[Coluna] Carta Aberta a um Amigo

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Este é um e-mail que mandei recentemente ao meu amigo Rodrigo Rahmati, e enquanto pensava no que escrever para a coluna dessa semana, percebi que tudo que queria dizer já tinha dito nessa mensagem. Como reescrever isso soaria, no mínimo, artificial, decidi por postar o e-mail original, que me pareceu bastante apropriado após uma releitura e revisão. Faço dessa mensagem uma carta aberta a todos os leitores, portanto, você que a leu, sinta-se intimado a responder nos comentários. Não se deixa uma correspondência sem resposta. 😉

 

Bom dia caro Rahmati,

 

 Encontro-me num pequeno bolsão de tranquilidade após resolver os assuntos da manhã, que em breve, mais breve do que gostaria, será novamente rompido para me inundar de chamados urgentes, todos prioritários, por sinal. Como se define prioridades quando tudo é prioritário, mas sua capacidade de resolução ainda é limitada a um por vez? Penso que quando tudo é prioritário, nada o é, e cabe ao meu próprio discernimento o que devo resolver primeiro para evitar maiores dores de cabeça para mim mesmo.
Enfim, decide escrever-lhe para falar de amenidades e assuntos literários, como de costume. O tempo para escrever se torna cada vez mais escasso. Minha rotina foi quebrada, a tranquilidade diária do ônibus fretado, da porta do trabalho à porta da casa, foi extinta. Agora me entrego ao humor volátil do trânsito paulistano e dos transportes públicos. Não que tenha enfrentado grandes contratempos até então, mas irei. Isso é tão certo quando o sol brilhar no céu amanhã. Pensando bem, até isso é duvidoso. Pode estar nublado.
No fretado era tudo tão impessoal. Tão distante. Nunca fiz amigos, nem fazia questão. São pessoas muito diferentes, assuntos muito díspares, interesses muito distantes. Havia um homem de meia idade que sempre trazia um livro na mão. De todo tipo. O vi lendo de King a ficção histórica, e o último livro era sobre Schopenhauer, mas aquela não era sua faceta pública. Essa era faceira e brincalhona, de um jeito que intimida os mais reservados, como eu. Seu lado literário era dele, no conforto de seu banco, sob a luz que acendia toda viagem. Nunca dormia, só lia.
Gostaria de ter falado com ele sobre isso, mas nunca tive chance. Me resignava a dormir e a ler quando conseguia manter os olhos abertos. Era tudo ordeiro e esperado, até mesmo os atrasos devido ao trânsito travado próximo a Barueri. Nada era novo, além de pequenas chateações com gente inconveniente.
O metrô tem uma beleza única. Nunca sei quem estará ao meu lado. Vejo todo tipo de gente, dos que são considerados “normais” pela sociedade aos tipos mais alternativos e diversos. Esses tipos sempre me parecem mais vivos. A solidão, entretanto,  é a mesma do fretado, a único diferença sendo que a solidão do fretado é entre poucos, e a solidão do metrô é em meio a centenas. Milhares. E dentre esses, sempre há alguém com um livro na mão. Com maior frequência mulheres.
A curiosidade por ver as capas do que leem é sempre grande. Fico frustrado quando consigo apenas um vislumbre, parte de um nome, pedaço de uma palavra. É raro desvendar o que se esconde naquelas páginas, e se com o companheiro de fretado era difícil comentar sobre, com os homens e mulheres do metrô é ainda mais complicado. Para mim, pelo menos.
Ainda assim, a imprevisibilidade de como será a viagem, das pessoas que verei, do resultado do jogo das cadeiras, torna a vida mais interessante. Algumas pessoas não entendem isso, as que se encontram estafadas pela rotina que agora é minha, mas já era delas há tantos anos. Ademais, eu posso ler. Não dá para dormir no metrô, nem no trem. Mas dá pra ler. Ontem terminei Minha Queria Sputnick, de Murakami. O livro se foi em dois dias. Em quatro viagens.
Murakami é um dos três autores que quero ler esse ano, por ter ouvido falar muito deles ano passado. Os outros dois são China Miéville e Chuck Palahniuk. O Kobo já está abastecido por seus títulos. Mas permita-me voltar ao japonês. Até um bom pedaço do livro, você o entende como uma história mainstream, simples e pura. Bem contada, uma narração gostosa e não convencional. Com pequenos momentos de brilhantismo metafórico escapando de suas linhas aqui e ali, com bastante frequência, até que em certo ponto, a fantasia se apresenta.
Inesperada, chega de mansinho e toma conta de tudo, e o cenário e as pessoas já são tão reais que é impossível questioná-la, a única possibilidade é aceitá-la como um fato e conjecturar sobre ela; curiosamente a mesma reação que o narrador-personagem tem. O final levanta ainda mais dúvidas ao invés de explicar as já existentes. A sutileza oriental reside no fato de que o final não precisa esmiuçar nada, que se você se desaponta com ele não conseguiu capturar a essência da obra, nunca explicada diretamente, apenas insinuada.
Murakami valeu a pena. Antes de partir para o próximo da tríade, comecei Ele Está de Volta, de Timur Vermes, que sei que você leu recentemente. O humor e ironia do autor são feitos com muita habilidade, e me deixam questionando sobre quantas pessoas leram esse livro e o deixaram para trás, desconsiderando-o como uma leitura medíocre, por não captar seu sarcasmo. Imagino que uma edição Sheldon Cooper se faria necessária. Talvez uma versão ebook, com os trechos destacados, onde você poderia clicar e pularia a plaquinha de sarcasmo. Estou gostando demais, receio que tenha rido sozinho no metrô algumas vezes, cortesia até então me provida apenas por podcasts.
Enfim, com toda essa agitação de mudanças às pressas, a escrita está um tanto comprometida, assim como as gravações, mas ao menos meu sono conturbado do fretado se metamorfoseou em produtivas horas de leitura no metrô.
Com isso finalizo essa missiva descompromissada. Não estranhe o estilo da escrita, não usual em nossas comunicações até então. Isso é fruto de um vontade inesperada de experimentar algo que li em Murakami, a troca de cartas entre o narrador e a personagem principal, aspirante a escritora. Talvez esse tipo de e-mail me ajuda a manter a mente afiada e a não enferrujar as palavras até que tenha me estabelecido e possa voltar a produzir.

 

Abraço,
Lucas Ferraz