[Coluna] Pontos de vista e os narradores de Athelgard

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O texto de hoje vem num momento atribulado da minha vida profissional. Estou envolvida com vários eventos, promovendo meu livro, que será lançado na Bienal de setembro (1) e num ponto crucial do processo de escrita do próximo, que fechará a trilogia Anna-Kieran de Athelgard (mas isso não quer dizer que eles não vão reaparecer em outros contos e livros… hehehe). Então, lembrei-me de conversar com vocês sobre a questão dos pontos de vista, que acabou assumindo uma importância muito grande nos livros dessa série.

11924722_10204886639273627_2049034899_nPara quem não sabe, O Castelo das Águias é escrito em primeira pessoa, e a narradora é Anna de Bryke, uma pouco-mais-que-adolescente otimista, generosa e (até então) meio ingênua que vai para um lugar diferente e se apaixona por um homem mais velho. Já no segundo livro, A Ilha dos Ossos, também em primeira11944865_10204886638993620_2134663294_n pessoa, o ponto de vista é justamente desse cara, o mago Kieran de Scyllix – e, na época, eu fiquei meio receosa de fazer os dois soarem do mesmo jeito, apesar das diferenças de gênero, idade, experiência e temperamento.

Dizendo assim, parece fácil evitar que isso aconteça, mas eu garanto: na hora de escrever nem sempre é. Claro que dá para seguir o tempo todo falando em primeira pessoa, mas mesmo assim se pode cair em várias armadilhas. Por exemplo, conferir onisciência ao narrador em primeira pessoa (2), transferir o ponto de vista de um para outro de forma inábil e, a que é de longe a mais comum, fazer todos os personagens falarem (e escreverem) do mesmo jeito. Isso acontece com frequência, tanto na primeira pessoa como na terceira, embora existam diferenças na forma como cada escritor conduz as coisas.

Um exemplo de alternância de pontos de vista em terceira pessoa que considero bem-sucedido é o de George R. R. Martin. O estilo do autor não varia muito de capítulo para capítulo: ele está de fora, fala sempre com a mesma voz, usa o mesmo vocabulário, o mesmo tipo de construção de frase… No entanto, ao escrever sob o ponto de vista de Bran, por exemplo, ele não apenas se coloca na situação do menino, mas faz observações sobre coisas nas quais só11939147_10204886639713638_1780177244_o uma criança iria reparar. As “pequenas vinganças” de Bran contra os dois jovens primos Frey que estão em Winterfell, por exemplo – a quem ele “presenteia” com partes não muito apetitosas da refeição, por se sentir excluído das brincadeiras – são coisas típicas de criança. Por outro lado, a visão de duas pessoas diferentes na mesma situação (Sam Tarly e Jon Snow, digamos), pode fornecer diferentes abordagens e desdobramentos para um mesmo cenário ou acontecimento; um personagem pode, inclusive, ajudar o leitor a compreender as atitudes do outro ou fazê-lo saber como se sentem os demais envolvidos.

Em primeira pessoa, os desafios são outros, assim como os resultados. Primeiro, existe a armadilha da onisciência, de que já falei. Uma coisa é o narrador-personagem deduzir algo a partir do que outra pessoa disse ou fez, e outra, bem diferente, é ele entrar na mente de alguém e ter certeza de suas intenções ou sentimentos. Além disso, muitos textos falham em estabelecer diferenças entre a voz do narrador e a de outros personagens que se manifestam por discurso direto. As coisas se complicam ainda mais nos textos em que há vários narradores, cada qual apresentando sua versão dos fatos ou “continuando” a história de onde o outro parou. A situação mais flagrante são os romances epistolares, ou aqueles em que aparecem cartas e diários: não é possível que uma senhora que passa os dias bordando no bastidor escreva do mesmo jeito que um jovem soldado no front, mas há livros em que isso acontece (3).

ligações-perigosas

No caso dos meus livros, o desafio foi estabelecer as diferenças não apenas de discurso, de estilo de escrita, mas de posicionamento diante da vida e das outras pessoas Anna é jovem, gregária (vive em grupo), cresceu entre pessoas amorosas e tem o ofício de contar histórias, de forma que Vrindavahn, a cidade onde fica o Castelo das Águias, transforma-se, tão logo ela a vê, em um cenário provável para sua aventura pessoal:

Vista de cima, Vrindavahn tinha um aspecto acolhedor. As construções imponentes, ornadas de colunas, que davam tanta fama às cidades grandes não faziam a menor falta naquelas ruas estreitas, calçadas por seixos redondos, onde se alinhavam as casinhas de madeira e tijolos. Os únicos prédios de pedra eram o do Conselho Municipal e o templo, dedicado ao Deus Único e aos Heróis cultuados pelos homens. Eles tinham fundado a cidade – a arquitetura deixava isso bem claro – e ainda estavam em maioria, mas muitos tinham sangue élfico. Famílias mistas eram comuns nas Terras Férteis, principalmente após o último tratado, que reunira toda a região numa só Liga de defesa e ajuda mútua. (Anna, em O Castelo das Águias)

No segundo livro da série, a intenção não foi recontar a história já conhecida através de Anna, mas, ao lhe dar prosseguimento, fazê-lo sob o ponto de vista de um mago, um homem maduro, que fez coisas terríveis no passado e que olha para um lugar desconhecido como um militar pensando na melhor forma de conquistar o território.

Se eu precisasse escrever um relato sobre a Ilha dos Ossos, não gastaria mais que cinco linhas. Todo o centro era ocupado por um maciço pedregoso, e à volta havia pequenas praias, a maioria no lado oposto àquele que se voltava para a Ilha Albatroz. Os piratas se concentravam nas duas praias desse trecho, que eram muito próximas, porém separadas pelo rochedo do forte. A maior tinha o atracadouro de osso e os depósitos onde estocavam suprimentos; na outra, eu soube mais tarde, ficavam os prisioneiros, amontoados em duas cabanas onde eu não alojaria um cão. (Kieran, em “A Ilha dos Ossos”).

Não sei se esse pequeno trecho dá a ideia de como eles são diferentes, em vários sentidos. Mas posso garantir que quem ler o segundo livro encontrará um estilo narrativo diferente do primeiro, que condiz com o personagem e até com a própria história: não mais um romance de formação/aventura romântica com mensagem ecológica, mas uma quest com direito a monstros e batalhas. Minha leitora crítica e, depois disso, outros leitores afirmaram que fui bem-sucedida, o que me deixou otimista para fazer… bem, uma coisa que eu estou torcendo para que funcione.

A Ilha dos Ossos

Isso porque, no terceiro livro, eu inventei de fazer Anna e Kieran se alternarem, sempre em primeira pessoa, introduzindo ainda outros narradores em pequenos capítulos. A ideia desses outros (que variam desde aprendizes e amigos do casal até o vilão da história e um ser sobrenatural) é fornecer explicações, informações ou mesmo um ponto de vista que questione a validade das atitudes tomadas por Anna e Kieran, ou o julgamento que eles fazem das situações. Um deles, por exemplo, tem a missão de fazer o leitor ficar com raiva de Kieran, supostamente um dos heróis da história, porque eles estão de lados diferentes da guerra… e o que é o herói aos olhos do antagonista? Isso mesmo, ele se torna um vilão, e nesse caso com potencial para ser bem terrível.

Assim, achar as vozes de todas essas pessoas e apresentá-las ao leitor de forma a atingir o objetivo de cada uma está sendo um desafio para mim. E, além disso, um ótimo exercício de escrita – uma possibilidade de, mesmo dentro de um universo já conhecido, sair da minha zona de conforto e alçar novos voos no horizonte literário.


  1. O livro que está chegando agora. http://editoradraco.com/2015/08/10/anna-e-a-trilha-secreta-ana-lucia-merege/
  2. Este texto fornece explicações resumidas sobre vários tipos de narrador. Vale a pena conferir. https://universitariaemcena.wordpress.com/tag/narrador/
  3. Em contrapartida, um livro como “As Ligações Perigosas”, também epistolar, mostra pessoas diferentes escrevendo de forma elaborada, cheia de de intencionalidade, num jogo de intrigas e sedução. Não seria a escrita natural, intimista, de pessoas escrevendo cartas e diários… e ainda assim se mostra incrivelmente eficaz ao revelar as personalidades de Valmont e da Marquesa de Merteuil. http://literatura.uol.com.br/literatura/figuras-linguagem/23/artigo134390-1.asp