[Coluna] Primeira Guerra Mundial, Terra-Média e Nárnia

0

Olá caríssimos leitores desta coluna e deste site. Como foi proposto por mim, quinzenalmente farei postagens especiais, sendo estas mais longas e aprofundadas em um tema que envolva literatura e história.

E o tema de hoje é, em termos bem resumidos, a história de um lugar na França. Um rio, para ser bem específico.

E, neste rio, chamado Somme e que desagua no canal da Mancha, existem dezenas de histórias. Principalmente e quase exclusivamente histórias de guerra. Do mais antigo ao mais recente, em maneiras bem rudes, temos o rio sendo atravessado por tropas que iam em direção a Batalha de Azincourt, uma das, senão a pior, derrota do exército nobre francês de antigamente. Esta batalha, em especial, aconteceu 501 anos antes do que vamos retratar nesta postagem. (Só queria deixar como referência a quem se interessar por Azincourt o livro homônimo, escrito por Bernard Cornwell.)

O rio, também foi onde caiu o avião de Manfred Von Richtofen, o Barão Vermelho, quando este foi finalmente pego pela artilharia Aliada. Só que este pequeno trecho de água e suas adjacências só vieram a ser mundialmente famosas na primeira guerra mundial. Dando nome a uma batalha que aconteceu em seus arredores, a Batalha de Somme, conhecida pela Inglaterra, França e Alemanha como The Bloody Battle of Somme, (a batalha sangrenta do Somme) pelo seu número de pesadas baixas nos dois exércitos.

4
Um mapa do que era a região do Some em 1916

Para quem não conhece (acho bem difícil) ou para quem não conhece bem, aqui vai um resumex: A primeira grande guerra foi uma guerra centrada na Europa, que começou em 28 de julho de 1914 e durou até 11 de novembro de 1918. O conflito envolveu as grandes potências de todo o mundo, que organizaram-se em duas alianças opostas: os aliados (com base na Tríplice Entente entre Reino Unido, França e Império Russo) e os Impérios Centrais (originalmente Tríplice Aliança entre Império Alemão, Áustria-Hungria e Itália; mas como a Áustria-Hungria tinha tomado a ofensiva contra o acordo, a Itália não entrou em guerra, juntou-se posteriormente aos Aliados e, depois de sua vitória, não se beneficiou em nada).

Foi uma guerra de estopim: Tudo se desencadeou quando o Arquiduque Franz Ferdinand da Áustria, herdeiro do trono da Áustria-Hungria foi assassinado pelo nacionalista iugoslavo Gavrilo Princip, em Sarajevo, na Bósnia, o que resultou num ultimato em cima do Reino da Sérvia e diversas alianças formadas ao longo das décadas anteriores foram invocadas, assim, dentro de algumas semanas, as grandes potências estavam em guerra; através de suas colônias, o conflito logo se espalhou ao redor do planeta.

Claro que, mesmo sem estopim, uma guerra estava se formando de todo jeito, já que a disputa comercial estava ficando mais agressiva a cada dia, juntamente cum um desejo germânico e eslavo de unir respectivamente seus territórios de origem semelhante, além do revanchismo francês, que havia perdido a região da Alsácia-Lorena para o Império Germânico no século anterior ao conflito.

Enfim, lados tomados, armas afiadas e pistolas carregadas, vamos acelerar o tempo até 1916, auge da guerra, e voltamos a região do Somme. De todos os soldados e oficiais de ambos os lados, enterrados em trincheiras e sob a constante ameaça de ataque químico e de balas vindo do outro lado, temos três pessoas curiosas segurando rifles e atirando contra o inimigo. Delas, tiramos o subtenente de 24 anos chamado John Ronald Reuel Tolkien e um soldado de 18 anos chamado Clive Staples Lewis, do lado Britânico, enquanto que do outro lado temos um Cabo de 27 anos da Divisão de Reserva da Bavária, Adolf Hitler.

foto
Em sequência: Tolkien, Lewis e Hitler, todos como eram a época da primeira grande guerra.

Fight!

Sim. Isso aconteceu. Tolkien e C. S. Lewis versus Hitler, na batalha mais sangrenta da Primeira Grande guerra. Sorte nossa, assim por dizer, o lado britânico prevaleceu e assim conhecemos o trabalho pós-guerra de ambos os escritores tanto quanto conhecemos o trabalho pós-guerra de Hitler. Este, foi o único a sofrer um ferimento no tiroteio; levou um tiro na perna e foi retirado do conflito. O confronto envolvendo tropas inglesas e francesas contra as forças alemãs na Batalha do Somme é considerado um dos mais sangrentos porque levou a vida de 95 mil homens britânicos, outros 50 mil franceses e 164 mil alemães. Esta batalha repercutiu profundamente na vida dos três, vindo a ser relatada em Mein Kampf, sendo que um tanto quanto dramatizada e muitas das cenas descritivas de guerras que se passaram em O Senhor dos Anéis foram inspiradas ou nessa batalha ou em outros momentos que Tolkien viveu enquanto parte do exército. Aqui vemos dois exemplos:

Deve-se, de fato, pairar sob a sombra da guerra para sentir completamente sua opressão. Porém, à medida que os anos se vão, parece que esquecem que ser jovem nos idos de 1914 era uma experiência não menos pavorosa do que se entrar por 1939 e anos seguintes. Por volta de 1918, quase todos os meus amigos mais próximos (à exceção de um) estavam mortos.” – J.R.R. Tolkien, prefácio d’O Senhor dos Anéis.

Todos os mortos, todos putrefatos.  Elfos e Homens e Orcs. Os Pântanos Mortos. Houve uma grande batalha nos tempos antigos, sim, eu disse a ele quando Sméagol era jovem, quando eu era jovem e do Tesouro ainda não havia chegado. Foi uma grande batalha. Homens altos com espadas longas, e elfos terríveis, e Orcs uivando. Eles lutaram na planície por dias e meses frente aos portões negros. Mas os pântanos cresceram desde então, engoliram os túmulos; rastejando, rastejando sempre. “– J. R. R. Tolkien, As Duas Torres.

 

A revolta pela perda da guerra transformou o jovem Adolf Hitler, um pintor rejeitado pela academia de Belas-Artes e agora soldado, em quem ele viria a se tornar.

5
Exemplo de pintura que o jovem Hitler criava

Ele sofreu e quase ficou cego pela inalação do fatal gás mostarda. Para Tolkien tudo terminou em 8 de novembro, quando acometido pela “Febre de trincheira” – uma infecção transmitida por pulgas e piolhos – sendo enviado de volta à Inglaterra. As lembranças das trincheiras, dos tanques e armas de gás criariam nele depressões profundas até o fim de sua vida. A única coisa boa que se pode tirar disso, foi sua amizade com Lewis, que vingou nos anos seguintes. Cristão convicto e católico apostólico romano, Tolkien foi amigo íntimo de C.S. Lewis, autor de “As Crônicas de Nárnia”, ambos membros do grupo de literatura The Inklings.

Foi Tolkien que reavivou a fé de Lewis, que era ateu convicto durante quase toda sua adolescência. Juntos planejaram, na década de 1940, escrever um livro sobre a língua, que seria publicado na década seguinte. O livro, que se chamaria “Linguagem e Natureza Humana”, no entanto, nunca chegou a ser publicado.

Tolkien e Lewis foram grandes amigos durante décadas, até que a amizade se desgastou em razão de diversos motivos. Um deles teria sido o fato de Lewis ter escrito fantasia, algo que Tolkien considerava sua área.  Na época da morte de Lewis (em 1963) eles já não se falavam por quase dez anos.

A publicação de O Senhor dos Anéis foi muito incentivada por Lewis, que aliás foi um dos primeiros a ouvir a história, juntamente com Christopher Tolkien. Tolkien jamais deixou de admirar Lewis como amigo, embora não gostasse da maioria de seus livros, em especial As Crônicas de Nárnia, que entendia como sendo alegórico e infantil demais.

Mas, pensando agora na guerra, quantos possíveis talentos e gênios, nas mais diversas áreas, não pereceram nesse combate?

Filme sobre Tolkien e Lewis estaria sendo rodado

E, ano passado, temos uma especulação de filme sendo criado. Foi confirmado que o diretor britânico Simon West seria o diretor do filme Tolkien & Lewis, um projeto que está em desenvolvimento há algum tempo e pretende contar a história da amizade (e seu rompimento) entre o autor de O Senhor dos Anéis e o autor de As Crônicas de Nárnia. Agora, West fala deste drama baseado em fatos reais e ambientado em 1941, em uma Grã-Bretanha em pleno esforço de guerra contra a Alemanha nazista.

Um dos aspectos mais interessantes desta história é como a vida de ambos os escritores começou com um tipo de relação e terminou de forma muito diferente. Quando começamos a história, Tolkien é um homem feliz, confiante. Cercado por sua família amorosa, é bem sucedido em seu trabalho como professor em Oxford e já se estabeleceu como o autor de O Hobbit. Sua vida parece perfeita.

Enquanto isso, Lewis está lutando. Ele não conseguiu a cátedra em Oxford, talvez por causa de sua relação pouco ortodoxa com a mãe de seu melhor amigo falecido. Foi sexual ou um estranho complexo materno? O sistema de Oxford considerava-o um estranho. Nascido na Irlanda do Norte, Lewis perdeu a mãe muito cedo e foi ignorado pelo pai. Enviado a colégios internos e frustrado em algumas de suas ambições acadêmicas, ainda não era um escritor de sucesso, certamente não em comparação com Tolkien. Lewis foi um ateu convicto por anos, mas Tolkien ajudou-o a recuperar sua fé, e, por isso, sua amizade começou.

O filho de Tolkien vai lutar na Segunda Guerra Mundial, o que lhe trouxe de volta as memórias traumáticas da guerra. Isto, inevitavelmente, o leva a um bloqueio, e como escritor, não pode terminar seu último livro, O Senhor dos Anéis. No entanto, Lewis é recrutado pela BBC para realizar transmissões para inspirar a nação e se torna uma celebridade. O relacionamento entre ambos azeda quando Lewis termina rapidamente As Crônicas de Nárnia, invadindo o que Tolkien considerava seu território estilístico.

A britânica Attractive Films é a produtora de Tolkien & Lewis, cujo roteiro é assinado por Jacqueline Cook e tem um orçamento de 18 milhões dólares, uma quantia bem modesta em termos de cinema. De acordo com o produtor, o filme será um drama fantástico ambientado em 1941, em uma Grã-Bretanha que sofre com a Segunda Guerra Mundial e que revela a fé, a amizade e a rivalidade entre J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis.

De acordo com o IMDB, o filme está programado para estrear em 2015, no feriado de Páscoa.

Até o momento, a Tolkien Estate (empresa que gerencia os direitos dos descendentes sobre as obras de Tolkien) não se pronunciou sobre o desenvolvimento do filme.

Curiosidades pertinentes ou nem tanto

1- Aqui vai um link para todas (supostamente) as pinturas e desenhos que o jovem Adolf fez: divirta-se. O quão diferente teria sido sua história se tivesse sido aceito na Academia de Belas-Artes, ein?

2 – Uma editora alemã, na época do Nazismo, havia perguntado a Tolkien se ele era da “raça” ariana (logo, não judeu), pois tinham interesse de publicar uma tradução alemã de O Hobbit. Este é um trecho de uma das 2 versões que ele escreveu da resposta.

Obrigado por sua carta… Lamento informar que não me ficou claro o que os senhores querem dizer com arisch. Não sou de origem ariana: tal palavra implica indo-iraniana; que eu saiba, nenhum dos meus antepassados falava hindustani, persa, romani ou qualquer dialeto relacionado. Mas se devo deduzir que os senhores estão me perguntando se eu sou de origem judaica, só posso responder que lamento o fato de que aparentemente não possuo antepassados deste povo talentoso. Meu tataravô chegou na Inglaterra no século XVIII vindo da Alemanha: a maior parte da minha ascendência, portanto, é puramente inglesa, e sou um indivíduo inglês – o que deveria ser suficiente. Fui acostumado, no entanto, a estimar meu nome alemão com orgulho, e continuei a fazê-lo no decorrer do período da lamentável última guerra, na qual servi no exército inglês. Não posso, entretanto, abster-me de comentar que, se indagações pertinentes e irrelevantes desse tipo tornar-se-ão a regra em matéria de literatura, então não está longe o tempo em que um nome alemão não mais será um motivo de orgulho.”

(J. R. R. Tolkien – De um rascunho de carta para Rutten & Loenig Verlag, 25 de julho de 1938)

 

Aprofundamento sobre a Batalha de Somme, para apetecer: aproveite.

Fontes e citações

Diretor fala sobre o filme “Tolkien & Lewis”

Tolkien e C.S. Lewis enfrentaram Hitler na Primeira Guerra Mundial