[Coluna] A Liberdade das Fanfics

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Acho que meu repertório de textos lidos é composto de proporções iguais de textos editoriais e escritos amadores. Fanfics eram de graça e acessíveis antes mesmo da palavra e-book ser cunhada. Em uma época longínqua em que cada livro de Harry Potter levava dois anos para sair, o marcado de literatura de jovens adultos e fantasia era inexistente e a variedade de conteúdo disponível era infinitamente menor. Éramos dependentes do que o mainstream queria passar, do que o molde de “gênero” e “faixa etária” permitia, esperávamos três temporadas pelo beijo do casal principal, cem episódios para que os plots de núcleos diferentes se cruzassem, quatro livros para que o vilão e o herói estivessem frente a frente pela primeira vez.

Dessa época ganhei um hábito que jamais abandonei: assim que termino de consumir alguma mídia passo no Tumblr ou no Archive of Our Own para ver o que está sendo escrito dentro do universo. Se no produto impresso estamos regrados pelos editores e moldes do gênero, na internet as coisas acontecem. Quando um fã chega diante de um plot com sua caneta vermelha, as regras desaparecem. Não há mais preto e branco, estrutura e gênero. O vilão durão e frio é puxado para um plot de romance, a coadjuvante promissora tem sua chance de ser personagem principal, o passado grotesco do herói (que é apenas mencionado em cinco minutos de diálogo no cânone) volta para atrapalhar seus planos forçando-o a lidar com os temas sombrios que não condiziam com a idade do público alvo da série original.

Minha parte favorita é prestar atenção no recorte que o autor está escolhendo, sob qual ponto de vista ele se debruça sobre o mesmo trabalho no qual eu me debruço. Quem vai focar na atmosfera e na trama de mistério, quem vai focar na relação entre os personagens. Quem escreveu uma história curta, decidiu abordar o que? E quem escreve 47 capítulos de cinco mil palavras? Que parte daquele universo inspirou alguém a destrinchar os personagens e a trama de terceiros por tantas páginas?  É um exercício de pluralidades, de ver quem enxerga o romance no mistério sombrio, ou o thriller na relação superficial de dois personagens do enredo secundário de comédia.

Quem se importa se a produtora não quer que o casal principal fique junto? Quem se importa se o autor decidiu abandonar tal personagem e escolher outro? Bem, alguém se importou o suficiente para escrever um caminho alternativo. É um ponto de entrada para temas que o mainstream se acovarda de abordar. Onde o personagem pode ser o bizarro, o incomum e o desviado sem ser encaixado num estereótipo. Se no mainstream protagonistas mulheres, gays ou negros são minoria, no universo das fanfics eles estão por todos os lados.

Meus hábitos literários devem muito à literatura amadora. Creio que as fanfics me ensinaram a querer mais daquilo que consumo. A querer que haja, pois sim, uma discussão legal sobre romance e sexualidade, que haja um pouco de zonas cinzentas na história de bem contra o mal, que vencer o vilão tenha um gostinho de incerteza e amargura. Que o herói seja corrompível (em todos os sentidos 😉 ), que o vilão seja simpático onde não esperávamos que ele fosse e que os coadjuvantes tenham seus momentos para brilhar.