[Conto] O Velho Marinheiro Louco

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Todas as tardes o velho marinheiro louco sentava-se na pedra em frente ao templo da cidade. Como era uma figura mais do que conhecida, ninguém mais parava para escutar seus devaneios sobre uma história distante, há muito esquecida.

Eis que um dia surge a caminho do templo um cortejo nupcial. Não um cortejo comum, de gente humilde, mas aquele cortejo de gente com muitas posses. Havia mais de 50 pajens somente para abrir caminho aos noivos com pétalas de flores e outras resinas aromáticas. Somente de padrinhos existiam quinze.

Olhando aquela cena inusitada e pouco usual, já que a cidade portuária não é das mais prósperas da região, o velho marinheiro vê a chance perfeita para “roubar” um expectador. Ele se ajeita para o bote, arqueia sua coluna já arqueada pelo tempo, abre suas mãos que, pelo uso constante e por anos a fio, parecem garras de alguma ave marítima. Assim, quando um jovem padrinho distraído e admirado por toda a pompa passa ao lado do velho, este o puxa tão rápido quanto um albatroz mergulha para pegar seu peixe. Assustado, o jovem tenta gritar, porém qualquer traço de voz some ao ver a figura esquisita que o apartara de seu cortejo.

O louco marinheiro era um maltrapilho digno de pena, pensou o jovem ao reparar naquela figura magriça, quase esquelética, desgrenhada e usando o seu gorrinho de banda. Sua pele amorenada pela exposição constante ao sol era quase tão enrugada quanto um camaleão que se aquece ao calor da manhã.

“Meu caro jovem, vejo que essas orelhas ainda descansadas estão sedentas por uma boa história”, disse o velho. O padrinho arrebatado tenta desvencilhar-se das garras do abutre que o afanara de seu dever e de sua diversão.

“Me solte, meu caro ancião, não vê que está amassando minhas roupas? Elas são alugadas e o gerente da loja as quer de volta após os comes e bebes”. Saltando para trás, o jovem faz menção de correr, mas havia algo de estranho no olhar daquele homem, algo que o hipnotizava. “Creio ter mais cinco minutos, que essa história seja das boas! Ande, conte suas mágoas, meu velho!” Assim afirmou, pensando ser mais um lamento de amores perdidos de um velho marítimo.

O velho se levanta num salto estranho e desconjuntado, circula vagarosamente ao redor do rapaz fazendo gracejos e meneios como se o convidasse para uma dança. “Não pense você, meu jovem, que me lamentarei das moças que por ventura eu tenha tido durante essa vida dura.” Abrindo um sorriso demasiadamente largo e amarelo como uma lembrança profunda, ele continua: “Não, isso não, já tive mulheres mais bonitas que essa fausta noiva, mas não é isso.”

De súbito, como um tapa bem forte no fundo de sua mente, o jovem padrinho recorda o motivo pelo qual saiu de casa nessa tarde nublada: o casamento! Ele olha para trás e vê que todo o cortejo já havia entrado no templo e a noiva já se encaminhava para o altar. Ele não faz ideia se fica ou se corre, hipnotizado por aqueles olhos acinzentados como os de uma tempestade que está por vir.

“Ande, meu velho, maldito seja!” O padrinho agita sua cabeça, olhando rapidamente de um lado ao outro. “Ande, meu velho, a noiva está no altar e todos assumem seus lugares!”.

“Vejo que é um moço dos mais inteligentes, adivinhastes que falo de uma maldição.” Excita-se o marinheiro. Se fosse algumas centenas de décadas mais moço, poder-se-ia dizer que havia descoberto ouro ou ganho seu primeiro beijo. Mas, na verdade, era a ilusão de ter um ouvinte que parecia entendê-lo.

E o velho marinheiro louco começa a sua história.

Quando eu era jovem, um pouco mais velho que você, mas ainda jovem, trabalhava em um navio chamado David Jonas, que ora era pesqueiro, nos meses mais propícios, e ora pequeno transportador de produtos que eu prefiro não comentar. Assim evito manchar ainda mais a memória de meus companheiros.

Estávamos à caça de um grande peixe cujo tamanho passava e muito um palmo do nosso navio. Caçávamos aquela bela jóia prata e púrpura fazia três dias e três noites quando finalmente conseguimos arpoá-lo. Graças ao nosso hábil piloto, quase não sentimos os grandes trancos que o gigante marinho dava. Estávamos felizes em demasia, pois todos sabiam o preço que o quilo do peixe alcançaria em nosso mercado. Uma peça daquelas seria disputada com ardor pelos atravessadores do entreposto.

Somente um tempo depois de ter amarrado nosso prêmio no costado da embarcação, nos demos conta que nos afastamos do nosso porto de origem. Não foi um afastamento simples, pois saímos de nossa amada zona tropical e agora só conseguíamos divisar icebergs. Nada havia ao redor senão a bruma gélida e a névoa ofuscante.

Quando o caos estava instaurado e tudo indicava que ficaríamos presos e estagnados durante um bom tempo, eis que surge um animal estranho. Nunca o havíamos visto, porém, ele parecia um velho conhecido. Uns diziam que era um boto, outros diziam que era um golfinho, mas ainda acho que era um ponto em comum entre os dois parentes que sumiu durante a escala evolutiva.

Como por providência e alento enviado pelos deuses, ele circundava nossa embarcação fazendo gestos como se quisesse que nós o seguíssemos. Já que não havia vento, decidimos baixar os remos e exercitarmo-nos um pouco.

À medida que avançávamos, a névoa densa começava a se dissipar. Toda a tripulação estava maravilhada com essa dádiva. Era a nossa tábua de salvação. O carinho por esse animal exótico era tanto que a tripulação dividia o seu pescado com ele. Palavras de incentivo e agradecimento eram proferidas a todo momento e até o vento parecia estar contente e voltou a soprar.

Como que desperto de um sonho louco, podia jurar que o animal nos levava para um beco sem saída. O sonho era tão real que me encheu de uma fúria sem igual. De repente levantei-me do meu posto de vigia noturno e enterrei o arpão atrás da cabeça do nosso amado guia. Ele soltou um som aterrador, virou de barriga para cima e afundou na escuridão fria do oceano

Ao som aterrador, toda a tripulação desperta e corre para a amurada a tempo de ver o cabo do arpão sucumbir no túmulo gelado. Por não verem mais seu companheiro de viagem, os marinheiros começaram a inquirir sobre o autor daquele delito hediondo. Porém, como o tempo continuava propício, todos esqueceram-se do pobre diabo e continuaram felizes a traçar o rumo para as águas amenas de nossa cidade. Esperávamos ver seu brilho em breve.

A calmaria não durou muito. Logo após a metade do dia o vento amainou e estagnou de vez. Ficamos parados por mais de cinco dias e nossos suprimentos se extinguiam. A carne foi a primeira a escassear. Não conseguíamos mais prover o nosso sustento com a pescaria. Alguns queriam começar a fatiar o nosso troféu, porém a outra parte da tripulação era invariavelmente contra. A fome era tanta que um embate era iminente.

Eu mesmo, louco de fome, comecei a maldizer o meu rompante em ter eliminado o nosso presente. Só que em um desses devaneios me ouviram e logo fui sumariamente julgado e amarrado ao mastro principal para apodrecer.

A sede era tanta e havia tanta água… Água por todos os lados e nenhuma só gota para beber. Pensei estar alucinando quando vi a sombra de uma embarcação na bruma. Gritei feito um desesperado até que alguém me desse ouvidos e conseguisse perceber o que eu via com tanto custo. Mais uma vez desceram-se os remos e a tripulação remou até a embarcação.

Ao nos aproximarmos da amurada do estranho navio, pude ver que não havia uma tripulação. Apenas duas figuras se sentavam em lados opostos de uma mesa instalada no convés. Estavam armando um jogo de dados. A mesa tinha o feltro vermelho e parecia ser feita de um mogno brilhoso e bem lustrado.

A figura da esquerda estava vestida em um manto escuro, de cor um tanto quanto indefinida. O capuz jogado por sobre a sua cabeça escondia o ser sinistro de mãos ossudas. Não é preciso ser um excelente fisionomista para reconhecer quem era. Já a da direita era uma mulher quase tão pálida quanto o vestido que usava. Seus cabelos eram loiros e ondulavam por sobre seus ombros. Ela eu não havia reconhecido, mas apresentou-se como “O Pesadelo da Vida na Morte”.

A tripulação, eu incluso, parecia ter sucumbido à adversidade e estávamos diante de nosso destino. Um a um, três vezes cinquenta homens foram postos perante a mesa e a morte sempre ganhava nas rolagens dos dados. Seus corpos caíam à minha frente enquanto suas almas desprendiam-se da vida com o mesmo ruído emitido pelo nosso companheiro que eu abatera há alguns dias.

Quando chegou a minha vez, eu pensei ter visto de relance uma figura conhecida. Pensei ser nosso companheiro a voltar do túmulo e passar ao redor da embarcação sombria. Não sei se por sorte ou por azar a rolagem da figura loira ganhou. Pensei que morrer fosse a pior coisa que poderia acontecer, mas não foi.

Após a última partida, a que decidira o meu destino, o navio desapareceu. Com ele, foi-se a corda que me atava ao mastro. Fiquei sozinho, com cento e cinquenta corpos jogados no convés. Para me sustentar, fui obrigado a comer a carne já putrefata de nossa pescaria. Todas as tardes eu era atacado por uma revoada de albatrozes que eu tentava afastar com meu remo. Mas o pior era a impossibilidade de jogar os corpos ao mar, estavam pesados demais e eu, irremediavelmente fraco. Era triste ver a minha condenação refletida em seus olhos enquanto eu seguia ao sabor de uma corrente fortíssima.

Após passar duas semanas nesta agonia sem fim, pensando que finalmente a minha vez havia chegado, fui apanhado em uma tempestade violentíssima que despedaçou meu navio e me jogou ao mar repleto de águas-vivas que me fustigavam a todo o instante.

Em certo momento fui pego por uma onda que me jogou para o fundo do mar. Pensei ter finalmente chegado ao fim o meu pesadelo e que finalmente iria encontrar os meus no outro lado. Porém, minha maldição não permitiria que isso acontecesse. Fui jogado novamente à tona e empurrado até uma praia qualquer, em uma ilha esquecida.

Desde então eu não tenho mais um só dia ou noite de descanso. Toda vez que prego meus olhos sonho com o belo animal, presente dos deuses que eu desperdicei. Condenei uma tripulação inteira por um mero capricho. Nesses sonhos, a todo instante a loira pálida me manda levantar e contar a minha história. Isso acontecerá até que ela fique satisfeita e por fim me deixe descansar em paz, ou quase isso.

Transparecendo a maldição através de seus olhos cinzentos, o velho marinheiro termina sua narrativa. O velho demônio estava sorrindo como uma criança que recebeu um doce. Após mais um volta ao redor do jovem, o velho pulou de volta para onde se encontrava.

Quando deu por si, o jovem padrinho viu que anoitecera e o templo já havia fechado. “Maldito seja, velho demônio, não é à toa que fostes amaldiçoado pela eternidade.” E continuou. “Não foi o bastante condenar sua própria tripulação à infâmia eterna, teve de condenar a mim também?”

Ao olhar novamente em direção ao velho para lhe falar mais umas poucas e boas, o mancebo viu que ele havia desaparecido. Sua risada ecoava no ar. Por anos a fio o rapaz não conseguia parar de pensar naqueles olhos tempestuosos.

 


Mario Marcio Felix é um geek que sabe um pouco de Latim, pesquisa Idade Média e escreve bastante. Professor por vocação, tenta gerar pensamento crítico na cabeça dessa molecada dando suas aulas doidas de Português e Literatura. Amante de uma boa cerveja e um ótimo papo com a galera. Adsumus! Estamos presentes!