[Coluna] Alice no País das Maravilhas e dos Jogos

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Qual a relação que um grande matemático da Era Vitoriana tem com a Literatura Nonsense inglesa? Nenhuma. Exceto quando estamos falando de Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido como Lewis Carroll, criador de uma das obras infantis mais importantes, que em julho de 2015 completou 150 anos de publicação. Com vários prêmios e adaptações para outras mídias, incluindo a famosa animação da Disney e atualmente também nos vídeo games, Alice no País das Maravilhas é a obra prima da vez.

 

Alice e Alice

alice 2Charles Lutwidge nasceu em 1832, era matemático, escritor, desenhista, fotógrafo e reverendo anglicano. Mas vamos usar seu nome mais famoso: Lewis Carroll. O pai de Lewis queria que ele seguisse uma vida religiosa, mas este logo ingressou na Universidade de Oxford e mostrou um talento muito promissor para matemática, o que lhe rendeu o posto de professor na Instituição. Seus gostos sempre foram adversos, gostava de mágica e ilusionismo quando criança, enquanto adulto seu hobbie preferido era a fotografia, uma nova tecnologia para época. Também gostava muito de crianças e foi com uma delas que tudo começou.

Em um barco no rio Tâmisa, acompanhado de um amigo e das três filhas de Henry Liddell, Lewis improvisa um conto para as meninas e escolhendo a sua preferida como inspiração, Alice Pleasance Liddell, ele cria a primeira versão do que se tornaria sua obra mais famosa. Alice ficou encantada e pediu que ele escrevesse toda a história para poder guardar e Lewis Carroll começou a trabalhar no manuscrito no dia seguinte.

Em novembro de 1864, Alice Pleasance recebeu o manuscrito de Alice’s Adventures Under Ground com ilustrações do próprio autor, que com planos mais ambiciosos, decidiu que publicaria sua obra. Em 1865, a versão final da história, agora chamada de Alice’s Adventures in Wonderland, foi lançada, dessa vez com ilustrações de John Tenniel, o livro teve a adição das cenas com o Gato de Cheshire e do Chapeleiro Louco, que somadas com outras mudanças elevaram o número de palavras do livro de 15 mil para 27 mil. Foram acrescentadas na edição final alguns trocadilhos linguísticos, ligados principalmente ao francês e outras piadas matemáticas. A obra de Lewis foi sucesso imediato e vendeu mais de 180 mil exemplares durante a vida do autor, sendo traduzido para mais de 125 línguas, além de ter chegado nas mãos de Oscar Wilde e da Rainha Vitória.

O sucesso garantiu uma continuação intitulada Through the Lookng-Glass and What Alice Found There, traduzido no Brasil como Alice Através do Espelho. A trama fala do retorno de Alice ao País das Maravilhas, onde ela deve vencer vários desafios estruturados como uma partida de xadrez para se tornar a rainha deste mundo.

 

A Chata Inglaterra Vitoriana

alice 3O primeiro livro conta a história de uma menina da Era Vitoriana, cansada do cotidiano, que entra em uma toca de coelho e acaba caindo num mundo surreal e fantástico, povoado por animais e objetos antropomorfizados. Brincando com a lógica e produzindo fortes metáforas, o livro é considerado um dos melhores exemplos do que é a Literatura Nonsense, um gênero que trabalha com a subversão de termos e linguagem, criando estranhamento em seus símbolos exagerados e seu humor cínico que, muitas vezes, funcionam como paródias para assuntos como política e religião.

Antes de mais nada, o período Vitoriano, que se iniciou em 1837 com o nascimento de Vitória, é marcado por novos ideais que buscavam ditar um novo estilo de vida. A Literatura Vitoriana funcionava como nossas tevês, eram difundidas por toda a Inglaterra e exerciam papel fundamental na formação daquela sociedade. Foi um momento onde grandes nomes como Charles Dickens e William Thackeray ganharam fama enquanto os ingleses se esforçavam para alcançar um nível moral de excelência que garantiria uma vida feliz e fiel aos dogmas religiosos. A Literatura pedagógica teve grande participação na educação das crianças vitorianas, ensinadas a se portarem como adultas, sem brincadeiras e correrias, foram acostumadas com a decepção de uma rotina monótona. Uma autora proficiente nessa área foi Margaret Gatty que publicou uma série de livros chamados Parables from Nature, onde defendia a importância da ordem social, só alcançada pelo enraizamento de valores e submissão durante a infância.

Com este cenário de fundo estabelecido, a obra de Carroll funciona como uma crítica social desse período. Várias interpretações podem ser depreendidas do texto, como a função imagética do Coelho Branco que usa colete e não tira os olhos do relógio, sempre atrasado, uma alusão (travestida de sátira) do estilo de vida sério e taciturno dos ingleses. Mas é Alice que tem a principal função subversiva na obra, se pondo como criança irritadiça e enfadada com a sua vida parada, que num ato contrário a tudo que lhe foi transmitido, age irrefletidamente e entra no Buraco do Coelho para sair em um mundo fantástico que não respeita a lógica e funciona, a priori, através de magia. Esse mundo, logo, é tudo o que a Inglaterra do século XIX abominava.

Não obstante, uma das figuras mais marcantes na obra, a Rainha de Copas, representa de forma óbvia a Rainha Vitória, a principal imagem representativa dessa época, que ditava vários aspectos sociais como moda, costumes e primariamente a moral e ética. No livro, as ordens da Rainha de Copas, que nunca são seguidas, se resumem a – Cortem lhe a cabeça! – uma simulação clara da falta de poder que tem sua versão real. Esta sátira se torna muito mais visível quando tanto o personagem Grifo quanto o próprio narrador se referem à Rainha de Copas apenas como “Rainha”. Uma referência imediata à Vitória, que embora influente, nunca teve poder político sobre as decisões do Parlamento Inglês.

Como muitas outras obras proeminentes, Alice no País das Maravilhas consegue fazer dois papéis de forma eficiente, funcionando como uma peça infantil e de conteúdo muito carismático ou sendo interpretada como uma importante crítica social que através de metáforas e imagens consegue transmitir a insatisfação de um grupo sem voz e se tornar parte da história antropológica inglesa.

 

Alice de American McGee

alice 4O Designer de Jogos American James McGee é responsável pela adaptação da obra de Lewis Carroll para os vídeo games. Levando seu nome, American McGee’s Alice foi desenvolvido para Windows, sendo publicado em 2000 pela Eletronic Arts. O jogo usa uma versão modificada do motor gráfico de Quake III Arena, sendo mais tarde desenvolvida uma versão de PlayStation 2.

O jogo se estabelece alguns anos depois dos ocorridos de Alice Através do Espelho, com a protagonista, agora mais velha, vivenciado situações mais sombrias e macabras. Tudo começa com um incêndio que acomete sua casa, o fogo incontrolável destrói tudo e Alice presencia a morte de seus pais. Em estado de choque, ela tenta suicídio e é levada para o Hospício Rutledge onde permanece em observação. Sua mente não aguentou o ocorrido e começa a perder a noção da realidade até que em algum momento ela cai novamente no País das Maravilhas. Desta vez o mundo surreal se encontra distorcido pelo trauma de Alice e reflete sua mente destruída com um clima macabro e escuro. Seus personagens estão sob o domínio da Rainha de Copas e apenas Alice pode salvar aquele mundo, logo, apenas ela pode curar a própria loucura.

Em seu ano de lançamento, o jogo recebeu ótimas críticas que exaltaram o design e os gráficos bem trabalhados. O enredo bem definido e sem pontas soltas foi outra característica que chamou atenção. Com uma média crítica de 82 de 100, American McGee’s Alice vendeu mais de 1.6 milhões de cópias e uma sequência era esperada, mas ela demorou.

 

Alice: Madness Returns

alice 5Uma década depois, American James McGee retorna para a continuação direta da sua versão de Alice no País das Maravilhas, desenvolvido na famosa Unreal Engine 3. O jogo foi distribuído novamente pela Eletronic Arts e lançado para Windows, PlayStation 3 e Xbox 360 em julho de 2011.

Ao final do primeiro jogo, Alice consegue certo equilíbrio e sai do hospício para viver em um orfanato em Londres sob os cuidados do doutor Angus Bumby, um psiquiatra que trabalha com traumas infantis tentando aliviar memórias dolorosas. Embora acredite estar curada, Alice tem alucinações e o País das Maravilhas agora aparece também quando ela está acordada. Durante uma sessão com o doutor Angus, Alice começa a alucinar e encontra o Gato de Cheshire que lhe diz que uma força externa está atormentando aquele mundo e que ela precisa lhe ajudar. O enredo se desenvolve entre momentos em Londres e no País das Maravilhas, onde Alice deve fazer de tudo para encontrar o culpado do mal que atinge o lugar.

A crítica especializada recebeu o jogo com uma média de 75 de 100, sendo criticado por alguns bugs e conteúdo excessivo. No entanto, seus gráficos foram elogiados, o level design ganhou muito destaque e o enredo elaborado conseguiu superar a qualidade do primeiro jogo. Alice: Madness Returns foi incluído na lista dos 100 jogos mais procurados da geração passada e vendeu mais de 1 milhão de cópias, fazendo muitos acreditarem que o último jogo da trilogia possa sair em breve.

 

Saindo da Toca do Coelho

Com 150 anos de existência, esta obra quebrou barreiras e marcou a história, lhe garantindo um lugar eterno em nossa memória. Seja na cama com um livro ou nas horas de pegar no controle, o País das Maravilhas sempre pode ser visitado e relembrado, ressaltando o importante ensinamento de Lewis Carroll: não faça como o Coelho Branco, mas largue o seu relógio e por um momento, busque a diversão e esqueça dos problemas que os Vitorianos tanto davam importância.