[Conto] A Carta Para o Doutor

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doctor-who-wallpaper-for-the-6th-season-new-adventure-doctor-who-20937441-1920-1200Como sou curadora do museu municipal, muita gente pensa que passo o dia inteiro sem fazer nada além de admirar arte. Bom, pode não ser o emprego mais pesado do mundo, mas têm dias e dias. Hoje estou fazendo hora extra noite afora para preparar uma grande exposição de esculturas para a próxima semana e devido a vários probleminhas, as obras só foram entregues no fim do expediente.

Dou um giro pelo museu para ver se está tudo em ordem. Caminho sozinha pelos corredores e não demora para ver algo fora do lugar. Alguém colocou um grupo de uma dúzia de pequenas gárgulas de pedra na sala barroca, ao invés da gótica. Depois resolvo isso. Agora, preciso cuidar da remoção das últimas peças da exposição anterior… Engraçado. Em uma segunda olhada, algumas gárgulas parecem estar em posições diferentes.

Minha imaginação está me pregando peças.

Na sala seguinte, me deparo com outro problema. Apanho o rádio no meu cinto e me volto para a câmera no canto da sala.

— Seu Walter, é a Paloma. Estou na câmera 23.

Nosso vigia noturno, seu Walter, é o responsável por ficar de olhos nas câmeras de segurança. Bom homem. Trata todo mundo como se fossem seus filhos.

— Estou te vendo, Palominha. — ele responde pelo rádio. — O que foi?

— Meu problema é isso aqui.

Aponto para a cabine azul de madeira de porta dupla, com uma janelinha em cada uma. Acima das portas há um painel aceso onde está escrito “Police Box” e “public call”.

— Está falando da cabine telefônica?

— Não é uma cabine telefônica, seu Walter. É uma cabine policial londrina. Eu diria que é… deixa eu ver… um modelo dos anos 60. O problema é que não deveria estar aqui. Nem temos uma dessas no nosso acervo.

— Vou repassar as fitas aqui e ver quem trouxe a cabine.

Agradeço ao seu Walter e desligo o rádio. Seja como for, a cabine é uma bela peça, parece nova. Com certeza, eu adoraria exibi-la no museu. Antes que possa voltar ao trabalho, escuto a voz do meu assistente pelo rádio.

— Paloma, você está aí?

— Pode falar, Cosme.

— Estou aqui no galpão e tem uma escultura fora da caixa, sem etiquetas, nem nada.

— Ótimo! Era só o que faltava! Como é essa escultura?

— É um anjo cobrindo o rosto com as mãos. Não reconheço o artista e… que barulho é esse?

— Cosme, algo errado?

— Acho que tem mais alguém aqui. Olá?! Quem está… aaaaahhhhhh!!!!

— Cosme?! Cosme, não é hora para gracinhas!

O rádio fica cheio de estática. Tento chamar o seu Walter, mas não dá em nada. Decido ir até o galpão nos fundos. O Cosme sempre gostou de fazer pegadinhas, só que hoje não estou com disposição para brincadeiras.

Passando pela porta de serviço, atravesso um longo corredor com algumas portais laterais levando a outros setores do museu. As luzes piscam um pouco, porém, parece tudo bem, exceto pelo silêncio. Saindo do corredor, passo por um pequeno escritório, onde toda a papelada é checada quando novas obras entram ou saem daqui.

A porta que leva ao galpão é reforçada e só abre depois que eu digito uma senha no terminal ao lado da porta. Uma segurança necessária, já que do outro lado estão obras de arte sem valor. O galpão é refrigerado para conservar as peças. O frio arrepia os pelos do meu braço. Apesar de bem iluminado, o local é um tanto sombrio a essa hora da noite e sem ninguém por perto.

Vejo a tal escultura. É a estátua de um anjo da minha altura, sem contar as asas. Uma figura belíssima, tenho de admitir. Muito bem feita, quase viva. O estranho é a pose, a face escondida atrás das mãos.

— Cosme, cadê você?

O rádio dele está caído a poucos metros do anjo. Me abaixo para pegar o aparelho. Ainda sem sinal, só estática. Chamo o Cosme de novo. Não tenho resposta. Meu olhar se volta para a estátua do anjo novamente e percebo que o olho esquerdo me observa por entre os dedos. Era assim que estava antes?

Não sei se é o sumiço do meu assistente, o silêncio ou o horário, mas estou começando a ficar preocupada. Com o rádio mudo, penso em chamar o seu Walter pelo celular… Também sem sinal. Levanto os olhos do aparelho e agora tenho certeza de que o anjo se mexeu.

A estátua está inclinada na minha direção, como se estivesse pronta para vir atrás de mim. As mãos não estão mais cobrindo a face. Nem quero saber o que está acontecendo, só quero sair daqui. Corro para a porta. Me viro para olhar. A estátua está mais próxima. O rosto tem um sorriso maligno.

Minha mão tateia a parede procurando o terminal para destrancar a porta. O encontro em pedaços. Tenho certeza de que quem fez isso foi essa coisa diante de mim. Não quero das as costas para o anjo, mas decido me virar e empurrar a porta com todas as minhas forças.

— Abre! Abre! — ela nem se mexe.

Olho para o galpão e tomo um susto. A mão de pedra está quase agarrando minha garganta. O anjo está a centímetros de mim. A boca aberta cheia de dentes afiados. É assim que vou terminar? Devorada por uma estátua?

Escuto um barulho parecido com uma sonda do outro lado da porta. Em seguida, ouço a trava se destrancando. Sem pensar duas vezes, me lanço pela porta e dou de cara com um sujeito que nunca vi antes.

— Socorro! O anjo… — instintivamente me volto para trás. — P-parou de se mexer…

— É porque eu mantive o contato visual. — a voz do estranho possui um sotaque britânico. — Sempre mantenha o contato visual.

Respiro fundo para tentar me acalmar.

— Sei que é difícil de acreditar, mas a estátua se mexeu! — digo a ele enquanto encaro aquela boca escancarada.

— Estátuas não se mexem, isso seria ridículo! Estamos diante é de um Anjo Lamentador.

— Não sei o que é isso.

— Um Anjo Lamentador é uma forma de vida alienígena. Sempre que alguém está olhando, ele se transforma em pedra. É um mecanismo de defesa quântico… Não dá pra matar uma pedra.

— E quando ninguém está olhando? Ele é o quê?

— O predador mais implacável do universo! Deve ter vindo a esse museu procurando comida.

O que ele diz não faz muito sentido… e estátuas que se mexem também não.

— Meu assistente Cosme estava aqui embaixo, mas só encontrei o rádio dele.

— Lamento pelo seu amigo. — o estranho atrás de mim coloca as mãos nos meus ombros. — Preste atenção. Vamos nos afastar devagar para a outra sala. Faça o que fizer, não pare de olhar para o anjo. Nem mesmo pisque. Se piscar, você morre.

Damos alguns passos para trás sem perder o anjo de vista. Assim que entramos no escritório, o estranho fecha a passagem. De imediato, ouvimos o anjo batendo com violência na porta, que resiste bem.

Sinto meus nervos relaxando e aproveito para dar uma boa olhada nesse sujeito. Ele parece ter uns 30 anos… e que gosto tem para roupas! Usa um paletó de tweed e gravata borboleta. Ele abre o paletó para pegar algo no bolso e vejo que está de suspensórios ao invés de cinto. O estranho saca um bastão de metal com uma luz verde na ponta e o aproxima do terminal da senha. Ouço o mesmo barulhinho de sonda e o visor do terminal se apaga.

— Desabilitei todas as senhas. Isso vai manter a porta travada por mais tempo. — diz ele.

— Como você sabe tanto sobre essa coisa? E como sabia que eu estava aqui?

— Tenho alguma experiência com Anjos Lamentadores. Em uma ocasião, eles me prenderam no ano de 1969; em outra, fiquei em uma espaçonave cheia deles; e é melhor nem falar sobre Manhattan. Quanto à outra pergunta… — de outro bolso, ele tira uma envelope azul aberto e um papel dobrado. — Eu recebi uma carta… adoro receber cartas, são muito mais legais que e-mails… e essa carta dizia que Paloma Souza estaria aqui, no galpão do museu, precisando da minha ajuda.

— Esse é o meu nome. Mas quem escreveu essa carta?

— Shhh… escute…

— Não estou escutando nada. — então entendo o que ele quer dizer. — As batidas pararam! Ou o anjo desistiu…

— Ou está procurando outro caminho. Precisamos sair daqui.

O estranho aponta o bastão para a porta do escritório, que se destranca na mesma hora.

— Ei! — eu o chamo. — Ainda não me disse quem você é.

— Eu sou o Doutor!

— Espera! Doutor quem?

Corro para o corredor atrás do Doutor, mas ele não foi longe.

— Temos companhia.

As gárgulas. Vejo as pequenas estátuas paradas no outro extremo do corredor. As bocas abertas, iguais ao anjo. À distância o Doutor aponta aquele bastão para eles e depois lê os dados que aparecem em um display no aparelho.

— De acordo com a chave de fenda sônica, essas criaturinhas têm a mesma assinatura energética de um… há!

O Doutor se agita, empolgado com suas conclusões.

— São anjos! São gárgulas, mas são anjos! São anjos disfarçados de gárgulas… brilhante!

— Que bom que gostou. — ironizo. — Vamos lá pedir o autografo deles.

As luzes do corredor piscam. A escuridão só durou um instante e mesmo assim, as gárgulas avançaram vários metros. A iluminação pisca de novo e elas se aproximam mais.

— Ah, seus danadinhos! — provoca o Doutor. — Estão absorvendo a energia elétrica.

— O que vamos fazer?

As luzes se apagam por mais tempo. O Doutor aponta a chave sônica para cima e faz a luz voltar. O problema é que as gárgulas estão praticamente em cima de nós.

— Consegui estabilizar a luz. — ele me diz. — Vamos ter que pular por cima deles.

— Parece perigoso.

— Não enquanto estivermos olhando para eles.

— Tem certeza que vai dar certo?

— Juro pelos meus corações!

— O quê?!

— No três. Um… dois… três… Gerônimooo!!!

— Ai, meu Deus!

Saltamos as gárgulas e corremos para o fim do corredor. No meio da corrida, as luzes piscam novamente. O anjo aparece no nosso caminho, mais assustador que nunca.

— Por aqui, Doutor!

Eu o chamo para a porta lateral. Assim que passamos, ele usa a chave sônica para trancar a porta e ganhar alguns minutos. Vamos para o museu e chegamos à sala 11, que está vazia. Me apoio com as mãos nos joelhos enquanto recupero o fôlego.

— Não podemos ficar só fugindo!

— O que sugere, Paloma?

— Se continuarem soltos por aí podem machucar mais gente. Isso não pode acontecer.

Ele sorri. As luzes piscam novamente e ouvimos a porta ser arrombada. O anjo invade a sala 11 com as gárgulas ao seu redor. O Doutor age rápido e aponta a chave sônica para as lâmpadas no teto.

— Pronto! Isso vai estabilizar as luzes de vez. O que faremos com nossos amigos?

Uma ideia me ocorre.

— Doutor, que tal aquilo? — aponto para o lado e para cima.

Ele acompanha a direção que indiquei enquanto vigio nossos perseguidores. Mesmo depois de tudo que vi, ainda é fácil esquecer de que não estou diante de pedras, mas de alienígenas. O Doutor parece ter compreendido minha ideia.

— Paloma Souza, você é brilhante! — ele fica ao meu lado. — Só há um problema. Vamos ter que atraí-los até aqui.

— Eu sei… — engulo seco.

— Admiro sua coragem.

O Doutor segura minha mão para me dar força. Ele ergue a chave de fenda sônica para cima.

— Muito bem, é a hora da verdade, Paloma Souza. Essa é a sua casa, você a conhece melhor que eu. Dê o sinal quando for para acender as luzes, mas não demore demais ou estamos perdidos.

— Sem pressão, não é?

— Certo… lá vai!

Escuto o barulhinho de sonda. As lâmpadas começam a piscar em um ritmo insano. Cada vez que se apagam, o Anjo Lamentador e as gárgulas se aproximam.

Vejo eles chegando… só mais um pouco… só mais um pouco… perto demais!

— Doutor!!!

— Sorriam… — as lâmpadas param de piscar. A sala fica iluminada. — Vocês estão sendo filmados!

A câmera de segurança que apontei para o Doutor está direcionada para a posição exata onde o anjo e as gárgulas se encontram. Apanho o rádio mais ainda há interferência. O Doutor vira a chave sônica na direção dos nossos perseguidores.

— Tente outra vez. — diz ele.

— Seu Walter, está me ouvindo? — chamo pelo aparelho.

— O que foi, Palominha? — quase pulo de alegria ao escutar a voz dele. — Vi você correndo pelos corredores. Quem é seu amigo?

— Depois eu explico, seu Walter. O mais importante é que não tire os olhos dessa câmera por nada desse mundo. Não pare de olhar para o anjo e as gárgulas! É sério! Daqui a pouco eu vou te ajudar a ficar na vigia.

E foi assim que as esculturas de um anjo e meia dúzia de gárgulas ficaram em exposição permanente no museu municipal. O Doutor diz para posicioná-los de frente uns para os outros, dessa maneira nenhum deles se mexerá. Ele também usa a chave sônica para dar um jeito de impedir que continuem a absorver energia ou causar interferência nas ondas de rádio.

Agora que o perigo passou, vou com o Doutor até a sala 23. Nem estou surpresa em descobrir que aquela cabine azul tem a ver com ele.

— Quer dizer que isso é seu? — digo em tom de brincadeira.

— Esse é o meu lar e minha condução.

— Me parece meio pequena.

— Por que não olha lá dentro? — ele estala os dedos e a porta se abre. Entro na cabine e não consigo acreditar no que vejo. Dou alguns passos para dentro… uns dez passos, pelo menos.

— É… ela é…

— Maior por dentro. Eu sei.

Maior é pouco. Parece até aquelas pontes de comando de naves dos filmes de ficção científica. No centro, há uma mesa hexagonal e do meio dela, sai um tubo transparente que vai até em cima. Luzes por todo lado. E tem portas que levam para outras salas.

— O nome completo dessa coisinha sexy é uma sigla em inglês que significa Tempo e Dimensão Relativas no Espaço, ou como prefiro, TARDIS.

— Espera aí, Doutor. Tempo e espaço?

— Exatamente! Não quer vir dar uma volta comigo? — ele se empolga enquanto fala. — Podemos ir a qualquer lugar e qualquer época. Quer ver as primeiras estrelas acenderem? Cleópatra e Júlio César dando uns amassos? Uh… melhor ainda! A canção da Rainha das Eras nos anéis de Akhaten!

Vê-lo falando dessa maneira é contagiante. Parece tão fantástico… mas tão distante da minha realidade.

— Doutor, eu agradeço, só que tenho uma vida aqui e…

— Está tudo bem, Paloma Souza. De verdade. — apesar dessas palavras, ele parece desapontado.

— Obrigada por me salvar!

— Ainda nos veremos de novo. Pode ter certeza.

Saio da TARDIS e escuto o som de um motor pulsando. A cada pulso a cabine fica mais transparente até desaparecer no ar, levando com ela esse homem incrível. Acabei ficando sem saber quem escreveu aquela carta que estava com o Doutor. No dia seguinte, peço aos rapazes que posicionem as gárgulas de frente para o anjo, se encarando mutuamente.

Uma semana depois, a diretoria decide mudar os envelopes que o museu usa em suas correspondências oficiais. Recebo um maço de envelopes azuis exatamente iguais ao que vi naquela noite. A carta que dizia ao Doutor onde me encontrar.

— Tempo e espaço!?

Agora entendo porque ele não disse quem tinha escrito aquela carta. É porque fui eu quem escreveu. E vou entregá-la em nosso próximo encontro. Quem sabe, eu aceite ir ver as estrelas de perto?

Apanho uma folha de papel em branco e começo a escrever a carta para o Doutor.