lo na Sibéria da alucinação sem propósito, há ali uma busca incansável pela verdade, que se reflete sim em sentido vertical no seu flerte com a religião, mas que deságua em sentido horizontal, neste mundo, com a política. Assim, se em Blade Runner e O Homem Duplo (tanto o livro quanto o filme) o autor coloca em primeiro plano, ou o futurismo ou o delírio psicotrópico, em contos como As Pré-Pessoas, o tema, sem deixar de ser imaginativo e cheio de gracejos, é ainda mais profundo e sério. Trata-se aqui do estatuto do nascimento e do direito à vida. O aborto é algo bom, legal ou necessário? É uma brincadeira, de crianças e com crianças?

É aí que podemos abrir um belo parêntese filosófico. Após a Segunda Guerra Mundial, a filósofa judia Hannah Arendt documentou magistralmente o julgamento do nazista Adolf Eichmann, responsável pela logística de extermínio de milhões de pessoas. Segundo o oficial do Reich alemão, não houve em nenhum momento intenção de matar. Em outras palavras, Eichmann dizia que não sabia o que estava fazendo, e que apenas cumpria ordens dadas pelo Führer Hitler. E é nesse sentido que Arendt criou o conceito de Banalidade do Mal, ideia que expressa categoricamente essa suposta desafetação alegada pelo nazista assassino, ausente de compaixão e repleta de esvaziamento moral.
Por isso, voltemos nossos olhos novamente para Dick. No conto As Pré-Pessoas, é esse esvaziamento moral que aparece. Lá, personagens se empenham a gerar um filho apenas para abortá-lo, banalmente, por diversão. Só que não se trata somente desse aborto que conhecemos, como quando um filho é eliminado do útero. Mais do que isso, o aborto no conto de Dick é precisamente social, antropológico. Na noveleta, para que um homem seja considerado como tal, é preciso que ele aprenda desperte para a matemática e a geometria até os 12 anos de idade, caso contrário, não se poderá comprovar a existência de sua alma.

Aliás, se queremos falar em nazismos, violências e minimização da condição humana, não se pode deixar de apontar para outro grande livro de Dick: O Homem Do Castelo Alto. Nessa obra, que agora ganha uma adaptação como série de TV, os EUA perdem a Segunda Guerra Mundial, colocando o mundo num panorama de polarização política entre Alemanha e Japão. Na história, enquanto judeus são jogados em campos de concentração de uma América do Reich, personagens se deleitam com a leitura de uma ficção dentro da ficção: Enquanto acompanha um romance chamado O Gafanhoto se levanta, que conta a história de um mundo em que a Alemanha perdeu a guerra, a protagonista descobre que a trama foi escrita totalmente a partir da consulta do I-Ching, o oráculo chinês que revela que a história contada no gafanhoto é real.
Nessa perspectiva, alguns, obviamente, dirão que Dick cria simulacros e joguetes com a realidade, que uma ficção sobre distopias nazistas e hitlerológicas já cansaram, que refletem apenas o outro lado do espelho de Alice, limbo, ou de uma atrocidade maior, ou do melhor dos mundos possíveis já criados por Deus, como diria o filósofo alemão Leibniz.
Já eu, prefiro pensar que esse espelho ainda deixa passar radiações tão invasivas – embora mais invisíveis – quanto as bombas de Hiroshima e Nagasaki. No meio desses ataques reais, a política desta Terra ainda tenta criar e impor diversas fornalhas com conceitos do que deve ser, irremediavelmente, um homem. E no fim, um alento aos que se aparentam dos mortos: Tudo será brincadeira, fábrica de biscoitos queimados sem maldade, inocentemente.

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