[Devaneios] O Facho na Faixa

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Os olhos brilhavam, refletindo o vermelho intermitente que fitava sem ver. Sua mente vagava longe, mergulhada em frustrações e angústias; o mundo ao redor rebaixado ao limiar da percepção, impedido de emergir por completo.

Verde. Pôs-se a andar, a turba urbana ao redor fazendo-o apertar o passo, empurrando sem paciência, na ânsia pela hora da refeição e descontração no meio do dia de trabalho. Para ele, apenas um momento de se alimentar e voltar à rotina. Nada mais.

Pego no meio da correria, apesar de acelerar o quanto pôde, foi empurrado energicamente. Caiu de joelhos, abatido na faixa zebrada. Aguardou todos passarem e se levantou devagar, sem irritação, desprovido de qualquer sentimento ou reação a não ser uma apatia generalizada. E foi ali, no meio da rua, que aconteceu.

Ao se erguer, olhou para o céu, até então nublado. Um solitário raio de sol penetrava tímido através de uma falha no tecido das nuvens. Nesse momento desligou-se de si próprio. Era uma sensação bizarra que lhe ocorrera algumas vezes antes, e agora surgia novamente, sem convite nem aviso. Durante um microssegundo, tornou-se pleno, completo, despersonalizado. Sentia-se como parte de algo maior, desprovido de ego ou de insatisfações mundanas, e como era usual, teve uma epifania.

Naquele instante minúsculo de contemplação, compreendeu que perseguir seu sonho não requeria que deixasse seu emprego, que lhe botava na mesa o pão de cada dia. A atitude mais sensata era voltar ao escritório, dar o melhor de si diariamente, e se distrair no almoço, como faziam todos os transeuntes que se dirigiam aos restaurantes próximos.

Em paralelo poderia fazer o que gostava, usando seu tempo livre com sabedoria, e não ancorado em frente à TV, absorvendo com um misto de fascinação e tédio tudo que o aparelho regurgitava sem pena nem pausa. Iria se esforçar, treinar e produzir de modo contínuo. Por certo no início as coisas não seriam aproveitáveis, mas isso era parte do processo de aprendizado. Não se deixaria abater.

Afinal, caso continuasse desanimado e se lamentando pelos cantos, não se realizaria profissionalmente e muito menos alcançaria qualquer nível de sucesso em seus projetos pessoais. Esses sem dúvida mofariam em gavetas escuras, sem qualquer prospecto de ver a luz do dia.

O marasmo foi quebrado pelo vento, que reacomodou as nuvens em seu leito azul, escondendo mais uma vez o sol. O opaco facho de luz que o atingia sumiu aos poucos e o semáforo voltou a se iluminar de escarlate. Retirado de seu estado contemplativo e com os carros impacientes já buzinando, terminou a travessia correndo.

Mais leve e esperançoso, viu à frente um grupo de colegas que o haviam chamado para almoçar, convite então recusado de imediato. Alcançou-os correndo e se juntou a eles. Era melhor relaxar um pouco, ainda tinha metade do dia pela frente. Ao menos agora sentia-se diferente. Desperto.